Gilberto Freyre e a 'brasilidade nordestina'

Já caminhamos muito até aqui para saber quem lucra e quem perde com as consequências desse historicismo cultural freyriano, particularmente numa época em que a globalização financeira dos mercados - ameaçando a autonomia dos Estados-nação - enaltece o "charme" (e o valor de troca) das culturas regionais ou locais

Gilberto Freyre e a 'brasilidade nordestina'
Gilberto Freyre e a 'brasilidade nordestina'


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Às vésperas de ocupar a superintendência da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, o jornalista Alfredo Bertini afirmou que gostaria de resgatar as ideias do sociólogo Gilberto Freyre. É de se lembrar que o atual ocupante do Ministério da Educação, um teólogo colombiano conservador, já se disse admirador das ideias do autor pernambucano.

Não obstante, o principal interesse na figura do ilustre sociólogo de Apipucos, neste momento, reside na construção (de sua autoria) de uma das mais duradouras representações discursivas da cultura brasileira, no século XX: a chamada "brasilidade nordestina". Obra de um autêntico intelectual orgânico da classe senhorial nordestina, cujo objetivo era garantir uma sobrevida, no plano da economia simbólico-cultural,para as oligarquias decadentes da nossa região, alijadas do poder pela chamada Revolução de 30. A ninguém mais do que a Gilberto Freyre devem essas oligarquias uma verdadeira epopeia civilizatória, baseada na tese da miscigenação racial brasileira e do caráter mais ou menos idílico, cordial das relações entre negros e brancos no país. Aliás, vem dessa influente tese a variante do socialismo "monárquico", "sertanejo", de conhecido mandarim da cultura popular do Nordeste. Acrescente-se que a tese da miscigenação racial foi tomada de empréstimo do colega alemão Rüdiger Bilden, em Columbia, e a do "equilíbrio instável das contradições", da leitura do livro de Herbert Spencer. (veja as biografias de Maria Lúcia Pallares-Burke).

A festejada e duradoura criação de Gilberto Freyre tem, entre muitas outras, duas características dignas de serem ressaltadas: a engenhosa combinação feita pelo mestre entre modernismo e regionalismo, mitigando os efeitos choquiformes (urbano-industriais) da estética modernista e dando lugar ao ciclo da cultura regionalista da década de 30 (José América de Almeida, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Domingos Olímpio), e a fetichização dos traços culturais nordestinos ( a cocada, o alfenim, o bolo de Souza Leão, o açúcar, a arquitetura mourisca, os costumes sexuais, as crendices religiosas etc.) hoje apresentadas como "vantagens comparativas" civilizatórias da nossa "raça" no concerto das nações.

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Essa astuta operação produziu um curioso resultado: a fabricação e a difusão de uma das mais bem sucedidas "identidades culturais" brasileiras (a chamada "brasilidade nordestina", tema de estudo da tese de Carla Nogueira), festejada nacional e internacionalmente, como marca da originalidade brasileira: e ao mesmo tempo um reforço. a justificativa (para não dizer a racionalização) de aspectos conservadores, oligárquicos e tradicionalistas da nossa sociedade patriarcal. A consequência disso foi a estetização do nosso atraso (veja a dialética do picaresco e da malandragem na obra de Antonio Cândido de Mello e Roberto Schwarz) permitiu mil e uma utilidades da obra freyriana: da sua utilização pelos grupos de direita com vistas à criação de um consenso e unidade nacionais, até a sua adaptação para o entretenimento de massas pela indústria cultural moderna do país.

A obra de Gilberto Freyre é, assim, uma unanimidade sob suspeita: nos fornece uma razão (ou modo) de ser, no confronto com as demais culturas, mas à custa de uma naturalização problemática de traços, princípios e atitudes sociopolíticas conservadores, do ponto de vista da produção de uma sociedade republicana e democrática no Brasil. A se aceitar ingenuamente o substrato social embutido em sua obra, a única utopia possível a ser acalentada entre nós - cidadãos nordestinos e brasileiros - seria o messianismo da Pedra do Reino, com seus vaqueiros socialistas em busca da ressurreição de Dom Sebastião, em versão beata e sertaneja.

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Já caminhamos muito até aqui para saber quem lucra e quem perde com as consequências desse historicismo cultural freyriano, particularmente numa época em que a globalização financeira dos mercados - ameaçando a autonomia dos Estados-nação - enaltece o "charme" (e o valor de troca) das culturas regionais ou locais. Do que precisamos urgentemente é de utopias e valores que resgatem da marginalidade política e social milhares de brasileiros, que vivem como caranguejos nos mangues e entornos das casas-grandes. (Artigo adaptado para esta versão do livro. "O fim do nordeste e outros mitos", São Paulo, Cortez, 2002, 2a. edição)

 

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