Cinquenta tons de preto

Em meio a mais uma polêmica racial - agora envolvendo a escolha da atriz que interpretará dona Ivone Lara, no musical em sua homenagem - se propôs um novo debate sobre a temática racial

Em meio a mais uma polêmica racial - agora envolvendo a escolha da atriz que interpretará dona Ivone Lara, no musical em sua homenagem - se propôs um novo debate sobre a temática racial
Em meio a mais uma polêmica racial - agora envolvendo a escolha da atriz que interpretará dona Ivone Lara, no musical em sua homenagem - se propôs um novo debate sobre a temática racial (Foto: Nêggo Tom)


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Em meio a mais uma polêmica racial - agora envolvendo a escolha da atriz que interpretará dona Ivone Lara, no musical em sua homenagem - se propôs um novo debate sobre a temática racial, que, para alguns, não passa de uma grande bobagem, mas, que para outros - e eu me incluo nesse grupo - merece ser analisado com bastante atenção, pois não se trata de uma simples abordagem irrelevante. 

A cantora Fabiana Cozza, foi a escolhida para dar vida à grande dama do Samba brasileiro. Filha de mãe negra e pai branco, sambista, ativista do movimento negro e de contribuição relevante à causa, Fabiana não teve a sua escolha vista com bons olhos, por boa parte da comunidade preta, que a julgou clara demais para representar dona Ivone Lara. Preta de tom mais retinto, cujo fenótipo não se assemelha ao de Fabiana Cozza. 

Tenho ouvido e lido algumas opiniões sobre o assunto, e encontrei certa coerência em ambos os lados. Tanto os que aprovaram a escolha, quanto aqueles que desaprovaram, apresentam bons argumentos. Mas, aqueles que aprovam, se me permitem, cometem um lapso racial, que acaba legitimando o processo de embranquecimento dos artistas e das grandes personalidades pretas. Algo que vem sendo feito ao longo dos anos, seja produções cinematográficas, televisas ou teatrais.

O talento e a arte dos pretos, costumam ser exaltados por trás de uma pele mais "desbotada", para que haja uma melhor aceitação da sociedade racista, e, consequentemente, uma melhor comercialização da produto. O filme sobre a vida da cantora e compositora, Nina Simone, gerou polêmica nos EUA, pelo mesmo motivo do musical em homenagem a dona Ivone Lara. O tom da cor da pele e os traços físicos da Atris escolhida para o papel.

Zoe Saldaña, a atriz em questão, apresentava um fenótipo bem diferente do de Nina, embora o seu genótipo as unissem ao mesmo grupo étnico. Zoe precisou ser caracterizada para dar mais verossimilhança a personagem. Sua pele recebeu um tom mais escuro e seu nariz recebeu uma prótese. O que seria desnecessário, se uma atriz com características mais próximas a de Nina, tivesse sido escolhida. Por aqui, já tivemos alguns exemplos desse embranquecimento de artistas pretos, em homenagens feitas a eles.

O musical Tim Maia, teve Thiago Abravanel, neto de Silvio Santos, emprestando o seu fenótipo branco, ao maior nome da Soul Music nacional, que era preto, de tonalidade nem tão acentuada, mais bem longe do fenótipo de Thiago. Na TV, Regina Duarte deu vida à mestiça Chiquinha Gonzaga e uma propaganda da CEF, exibiu o também mestiço Machado de Assis,  tão branco, quanto Mozart. Isso não é apenas coincidência. Faz parte do processo de invisibilidade do preto e da negação da sua contribuição cultural para a humanidade. 

O Rap e o Hip-Hop nos EUA, gêneros originários dos guetos estadunidenses e portanto, música majoritariamente preta, sempre foram marginalizados, até o branco Eminem surgir e amolecer o endurecido e seletivo coração dos racistas. Por aqui, o Rap de Racionais, Rappin'Hood, Mv Bill e outros, sempre foi associado a favela e a marginalidade. Mas, nada que o branco Gabriel, o Pensador (genial, diga-se de passagem), não pudesse tornar um pouco mais sociável e comercial.

O preto Chuck Berry era a alma do Rock, mas foi o branco Elvis, que emprestou o corpo para que o gênero pudesse ganhar uma vida mais digna e aceitável. O embranquecimento da cultura preta, faz parte do racismo estrutural e naturalizado, não apenas no Brasil, mas, no mundo todo. Nem Jesus Cristo escapou dele. Imagina, se o salvador do mundo, poderia ser retratado como o mestiço, que ele realmente o era? 

Não é papo de esquerdista, não é a "chatice" do politicamente correto, não é a propagação cultural do "mi mi mi", é uma questão de resistência. Resistência com a qual um branco, não precisa e nunca precisará se preocupar. Porque a sua cultura eurocêntrica, as suas crenças, suas tradições, e, principalmente a cor da sua pele, nunca sofreu nenhum tipo de vilipêndio étnico. Ao contrário, é tido como o padrão universal de boa aceitação. 

Ninguém escala um "moreninho", de topete moldado a gel e lentes de contato "green eyes", para interpretar Elvis Presley. Nem uma mulata de cabelo loiro, para viver a Marilyn Monroe. A escalação da Fabiana Cozza (não por ela, mas, pelo modus operandi, sutil e covarde, que visa exaltar a cultura preta, usando brancos e "desbotados" para melhor comercializá-la) só iria reforçar o processo de embranquecimento da cultura preta e de invisibilidade das grandes personalidades pretas, que tanto contribuíram para ela. 

O racismo está diretamente ligado ao tom da cor da pele do indivíduo. Quanto mais retinto, maior o preconceito sofrido. Esse tipo de seleção, era muito usado no período colonial, quando os "pantones" dos senhores de engenho, determinavam o tom da cor da pele do escravizado que ficaria servindo dentro da casa grande e daqueles que seriam destinados aos trabalhos mais forçados e dormiria na senzala. Esse deveria ser o ponto de convergência, que o debate proposto sobre a escolha de Fabiana Cozza para viver dona Ivone Lara, deveria nos levar. 

O fenótipo de Fabiana Cozza, não se assemelha, nem de longe, ao de Dona Ivone. Não que ela não tenha legitimidade e talento para interpretar o papel. O questionamento não é pessoal, não é profissional, não é afetivo.  É puro, e muito mais simples do que possa imaginar, as vãs filosofias e as diversas teorias adotadas para abordar o assunto. Estamos falando de colorismo, de "pigmentocracia". De ser o menos preto possível, para ser melhor aceito ou para "merecer" estar nos lugares onde o eurocentrismo domina. É o embranquecimento cultural. É o tom sutil do preconceito. É o "desbotamento" da arte preta e o invisibilizar o preto na cultura geral. 

Não sejam levianos em afirmar que o colorismo não existe e que um fenótipo de preto mais "suavizado", não facilita algumas coisas. Não sejamos hipócritas e abandonemos esse papo de que "só existe a raça humana", porque não é bem assim. Nunca foi. Ainda se faz piada associando o Samba à música de bandido. Porque é música de preto. Ainda se associa um preto de terno preto, ao segurança do shopping. Porque preto de terno preto, não deve ser outra coisa. Ainda somos classificados como: mulatos, moreninhos, sararás e negões. E assim se estabelece níveis de negritude, que podem determinar onde é o seu lugar.

Com todo respeito a Fabiana Cozza, como cantora e como artista, mas é preciso e necessário, que outras cantoras de samba e atrizes, cujo fenótipo e os traços físicos, mais se assemelham ao da grande dama do samba nacional, ganhe visibilidade com esse papel. É uma questão de representatividade. De ser leal as raízes. Convido a todos, que não entenderam a proposição do debate - não por limitação de raciocínio, mas, por descuido, à uma reflexão. Ainda que breve, mas, com boa vontade, empatia e baseada no nosso histórico de preconceito, segregação e em todas as formas e métodos, usados para anulação do preto e de sua cultura na sociedade. 

Afinal, a homenagem é para dona Ivone Lara , não para uma dona Ivone Clara.

Paz e reflexão! 

 

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