Refletindo com Foucault: Donald Trump?

A guerra que Donald Trump anuncia é uma guerra invisível. É uma guerra que cerceia “o inimigo” a partir de sua identidade subjetiva; sem tocá-lo, deixando-o definhar por contra própria

U.S. President Donald Trump boards Air Force One for travel to Philadelphia from Joint Base Andrews, Maryland, U.S. January 26, 2017. REUTERS/Jonathan Ernst
U.S. President Donald Trump boards Air Force One for travel to Philadelphia from Joint Base Andrews, Maryland, U.S. January 26, 2017. REUTERS/Jonathan Ernst (Foto: Ramon Brandão)


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Recentemente fui questionado por um amigo acerca de Donald Trump. Ele me anunciava aquilo que estampava umas das páginas do jornal Folha de São Paulo: “Trump pretende manter-se distante de mecanismos de controle e de inteligência típicos de toda democracia”. Dizia-me este amigo o quão interessante era pensar Trump, uma figura desastrosa que aparentemente não compreende o que seja uma convivência fraterna e coletiva, quebrando um certo status quo na política mundial, além de desarticular algumas estruturas de poder que, até então, se mostraram bastante sóbrias. Tal compreensão levou o meu amigo a uma conclusão não menos instigante: “o colapso que estamos assistindo nos últimos tempos pode, afinal, trazer resultados positivos”.

Não tenho acompanhado diariamente e elaborado reflexões sobre política internacional, tal como fiz num passado não muito distante. Tenho preferido e me dedicado incansavelmente à filosofia e à luta contra minha própria consciência. No entanto, como disse a meu amigo, não posso negar a formação relativamente sólida que tenho na área, a ponto de poder opinar sem o perigo da leviandade.

Pois bem, penso que Donald Trump é um sujeito preciso. Ele representa com precisão um ideal emergente – apensar de antigo – no pensamento tradicional Ocidental. Trump reúne, de uma só vez, fatores que são importantes para o americano de pensamento médio. É popular, fez fortuna fora do universo político (passando, portanto, uma suposta impressão de que é competente), é defensor dos valores tradicionais e, o mais importante, é um nacionalista – por isso, bem menos liberal do ponto de vista político e econômico do que seus antecessores. Ele se desarticula tanto dos mecanismos tradicionais de controle quanto dos mecanismos tradicionais de comunicação (a grande mídia americana), mas não por acaso.

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Ele, como apresentador e comunicador experiente, conhece como poucos o universo da comunicação e, portanto, sabe como poucos conduzir um belo espetáculo para os espectadores. É polêmico pois viu nela a oportunidade que o levaria ao topo da cadeia (no Brasil são muitos os políticos que desapareceriam sem ela, uma vez que não possuem outro recurso). A polêmica e seus súditos é mais popular em nossos dias do que a inteligência e a sensatez. Existe algo de cômico, de caricatural e de jocoso na natureza da polêmica e isso, tal como a violência, atrai muito mais a atenção de quem possui pouca afinidade com a reflexão do que os discursos de inclusão e conciliação, que exigem sacrifícios, trabalho e a necessidade de que saiamos, quase sempre, de nossa zona de conforto. Trump se apropriou de uma generalizada sensação de insegurança e empurrou goela abaixo um projeto autoritário e violento do ponto de vista da inclusão. É, no fundo, um vaidoso egoísta. Ele se desarticula desses mecanismos não num movimento de resitência, mas, antes, num movimento de re-articulação. Existe uma entrada interpretativa para essa questão a partir da filosofia do francês Michel Foucault: diz o filósofo que o poder é orgânico; ele se move, se reinventa, se metamorfoseia, se transmuta. No entanto, nunca deixa de ser “Poder”. O que assistiremos com Trump é nada menos do que este movimento do poder de que fala Foucault. O poder vai deixar sua forma atual para assumir uma outra forma sem deixar, porém, de ser o que é.

Alguns resultados positivos são esperados, afinal, essa nova forma de poder precisa se legitimar para que possa se tornar uma tendência mundial. Evoco Foucault, mais uma vez, para sustentar essa hipótese: diz ele que o poder “produz positividades”, caso contrário seria um mero exercício de violência. Por isso, aliás, o capitalismo é tão fantástico e implacável: ele não expõe abertamente os seus pontos fracos e os seus pontos de violência tal como os regimes totalitários (ditaduras) o fazem. No totalitarismo é muito fácil identificar o inimigo a ser combatido. No capitalismo, não. E é precisamente por isso que temos a recorrente impressão de que o capitalismo é mais inclusivo do ponto de vista humano do que os outros regimes.

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Donald Trump, evidentemente, é um homem inteligente, vaidoso e muito, muito malicioso. Ele identificou e trouxe algo que o americano médio não sentia desde George W. Bush: tesão. Sim, aquele tesão exibicionista, que gosta de ostentar; aquele tesão causado pela sensação de poder por saberem que são a maior potência econômica e militar do planeta. Tesão em ostentar isso para o mundo, de fato. No entanto, esse impulso perverso não é novo. Foram recorrentes as vezes em que senhores de engenho no Brasil castigaram escravos gratuitamente, apenas para demonstrar poder. Do mesmo modo, os reis e príncipes da Antiguidade Clássica supliciavam e torturavam até a morte – publicamente – os infratores da lei com a finalidade de expor o seu poder e a sua superioridade diante do povo.

Todas essas formas de distinção possuem uma mesma gênese, um mesmo objetivo que visa, muito claramente, demarcar força, ostentar poder, exibir superioridade. Na Antiguidade essas manifestações se resumiam a demonstrações sangrentas de força. Conforme a viabilidade política dessas alternativas foram se desmanchando, a estratégia foi modificada (a “forma” do poder, portanto, foi transformada): não mais o suplício e a tortura publica; antes, fecham-se as fronteiras e restringem os espaços antes públicos a uma comunidade limitada. Essa alternativa, aparentemente mais branda quando comparada a anterior, é ainda mais profana. Ela estende ao limite o sofrimento, ao mesmo tempo em que se isenta completamente da responsabilidade pela tragédia que esse sofrimento quase sempre provoca. O poder, atualmente, não mais é exercido no campo físico, exclusivamente. O seu foco é, muito claramente, o campo subjetivo. A subjetividade é o maior e mais precioso objeto do poder contemporâneo.

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No entanto o fato, tal como, por fim, nos afirmou Foucault, é que ainda não sabemos muito bem o que é o poder:

“E Marx e Freud talvez não sejam suficientes para nos ajudar a conhecer essa coisa tão enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte [...]. A teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado sem dúvida não esgotam o campo de exercício e de funcionamento do poder. Existe atualmente um grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde o exerce? Atualmente se sabe, mais ou menos, quem explora, para onde vai o lucro, por que mãos ele passa e onde ele se reinveste, mas o poder... Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detêm. [...] Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui”.

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A guerra que Donald Trump anuncia é uma guerra invisível. É uma guerra que cerceia “o inimigo” a partir de sua identidade subjetiva; sem tocá-lo, deixando-o definhar por contra própria. 

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