Depois do fim da democracia: o Estado autoritário dual

O que está em causa neste momento é algo muito mais grave e profundo do que isto: se trata de uma alternância de regime. Ocorrerá profunda mudança de uma estrutura política e jurídica democrática para outra autoritária

Depois do fim da democracia: o Estado autoritário dual
Depois do fim da democracia: o Estado autoritário dual (Foto: Fabio Pozzebom - ABR)


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Escrevo este texto nos últimos dias de 2018, quando avalio e tenho suficientemente claro que respiramos as últimas horas da vencida democracia brasileira. Foi trágica derrota imposta por grupo que jamais esteve à vontade sob um sistema político e constitucional disposto a incluir o povo em um projeto de país. Contudo, muitos são os atores sociais, mesmo do campo progressista, que tardam demasiado em reconhecê-lo, levar a sério o fato de que a Constituição foi mortalmente transgredida pelas autoridades constituídas para protegê-la, auxiliados por amplos coletivos de atores que deveriam colocar-se em sua defesa publicamente. Conluio, conspiração e omissão.

Para os fins de proteção da democracia é perigoso superestimar as favoráveis consequências de que uma Constituição não tenha sido expressamente revogada, como se implicasse eficiente garantia sistêmica, quando, verdadeiramente, não é força impeditiva para que a democracia pereça. Intérpretes confiantes nas formalidades jurídico-políticas típicas de tempos de normalidade burguesa relevam a experiência histórica nacional-socialista, que mesmo não revogando formalmente a democrática Constituição de Weimar protagonizou o seu desfile de horrores, colocando as condições de possibilidade para aqueles miseráveis dias. Assim como a história bem documentou, quando o fascismo corre solto produz cadáveres contados aos milhares, e em alguns casos, aos milhões. Hoje, contudo, notável coletivo de democratas insiste em desdenhar esta experiência histórica, priorizando apenas a busca para si das melhores posições cênico-eleitorais, como se tal cenário fosse viável à custa de cadáveres.

No dia 1º de janeiro de 2019 ocorrerá não apenas uma alternância de governo, fato que as teorias da democracia apresentam como saudável e revigorante prática. Mas não, o que está em causa neste momento é algo muito mais grave e profundo do que isto: se trata de uma alternância de regime. Ocorrerá profunda mudança de uma estrutura política e jurídica democrática para outra autoritária. Agrava a circunstância o fato de que tal mudança não foi fruto de deliberação por parte da população, pois não houve discussão programática durante o curto período eleitoral e nem mesmo pré-eleitoral, não foi proposto o desmanche das estruturas do Estado constitucionalmente assentadas, e tampouco autorizado através de processo revolucionário. Contudo, o modelo autoritário avança sob a égide do desprezo ao diálogo, pois não precisa de nada mais do que da força para implementar o seu projeto.

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Sob os escombros da democracia brasileira está sendo erigido um novo regime sob a forma de um Estado autoritário dual. Uma de suas duas faces é o Estado oligárquico, cujos membros controlam uma estrutura estatal voltada a servir economicamente os seus privilegiados condutores com exclusividade, facilitando o exercício de seu domínio. A outra face do Estado autoritário dual é o Estado policial, construído e pensado para exercer o controle sobre a coletividade dos indivíduos sem quaisquer limitações, permitindo assim que o Estado oligárquico possa realizar as suas funções. O Estado oligárquico dota de direitos e garantias apenas ao mundo do capital e os seus operadores plenamente assegurados institucionalmente. Enquanto isto o Estado policial opera no nível repressivo sobre trabalhadores e trabalhadoras, assim como sobre o conjunto de indivíduos que de alguma forma represente riscos ou se oponha ao regime. Para estes não serão reconhecidos direitos ou garantias, senão a excepcionalidade que margeia a lei, disponível para aplicação por parte dos envolvidos no regime.

O desenho do presente Estado autoritário dual converge com o de um regime que não foi concebido para governar para os nacionais, senão orientado pelo objetivo de tutelar de todas as formas o conjunto de interesses dos poderosos controladores do sistema. Esta dualidade está composta em uma de suas faces por uma amplíssima margem de indivíduos excluídos, cuja lógica de operação implicará na morte de milhares deles, quer isto ocorra como direta consequência das políticas orçamentárias restritivas impostas pelo Estado oligárquico, ou de forma perceptível até mesmo ao incauto, em face da repressão contra aqueles que se aventurem resistir.

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A reatividade ao Estado oligárquico implica a ruptura desta oculta e até aqui exitosa força psicopolítica. Os atores democráticos populares não dispõem de opção que mantenha congruência com os seus princípios filosóficos senão empenhando-se em reconfigurar o derrocado Estado social. Este modelo estatal é ainda mais indispensável em uma sociedade como a brasileira, que historicamente primou por altíssimo nível de desigualdade associado ao desprezo pelo seu povo. A marca do Estado social democrático de direito é a submissão aos princípios jurídico-políticos conquistados pelos avanços civilizacionais, dentre os quais o da universalidade e abstração das leis, o da estrita legalidade, o da igualdade perante as leis, mas também do respeito à dignidade do ser humano, garantindo que as instituições atuarão de forma imparcial no seu trato.

Não compreenderemos os dias que correm e nem o que está por vir sem a devida consideração da aparatosa estrutura de poder que foi construída a partir do núcleo duro dos órgãos de segurança e repressão. Os cálculos da alta densidade opressiva necessária para o êxito do novo regime já foram realizados pelos seus ideólogos. Provocar atentados, provocar, responsabilizar opositores e sob o argumento de desestabilização, então, atacar ferinamente, tudo sob a tutela e devido amparo da legislação excepcional já previamente elaborada e o beneplácito dos intérpretes confortavelmente acomodados em poltronas desde as quais fazem correr as firmas de luxuosas e poderosas canetas legalizadoras de injustiças várias.

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As consequências da imposição da expropriação econômica já foram contabilizadas pelos ideólogos do poder e seus desdobramentos são antecipáveis, dado o cenário de radicalização da miséria, sem alternativas de ganhos honestos da vida a realidade de reação existencial. É previsível o que está por vir, circunstância sobretudo agravada pelo armamento geral dos indivíduos. O enfrentamento do derivado horizonte policialesco que este cenário enseja não pode ser proposto sem o seu adequado reconhecimento, o que pressupõe o alcance de amplíssimos segmentos da população a qual está reservada a crueza do Estado policial. Sem embargo, não será em caso algum sem a mobilização massiva que o quadro de torturas e mortes à céu aberto poderá ser revertido.

Historicamente o dia 1º de janeiro de 2019 equivalerá ao 1º de abril de 1964 no que concerne às consequências de domínio por forças políticas que desprezam a democracia, em que pese o primeiro tenha utilizado instrumentos psicopolíticos para tergiversar o poder soberano popular e ascender ao poder, enquanto que as forças de 1964 utilizaram a força bruta como instrumento para ascender ao poder. Janeiro abrirá como o primeiro dos muitos dias autoritários que virão, orientados para estruturar o Estado dual, oligárquico e policial, em substituição ao fim da democracia brasileira sob o Estado social, realidade que muitos tardam em incorporar às suas análises e ainda mais às suas práticas políticas.

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Dentre as escassas certezas de que dispomos está a de que apenas o otimista pode afirmar que os dias que virão serão sombrios. Rigorosamente, em seu bojo o regime autoritário não oporá limitações para as ações repressivas dos atores do Estado e nem de seus asseclas, estimulando a extensão radical da violência como instrumento de intimidação à resistência, algo encarnado nos brutais assassinatos de Marielle Franco e de tantos líderes populares campesinos apenas como sinal de advertência. O Estado policial não hesitará em criar os fatos – recordemos o atentado do Riocentro em 30 de abril de 1981 – que sirvam de pontos de ancoragem para obnubilar a percepção pública, e ao elevar o nível de cegueira coletiva, lograr angariar o indispensável apoio para a aplicação de medidas excepcionais contra o povo e seus representantes.

Enganam-se aqueles que creem e levam consigo outros tantos a acreditar que as formalidades jurídico-políticas – tais como os processos eleitorais – representam recurso estrutural capaz de manter uma realidade democrática. Sediciosa estratégia que interfere para solapar o Estado social democrático de direito. Depois do fim de nossa democracia sob a égide da Constituição de 1988 e seu bem ensaiado de Estado social emerge à traição um Estado autoritário dual cuja crueza e violência estão por ser inaugurados formalmente nos próximos dias. É sabido que nada além da intervenção pública massiva na vida política pode garantir a democracia e o conjunto das liberdades que oferece, tal e como a experiência histórica ensinou ter sido a grande falta de Weimar.

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Mesmo quando a tempestade de areia seja forte o suficiente e obstaculize visualizar os melhores horizontes e o turbilhão confunda a percepção sobre quem realmente é o ator da histórica, devemos recordar que malgrado intensa, a tempestade é finita. Eis que quando minimamente desanuvie, renovaremos a consciência de que a escolha é sempre popular. Até aqui chegamos sob esta espessa nuvem psicopolítica que obscurece a visão e entorpece a reação, também ela surte efeitos em espaço de tempo limitado, cuja cessação implicará a aplicação da força bruta para manter a eficiência do regime. Mas se agora já é fragorosamente tarde para evitar o mal, ainda não o é para evitar o pior.

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