O treinador João Saldanha na ditadura

João Saldanha morreu em Roma, em julho de 1990, onde estava a serviço da Rede Manchete, na cobertura da Copa do Mundo da Itália. Por isso, quando exaltarem o reconhecidamente bom trabalho de 1970, não se esqueçam de quem pegou uma Seleção desmoralizada, esfacelada, ferida e desmotivada e a entregou a Zagallo aguerrida e com espírito de campeã”

O treinador João Saldanha na ditadura
O treinador João Saldanha na ditadura


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Copio do ótimo livro “Copas ganhas e perdidas”, de Pedro J. Bondaczuk:

“Sempre que me lembro da Seleção Brasileira de 1970, ou que alguém, ou algum jornal ou canal de televisão a menciona e que, para muitos, foi a melhor que o Brasil formou em todos os tempos – no que discordo, pois considero, pela ordem, que as de 1958 e 1950 lhe foram superiores – vem logo à memória o nome de um sujeito controvertido, sumamente injustiçado pela posteridade, mas que merece nosso respeito e reverência: João Saldanha. Foi ele que incutiu nos nossos jogadores uma filosofia vencedora e montou a estrutura que acabaria bem-sucedida no México, sob outro comando (o de Zagallo) e não mais o seu. Era, sobretudo, homem ousado (muitos classificavam-no de atrevido), de firmes convicções e personalidade forte. Tanto que ficou conhecido nos círculos jornalísticos – dos que não se renderam à ditadura militar, pois a maior parte aderiu, e alguns com entusiasmo ímpar, ao que classificavam de “revolução redentora” – como João Sem Medo.

Sua coragem era tanta, que às vezes raiava à temeridade. Mas o futebol brasileiro, humilhado em gramados ingleses, precisava, naquele momento, de um líder desse porte. E ele foi a pessoa certa no momento adequado. Pena que poucos reconheçam. João Alves Jobin Saldanha era gaúcho, natural de Alegrete. Foi responsável pela brilhante campanha da Seleção nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 1970, em que triturou os adversários. Conhecia a mentalidade dos boleiros, pois chegou a jogar profissionalmente, defendendo o clube que sempre foi a sua paixão; o Botafogo de Futebol e Regatas do Rio de Janeiro que foi, também, o único time que chegou a treinar.

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Formado em Direito e em Jornalismo, honrou as duas profissões, sobretudo a última, exercendo a crônica esportiva com independência, verdade e, principalmente, credibilidade. Sempre fui seu fã e, na medida do possível, busquei seguir seu exemplo.Membro do Partido Comunista Brasileiro, era olhado com extrema desconfiança pela ditadura e seus asseclas (que hoje posam de democratas), que não viam a hora dele dar algum passo em falso, para darem-lhe sumiço, como fizeram com tantos e bons jornalistas (como Vladimir Herzog, por exemplo).

Em 1969, João Saldanha foi convidado pela então CBD para comandar a Seleção Brasileira, desmoralizada e combatida, sem nenhuma credibilidade após o fiasco de 1966. João Sem Medo não era de fugir de desafios. E não fugiu desse. É verdade que não tinha nenhuma experiência como técnico. Era mais inexperiente, até, do que Dunga, que foi tão criticado por causa disso nos três anos e meio do seu (fracassado) trabalho. Pitoresco foi o motivo apontado pelo então presidente da CBD (atual CBF), João Havelange, para essa escolha. O dirigente, que mais tarde presidiria a Fifa, admitiu que escolheu Saldanha apenas “para ver se os jornalistas fizessem menos críticas à Seleção Brasileira tendo um colega de profissão no seu comando”. Naquele tempo, como não se podia criticar impunemente (e ai de quem se atrevesse) o governo militar, e ninguém ousava fazer isso, o alvo preferencial dos ataques dos comentaristas (alguns, sequer, da área esportiva) eram os dirigentes e jogadores de futebol.

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João Saldanha, antes de tudo, investiu na recuperação do moral dos nossos atletas que, desde 1950, tinham fama de “pipocarem” diante de adversários mais viris. Exigiu-lhes garra, muita garra, sem medo de cara feia, pois técnica eles tinham para dar e vender. Lembrava que, em 1966, a violência impediu que o Brasil passasse da primeira fase, pois foi impedido de jogar seu exuberante futebol. Na sua avaliação, muitos dos nossos craques se atemorizaram com as entradas violentas e desleais dos adversários e, por isso, não renderam nem metade do que poderiam render. João Saldanha disse que os atletas que convocasse, e que viesse a escalar, teriam que ser, antes de tudo, valentes. Pretendia formar uma equipe de “onze feras”. Afirmava que seus selecionados não poderiam se inibir diante da truculência dos que pretendessem nos vencer na base da pancada. Ou seja, defendia que a Seleção fosse técnica diante de adversários técnicos, mas forte e viril com os que recorressem somente à força. Foi então que surgiram as tais ‘Feras do Saldanha’. Mesmo com a Seleção dando show nas eliminatórias, porém, não faltaram críticas ao seu trabalho. Uns diziam que o Brasil estava vencendo porque os adversários – Venezuela e Paraguai – eram muito fracos. Mas, e se perdesse? Outros asseguravam que João Sem Medo não entendia patavina de preparação física. Outros, ainda, acusavam-no de não saber treinar.

Diziam que seus treinos se limitavam a uma espécie de rachão entre titulares e reservas, e nada mais. Como tem gente que diz e escreve abobrinhas, confiando na falta de memória de leitores, ouvintes e telespectadores! Ficou famosa uma briga de Saldanha com o técnico Dorival Knipel, conhecido como Yustrich, então treinador do Flamengo. Era um sujeito truculento que (dizem) chegava até a bater em jogadores que não seguissem à risca suas instruções. Nosso João Sem Medo, contudo, não “afinou” diante do tal valentão. Encarou-o, de revólver na mão, e a coisa só não foi mais longe por causa da providencial intervenção da turma do “deixa disso”. E ademais, inexperiente ou não, bom ou mau, o fato é que Saldanha, com um time base que era mescla do Santos e do Botafogo, as duas melhores agremiações do País na época, classificou o Brasil para a Copa do México e jogando bem. Foi o caso do bonito e do eficiente.

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Montou um grupo que, apesar de altamente técnico, era também combativo e não se perdia diante de adversários violentos e de arbitragens desastrosas.

João Saldanha morreu em Roma, em 12 de julho de 1990, onde estava a serviço da Rede Manchete, na cobertura da Copa do Mundo da Itália. Por isso, quando exaltarem o reconhecidamente bom trabalho de 1970, não se esqueçam de quem pegou uma Seleção desmoralizada, esfacelada, ferida e desmotivada e a entregou a Zagallo rejuvenescida, aguerrida e com espírito de campeã”.

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Meus amigos, por incrível que pareça, esse livro de Pedro J. Bondaczuk, feito com o suor da experiência e talento paciente, não está publicado. “Copas ganhas e perdidas”, que reúne as copas vividas pelo autor, escrito com o conhecimento maduro de um Tite, ainda espera os seus milhões de leitores. Que o Brasil não demore a ter a oportunidade.

 

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