Memória da ditadura, memória da filha de um bravo

Em dados objetivos, um jornalista diria que o livro Nasci Subversiva será lançado em dezembro pela Mundo aflora Edições. A obra foi publicada primeiro em inglês sob o título de “Born Subversive”. E sua autora, Nadejda Marques, é filha única de Jarbas Pereira Marques, um dos militantes assassinados no Recife sob encomenda do Cabo Anselmo

Memória da ditadura, memória da filha de um bravo
Memória da ditadura, memória da filha de um bravo


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Em dados objetivos, um jornalista diria que o livro Nasci Subversiva será lançado em dezembro pela Mundo aflora Edições. A obra foi publicada primeiro em inglês sob o título de “Born Subversive”. E sua autora, Nadejda Marques, é filha única de Jarbas Pereira Marques, um dos militantes assassinados no Recife sob encomenda do Cabo Anselmo.

Jarbas foi um dos 6 executados  no mesmo massacre que levou Soledad Barrett em 1973. E mais diria: este livro fala de uma Nadejda mulher,  extraordinária na sobrevivência e luta, que se tornou Pesquisadora de Direitos Humanos nas universidades de Stanford e Colorado, nos Estados Unidos.

Mas nós escritores, com a memória do maldito tempo que os militares ameaçam hoje com a sua volta, temos o dever e a graça de falar duas ou três coisas. A primeira delas é que este é um livro de experiência amadurecida, mas que guarda no seu amadurecimento o paradoxo do frescor. Isso porque  a recordação de Nadejda fala do que aconteceu ontem como se houvesse acontecido hoje de manhã:

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“Conheci meu pai através de algumas fotografias antigas em preto e branco: cinco no total. A primeira era uma pequena foto do tipo das que se usavam para carteira de identidade. Eu vi essa foto em um livro intitulado Dossiê dos mortos e desaparecidos durante o a Ditadura desde 1964 no Brasil. O livro foi escrito por iniciativa da Comissão de Famílias de Mortos e Desaparecidos e o Instituto Estudos da Violência do Estado, IEVE. Das páginas daquele livro meu pai me olhou diretamente nos olhos e eu olhei para ele. Primeiro, busquei algum aspecto físico que eu pudesse reconhecer. A foto não era muito boa. "Eu pareço com ele?", perguntei a mim mesma. Minha avó paterna costumava me dizer que eu e ele tínhamos os mesmos olhos. - Será? Lá estava ele, na minha frente, bidimensional em preto e branco. Sua vida e morte narradas em um curto parágrafo e uma pequena fotografia. Agora que já vivi mais do que meu pai por mais de uma década, não pude evitar o pensamento de que tudo teria sido diferente se ele não tivesse sido morto. Às vezes, fico observando como meu esposo e minha filha brincam seus jogos favoritos. Haveria algum vínculo especial entre as meninas e seus pais? Como seria essa relação? Sinto falta do que não tive”.

A segunda coisa é que Nadejda Marques fala da sua luta e marcas sem desespero. Serena, se assim podemos dizer, quando na verdade é fala calma sobre o que mais sofreu, como se fosse um novo Cristo a caminhar sobre as ondas do mar. Mas como é verdadeira!  Num dos trechos mais tocantes, o livro conta para todos nós, de todos os tempos e idades:

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“A mentira causa dor, mas também dói. Sei disso porque também sei mentir. Quando criança aprendi a mentir e talvez algumas mentiras tenham salvo minha vida. Aprendi a mentir porque acreditava que estava protegendo os que eu amo... Talvez a mentira que mais tenha me marcado seja o dia em que menti sobre minha mãe. Tinha treze anos e voltava da escola em um ônibus escolar, quando um estranho subiu. O homem sentou-se duas cadeiras de onde eu estava e não falou com nenhuma das crianças. Eu acho que ele nem falou com o motorista. Talvez tenham trocado um cumprimento, ou um gesto com as mãos, com os olhos. O ônibus chegou na minha parada. 

O homem olhou para fora do ônibus, se aproximou de mim, apontou para minha mãe em pé em frente ao nosso prédio e puxando conversa perguntou:

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- Aquela é a sua mãe?

Lá estava ela, em pé, me esperando. Sempre linda. Carrego essa imagem comigo. Ela nem sempre me esperava no ponto do ônibus, mas nesse dia lá estava ela. Com um lenço na cabeça, uma moda de quando ela era mais jovem, penso eu, ou talvez de quando estávamos em Cuba. Mas, entrei em pânico, porque naquele momento eu achava que era uma coisa que chamava a atenção. Meu irmão e minha irmã talvez estivessem na escola ainda. Minha mãe me esperava, e provavelmente almoçaríamos juntas. Eu balancei a cabeça e franzi um pouco a boca. Calmamente eu respondi:

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- Não senhor. Não é. Não conheço essa mulher”

Mas este apresentador não é parte estranha à história de Nadejda Marques. Eu conheci e conversei com Jarbas Pereira Marques, pai de Nadejda, em um momento inapagável do Recife em 1972. Tanto, que escrevi sobre esse encontro em “Soledad no Recife” e no mais recente romance “A mais longa duração da juventude”. Nele, Tercinha, mãe de Nadejda, se torna Nelinha. A própria Nadejda se faz Krupskaia. E o personagem Vargas, cujo modelo é Jarbas, ocupa um lugar marcante de heroísmo angustiado e do maior amor e dignidade, em suas horas finais:

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“- Sente aqui, bem junto – e descem sobre o sofá da sala.

Vargas põe o rosto de Nelinha entre as mãos:

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- Me prometa. Aconteça o que acontecer, você continuará a sua vida. Entende? Dê à nossa filha a tranquilidade que eu não tive. Saiba, amor: estes dias passarão. Repita: estes dias passarão. Repita comigo: estes dias passarão.

Nelinha repete como em uma prece:

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- Estes dias passarão.

- Você merece toda a felicidade do mundo – Vargas fala. – Você é digna do amor maior que não pude dar.

- Por quê? Fale, Vargas.

- Eu só quero que você saiba. Eu sou um homem. Eu te amo com todas as minhas forças. Só isso. Eu sou um homem. Eu sou apenas menor que o meu coração.

- O que houve?!

- Nada não. Eu estou com febre. Deve ser isso.

- A polícia te procura?

- Acho que não. Mas se me acontecer alguma coisa, pegue Krupskaia e desapareça, entende? Se eu não voltar amanhã, avise à minha mãe. Diga que estou com o pensamento nela. Que no futuro estaremos juntos, eu, você e Krupskaia, entende? – Vargas se ajoelha: - Eu prometo que tu não serás machucada. Eu me entrego somente a meu amor. Eu me entrego a você”.

Neste livro, pude contar: a palavra pai aparece 146 vezes. Mãe, 132. Tortura, 42. Ditadura, 63. Brasil, 309 vezes. Na verdade, o Brasil, a tortura, pai e mãe estão em todas as paginas como uma teia inescapável, clara ou implícita. Como uma razão de ser e de viver:   

“Talvez eu tenha resolvido escrever este livro porque quando moramos no Rio, minha mãe, nervosa e ainda tremendo, mas em voz clara me contou que viu o homem que a traiu e matou meu pai e seus companheiros: o Cabo. Ele torturou e matou o meu pai e seus companheiros e estava caminhando calmamente no calçadão de Copacabana em pleno Rio de Janeiro! Ele vive entre nós. Vez ou outra ele concorda em dar entrevistas e posar para a mídia local. Ele mente. Ás vezes ele tenta posar como celebridade ou como um herói da ditadura. Às vezes se faz de vítima.  Bem sabe ele que sempre que aparece é como uma ameaça velada tripudiando dos que caíram.

- Era ele. Eu o reconheci e ele caminhava normalmente como se nada tivesse acontecido”.

Hoje, no bairro recifense da Macaxeira, tem uma rua de nome Jarbas Pereira Marques. A Macaxeira é um bairro operário, da famosa fábrica de tecidos de Pernambuco. Faz sentido. No Recife das lutas libertárias, no meu romance e neste livro da filha Nadejda, Jarbas Pereira Marques continua vivo. Ele é memória indispensável deste tempo do Brasil de novos enfrentamentos. Presente, Nadejda Marques, presente, Jarbas Pereira, presente, Tercinha.  

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