A jurisdição sequestrada

"Revelou-se Favreto um raro espécime no judiciário, motivo de alento para todos aqueles que querem um Brasil melhor: mesmo tendo sua jurisdição atacada por seus colegas, que coonestaram a empáfia, e pelo topete do folguista Sérgio Moro, mostrou, com sua resistência, que, para desautorizá-lo, não basta passar sobre ele a patrola da arrogância e da bronca", diz o deputado Wadih Damous (PT-RJ); A "ruptura política" imposta por um golpe "parlamentar-judiciário-midiático" deixou "pouca margem à racionalidade", avalia

A jurisdição sequestrada
A jurisdição sequestrada (Foto: Esq.: Lula Marques - Ag. PT / Dir.: Sylvio Sirangelo)


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Em nossa história política, Lula tornou-se um personagem catalisador de fortes emoções. Jamais desperta indiferença: uns adulam, outros abominam-no. O espectro entre os dois extremos é parcamente povoado. A ruptura política imposta por um golpe parlamentar-judiciário-midiático contra sua sucessora deixa pouca margem à racionalidade. Somos hoje uma sociedade dividida entre vilões e vítimas. A depender da maior ou menor influência exercida pela mídia comercial sobre cada um, os papéis  são invertidos: ora os vilões são as vítimas, ora as vítimas os vilões. Ninguém passa incólume por esse choque do enlevo com a bronca.

Muito menos as instituições. Fortes no mito da degeneração da política e da necessidade de saneamento da vida pública nacional, seus atores escolheram lado. Digo “mito”, porque as opiniões sobre as causas da suposta degeneração não têm muito apego à realidade, antes reproduzem o conflito vítima-vilão, com Lula e seu partido no centro da discórdia.

O discurso de lustração política tem inegavelmente ganhadores e perdedores. Ganharam as corporações do serviço público. Ganhou o capital especulativo. Ganhou a cobiça internacional pelos ativos brasileiros. Perdeu a maioria da população, que vê definhando as políticas públicas de inclusão e redistribuição da riqueza. Perdeu a economia produtiva, beneficiada pela expansão do mercado na esteira da inclusão social. Perdeu o interesse nacional com a erosão do lugar do Brasil como player no mercado global.

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O Poder Judiciário e seus periféricos (Ministério Público e polícia judiciária) estão entre os ganhadores e têm exercido um papel central na crise nacional. Seu ativismo midiático lhes conferiu protagonismo político ímpar. Mantêm-se sólidos no topo da cadeia alimentar do serviço público, prestigiadíssimos com seus altos ganhos e seu poder de coerção, que guardam nítida conexão entre si. Não há administrador nem ator parlamentar que ouse enfrentar essa máquina persecutória penal, até porque muitos têm telhado de vidro e razões de sobra para se manterem longe dela. Os membros do Judiciário e seus periféricos conseguem, assim, impor todas suas demandas corporativas. Se resistência houver, passam por cima com o supremo rolo compressor, como no caso do auxílio-moradia universalizado por provimento cautelar monocrático no STF.

Algo de muito errado aconteceu com nossas instituições judiciais e parajudiciais. Na constituinte, lograram significativo fortalecimento para servirem de garantes da democracia e do Estado de Direito. Foi-lhes confiado enorme poder para se imporem sobre o Executivo. Deu-se-lhes até iniciativa legislativa em causa própria, para que ficassem distantes da disputa política e agissem altivos, sem se preocuparem com eventuais represálias. Quis-se que esses órgãos garantes de direitos não sofressem pressões indevidas e não fossem vítimas de novos autoritarismos como aquele advindo da ditadura militar, quando lhes impingiu o pacote de abril.

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No entanto, parece que tamanho poder e tamanha blindagem tornaram-os reféns de si mesmos. O absoluto isolamento social daí decorrente fez fermentar a atuação política interna, descompromissada com o resto da sociedade. Os atores dessas instituições foram picados pela mosca azul. Não há quem os convença de que são meros servidores públicos, pagos pelos contribuintes, para servirem à sociedade e não para se servirem dela nem se porem em guerra contra sua representação política.

Não há prefeito, não há formulador de políticas públicas, não há ordenador de despesa neste país que não tenha sentido a arrogância no trato com o Ministério Público. Prazos impostos com ameaças expressas de incriminação são rotina. Não existe um “por favor” e nem um “obrigado” na linguagem funcional de seus agentes. Têm o rei na barriga.

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Forçosamente somos levados a constatar que boa parte deles são meninos mimados da classe média, beneficiados por terem frequentado as melhores escolas e ingressado nas melhores universidades. Foram os primeiros colocados nos concursos públicos de decoreba, adestrados pelos mais caros cursinhos, enquanto se preparavam sem trabalhar, cevados por papai e mamãe, que os queriam importantes, nos melhores postos da república.

Acostumados a consumir, são exigentes nos seus hábitos: compram automóveis caros, vestem roupas finas, bebericam vinhos sofisticados, neles enfiando orgulhosos seus narigões e sacolejando a taça para se fazerem de entendidos em enologia. Viajam para o exterior com frequência nos sessenta dias de férias vendáveis de que gozam. Cultivam pernoites em ótimos hotéis e resorts.

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Frustram-se com qualquer desafio à sua excelência. Lidam pessimamente com essas frustrações. E reagem com histrionismo. A crise que não pode atingir seu bolso! Têm-se como incontestes corifeus da meritocracia. Vêem no concurso que lhes permitiu a investidura o bilhete-prêmio para a felicidade. Para todo o sempre! Ninguém tasca! Reforçam essa convicção com a interpretação inflada das prerrogativas constitucionais da vitaliciedade, da inamovibilidade, da irredutibilidade de ganhos e da independência funcional, por eles erigida em verdadeira soberania funcional. Na verdade, não são excelências, são majestades! Mais ainda, aspiram à divindade, como bem disse a agente de trânsito Luciana Silva Tamburini ao magistrado João Carlos de Souza Correa, parado numa blitz da Lei Seca em 2011 ao dirigir, sem carteira, um carro sem placa: “Você é juiz, mas não é Deus.” A ira dos usurpadores da divindade abateu-se sobre a insolente mortal, condenada a pagar R$ 5.000,00 a título de indenização por danos morais ao magistrado. A sentença foi confirmada por unanimidade no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em novembro de 2015.

Os atores judiciais e parajudiciais nada devem a quem quer que seja. Nem à sociedade, nem a seus atores políticos. Se Lula respeitou a autonomia orgânica do Ministério Público e não aparelhou as cortes superiores, “nada mais fez que sua obrigação”. São incapazes de reconhecer, no respeito republicano às instituições, alguma virtude no mandatário maior da nação. Sentem-se mais importantes e ninguém pode com eles.

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Essa incursão nos vícios do sistema judiciário tem muito a ver com o que tem acontecido com Lula ultimamente. Juízes, membros do Ministério Público e policiais são parte de uma casta do serviço público que não só não reconhece os méritos de Lula no fortalecimento de suas instituições, mas, muito além, cultiva uma bronca visceral, atávica e primária de quem, mesmo não sendo propriamente parte “dazelite”, imita seus hábitos e seus gostos, sem qualquer crítica. O sonho da maioria desses atores coincide com os privilégios consolidados pelo topo da pirâmide social brasileira. Correspondem aos burocratazinhos, que na Revolução Russa de fevereiro de 1917, só marcharam com o proletariado para não ficarem de fora, mas tentaram, até a última hora, garantir privilégios de sua condição na monarquia imperial, tornando-se os mais ferrenhos contra-revolucionários, aliados aos cadetes em torno do general golpista Kornilov.

Nossos burocratas privilegiados não dão pelotas para a soberania popular. Desdenham a legitimidade do voto na macropolítica. Acham-se ungidos pelo concurso público, para eles base muito mais consistente de legitimidade. Nessa condição, a popularidade de Lula lhes causa desconforto, por saberem que jamais terão esse apelo, esse grau de influência pública. Buscam compensar sua mísera e esquálida aceitação social pela atuação estrambólica, num pacto com a mídia comercial. Seu chamado “combate à corrupção” serve a isso: dar-lhes o apelo que sua enfadonha função burocrática não confere e degradar a legitimidade política aos olhos da sociedade.

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Manter Lula preso tem uma força simbólica enorme para os operadores dessa máquina judicial e parajudicial. Lula preso é um troféu precioso, o prêmio que seus atores se atribuíram para ser exibido como sinal de poder. Soltar Lula, ao contrário, põe a nu o caráter mesquinho desse esforço por prestígio corporativo e significa a submissão das instituições e da burocracia à macropolítica e a soberania popular. É tudo o que essa gente não quer.

O juiz Sérgio Moro virou um herói para os nossos cadetes. É seu Kornilov. E Lula é feito Lênin preso pela falsa acusação de ser colaborador do inimigo alemão. Mas é importante lembrar que o golpe de julho de 1917 não impediu a Revolução de Outubro. Antes precipitou-a.

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O imbroglio processual de 8 de julho de 2018 ficará indelevelmente nos anais do Judiciário brasileiro como uma página carcomida, podre e fétida, feito folha de processo velho, transformado por intenso e longevo manuseio em “bacalhau de porta de venda”, como costumávamos chamar os autos físicos de longa tramitação.

A sociedade acordou naquele domingo com a estranha e incrível notícia de que Lula estava livre. Livre do cárcere, pronto para cair de cabeça na campanha eleitoral presidencial. A ordem de soltura tinha sido dada pelo desembargador federal Rogério Favreto, no plantão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre. Serviu de base para sua decisão um pedido de habeas corpus da autoria dos Deputados Federais Paulo Teixeira, Paulo Pimenta e deste subscritor. Almejava-se forçar o Judiciário a permitir que Lula promovesse sua pré-campanha livre, em condição idêntica à de seus adversários. Pedidos para liberar Lula para dar entrevistas e participar de debates já dormitavam há mais de um mês na mesa da juíza responsável pela execução penal antecipada imposta ao candidato. A juíza não decidia e criava, com isso, intolerável desigualdade entre os disputantes na eleição presidencial.

O alvará de soltura chegou às 09:46 horas da manhã à Superintendência da Polícia Federal, onde Lula está preso. O registro consta do livro de ocorrência do plantão. A reação por parte do establishment burocrático-judicial foi de pânico. Foi dito que Sérgio Moro, cidadão de folga, que, em versão não confirmada, estaria em Portugal, quase teve uma síncope e disparou telefonemas para todo canto, inclusive para a Polícia Federal, “ordenando-lhe” que não soltasse Lula enquanto o relator dos feitos da Lava-Jato no TRF4, desembargador Gebran Neto, não fosse inteirado da situação. Deixou a polícia atordoada e paralisada. Somente às 12:00, colocou por escrito sua “determinação” de não dar cumprimento à ordem de soltura do desembargador Rogério Favreto. Tudo isso está devidamente registrado no livro de ocorrências.

O incidente escandaloso tanto pela sua gravidade, quanto pelo inusitado, clamava por correção disciplinar, no mínimo, contra o folguista usurpador da função judicante. Sérgio Moro, àquela altura, não detinha jurisdição – o poder legal de decidir as causas judiciais em curso – para qualquer medida que impedisse a soltura de Lula. Isso porque, além de estar fora do exercício da função, o processo criminal contra o ex-presidente já saíra de seu ofício para tramitar no juízo da execução penal.

Parênteses: Duas semanas antes, ainda não em folga, Moro determinara, de inopino e sem provocação, a colocação de tornozeleira no ex-ministro José Dirceu, após este ter sido solto por ordem do STF. Foi devidamente admoestado pelo Ministro Dias Toffoli, advertido de que já não mais detinha jurisdição sobre o caso. À ocasião, um humilde Moro pediu desculpas e disse que havia se equivocado. Fecha parênteses.

No entanto, ainda que estivesse regularmente exercendo a função judicante –  que não era o caso – o juiz de piso não podia dar contra-ordem a uma decisão de um desembargador do tribunal ao qual se subordina, sob a pífia motivação de que o desembargador plantonista não teria “competência” para a soltura de Lula. Não cabe ao juiz “primevo” (termo da linguagem forense, que reflete a menor hierarquia do magistrado singular diante do tribunal que a ele se sobrepõe) tecer qualquer juízo sobre a competência de desembargadores. Se a moda pega, qualquer juiz de primeiro grau, insatisfeito com a reforma de suas decisões, passará a determinar a obstaculização de sua execução! Acaba-se assim com o duplo grau de jurisdição, garantia fundamental do julgamento justo.

Pois bem: O “despacho” do cidadão de folga foi recebido, também, pelo desembargador federal Gebran Neto, igualmente afastado do exercício durante seu merecido descanso dominical. Enfurecido, toma o inexistente ato de Moro como fundamento suficiente para avocar o habeas corpus do colega e declarar inválida sua decisão de soltar Lula. É evidente que também Gebran não tinha jurisdição naquele momento de repouso, estando regimentalmente o poder de decidir afeto ao plantonista. Não há possibilidade de dois magistrados serem igualmente competentes para um mesmo processo. Judicatura não é bufê de cafeteria, onde se escolhe o petisco que vai para o prato.

Sobre a jurisdição de Rogério Favreto não pode haver dúvida. Decorre do ato que o nomeou plantonista e do regimento que lhe atribuiu competência para conceder medidas liminares em habeas corpus. O fato de o feito em questão ser destinado à relatoria de Gebran no expediente normal não envolvia a opção deste de se substituir, no plantão, ao colega plantonista. Agiu Gebran, pois, de forma ilegal, usurpando poder do colega. Pior: fez isso baseado em procedimento imaginário que chamou de “consulta” do juiz folguista, sem forma e nem conteúdo processual (“consulta” é figura inexistente no Direito Processual). Despido o subscritor da “consulta” do poder jurisdicional, esse ato nem nulo era. Era muito menos, um ato formalmente inexistente, incapaz de se prestar à provocação de uma manifestação judicial.

Rogério Favreto reafirmou sua jurisdição e estabeleceu o prazo improrrogável de uma hora para o cumprimento da ordem de soltura. A Polícia Federal, contudo, fez ouvido de mercador e enrolou para não cumprir a ordem, alegando haver duas ordens contraditórias. Enquanto isso, o presidente do TRF, Carlos Eduardo Thompson Flores, alarmado com a balbúrdia, entrou em contato verbal com o ministro Raul Jungmann, da Segurança Pública, e solicitou não cumprir a ordem do desembargador plantonista, porquanto iria dirimir o conflito entre os colegas.

Thompson Flores é outro desembargador que se desempenhou com inadmissível ativismo ao dizer - aparentemente sem ler o conteúdo da decisão do plantonista - que este teria invadido a competência da 8ª Turma do tribunal ao re-decidir matéria ali já julgada. Poderia dizer qualquer coisa, menos essa: a matéria sobre a participação de Lula na campanha presidencial era inédita e não fora decidida ainda em qualquer instância.

A Ministra Laurita Vaz fechou a confusão com chave de ouro. Na terça-feira seguinte, exarou despacho no plantão do Superior Tribunal de Justiça, juntando-se àqueles que, ao invés de agir com a serenidade que se espera de um magistrado, preferem a via do linchamento moral e público do colega. Que tempos! Não escapa dessa “vibração” raivosa nem uma juíza experiente, de décadas de atuação na justiça! Já se disse alhures que a ira é contagiosa feito espirro e bocejo! Não consegue ficar confinado numa só cachola, seja ela cachola de juiz ou não.

Laurita Vaz bateu na tecla de que o habeas corpus despachado por Favreto não continha fato novo – a pré-campanha de Lula, pois o fato de Lula ser pré-candidato não seria novidade... Com todo o respeito aos anos de experiência da Ministra, parece que não se deu conta, no seu impulso, do que justifica, ou não, a reiteração de habeas corpus, sem recair em litispendência e coisa julgada.

Para leigos, talvez seja importante explicar. O habeas corpus, entre nós, é um remédio extremo para enfrentar ilegalidades que violam o direito de liberdade – o “direito de ir e vir” – de uma pessoa. Pode ser pedido e reiterado quantas vezes necessário, sem esbarrar nos limites da coisa julgada (matéria que não pode ser reexaminada porque encerradas as instâncias de decisão) ou da litispendência (matéria que já se encontra sob exame em outro processo ainda não encerrado). Não se conhece, todavia, do pedido, quando seus contornos temáticos são absolutamente idênticos a de pedido anterior já examinado. Cuida-se, não de limitação de validade da iniciativa, mas de medida de economia processual, pois seria perda de tempo ocupar o tribunal varias vezes com o debate de um mesmo tema, sem qualquer inovação argumentativa.

Diferente, porém, é a reiteração do habeas corpus para apreciar matéria não antes aventada. Não é o fato que deve ser novo, mas o “thema decidendum” – o assunto posto a debate, pois a questão temporal, nesse remédio extremo, não apaga a gravidade da ilegalidade denunciada. Não é porque deixei de levar ao tribunal um fato grave ao tempo em que era recente que deixo de ter o direito de levá-lo agora. O tempo não apaga o abuso. Se fosse assim, não precisaríamos nem mais levar a juízo os criminosos do holocausto, porque o fato já é conhecido por todos há mais de setenta anos!

Os limites temporais, em direito, são dados pela prescrição, quando um fato tenha se encerrado, completado. A lei então prescreve o lapso de tempo durante o qual se pode levar aquele acontecimento passado à apreciação de um juiz. Mas evidentemente isso não vale para a violência ainda em curso, a denegação do direito de Lula fazer pré-campanha como todos os outros pré-candidatos! É irrelevante, para levar ao Judiciário, se o fato da candidatura de Lula é notório ou não. Não é a notoriedade que desqualifica a novidade da matéria posta à decisão da corte.

Para quem é do ramo, essas considerações são tão elementares que seria de estranhar não tenha a Ministra Laurita Vaz domínio delas. Não seria crível. Trata-se de magistrada de notório saber jurídico e larga experiência judicante. As razões do aparente tropeço devem ser procuradas alhures, certamente no impacto emocional, para não dizer pânico, que qualquer feito relacionado a Lula causa no nosso Judiciário.

O debate levado à apreciação do desembargador de plantão era efetivamente novo e não implicava revisão dos mesmos fundamentos de pedidos já julgados! O que poderia ser discutido, em tese, era a urgência do pleito de pré-campanha a ponto de ser levado ao plantão do TRF. Mas juízes são independentes até para avaliar a urgência, ou não, de um provimento judicial. Têm o poder inerente de estabelecer os limites de sua própria competência (o que os alemães chamam de Kompetenzkompetenz), de dizer, sem qualquer interferência, se os pressupostos de sua atuação estão presentes. Não cabe a outros juízes atropelar o competente para desfazer publicamente essa avaliação. Revê-la é possível, mas pelos meios e vias regulares estabelecidos pelo Direito Processual. A balbúrdia midiática definitivamente não é um substituto idôneo do devido processo legal.

O pior de tudo nesse episódio desmoralizante para o Judiciário brasileiro é que todo barulho seria rigorosamente desnecessário. Fosse cumprido o rito processual normal, o habeas corpus, depois de liberado Lula, seria encaminhado na segunda-feira à decisão do relator prevento, Gebran Neto, que poderia, sem qualquer estrépito, revogar a ordem de livramento e, depois, submeter a matéria ao julgamento da turma. Com serenidade e altivez. Mas, não. O desespero de Moro, típico de um Smeargol do romance épico do “Senhor dos Anéis”, prestes a perder seu “precious”, não condisse com o distanciamento sentimental que se exige do magistrado na relação com os feitos sob sua responsabilidade. Cometeu verdadeira sedição contra o tribunal, ao pretender obstar a execução de uma ordem do desembargador plantonista. Ultrapassou todos os limites, ao querer decidir processo que não era seu durante as férias no exterior. Talvez sequer se lembrasse que a jurisdição brasileira se exerce no território nacional e não fora dele.

O episódio escandaliza pelo tamanho da teratologia. E Moro prova a todos que não tem qualquer isenção para julgar Lula. Assim como Gebran e o presidente Thompson Flores, todos acometidos do frenesi punitivista contra quem elegeram para inimigo do Judiciário e de sua corporação.

Do que aqui foi relatado e deveria corar de vergonha qualquer jurista brasileiro sério, pode-se concluir, independentemente do juízo sobre o acerto ou a falha da decisão que proferiu, que o único ator que merece ser tratado, nesse palco, de Magistrado, com “M” maiúsculo, é o desembargador Rogério Favreto, que heroicamente defendeu sua jurisdição e não baixou a cabeça à prepotência ignorante. Lutou com coragem e determinação, dando exemplo a se seguir, para que a guerra das corporações não chegue ao jurisdicionado comum, que por enquanto ainda assiste impassível à encarniçada batalha pelo poder à margem dos cânones constitucionais.

Revelou-se Favreto um raro espécime no judiciário, motivo de alento para todos aqueles que querem um Brasil melhor: mesmo tendo sua jurisdição atacada por seus colegas, que coonestaram a empáfia, e pelo topete do folguista Sérgio Moro, mostrou, com sua resistência, que, para desautorizá-lo, não basta passar sobre ele a patrola da arrogância e da bronca. É preciso seguir o devido processo legal, agindo com imparcialidade e respeitando a publicidade dos atos jurisdicionais, não satisfeita com telefonemas disparados nas costas dos impetrantes e do paciente, numa verdadeira subversão do republicanismo. Ficou patente, para a sociedade, graças à envergadura de Favreto, que Lula é, tal e qual a jurisdição sequestrada pelo TRF, um cativo privado da sanha corporativa. Até que – quiçá – o STF diga melhor!

 

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