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Entrevistas

“Para o bem do Brasil, o lulismo não pode acabar nunca”, diz Mujica ao Brasil 247 em sua casa no Uruguai

Ex-presidente uruguaio concedeu entrevista histórica ao Brasil 247. Confira

Luiz Inácio Lula da Silva e José Pepe Mujica (Foto: Ricardo Stuckert)
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Por Marcia Carmo, correspondente do Brasil 247 em Buenos Aires – O ex-presidente do Uruguai José ‘Pepe’ Mujica entende que o lulismo é necessário para o presente e para o futuro do Brasil. E que é preciso cuidá-lo para o bem de todos os brasileiros. 

“É preciso que se transforme o lulismo em um pensamento de longo prazo. Porque essa é uma batalha muito longa, que vai além da vida do Lula”, disse Mujica durante entrevista exclusiva ao canal Brasil 247, na cozinha da sua casa em Montevidéu. Amigo do presidente Lula, com quem costuma conversar, Mujica acredita que as políticas sociais do governo brasileiro são essenciais para o combate à desigualdade social brasileira. E, na sua visão, Lula é o que chamou de “fora de série”. 

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“Lula representa o Brasil relegado, ferido racialmente, desprezado, o nordeste, os negros... É por isso que o nordeste vota nele desse jeito”, disse, diante da nossa câmera.

Por isso, para o ex-presidente uruguaio, o lulismo não pode ser interrompido. “A força (política e participativa) de uma organização precisa de uma coluna vertebral. Estas propostas não podem ficar pelo caminho”, disse.

Mujica recebeu a reportagem do Brasil 247 em sua chácara, numa área rural a 35 quilômetros do aeroporto de Montevidéu. O encontro foi na sexta-feira, 25 de abril, um dia antes de o ex-presidente ser diagnosticado com um tumor maligno no esôfago. No dia da entrevista, Pepe Mujica não imaginava o que o esperava no dia seguinte. Estava entusiasmado ao falar sobre o Brasil, o mundo e sobre sua própria vida, que já virou filmes e livros.

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Na longa conversa, ele falou sobre o ex-presidente Bolsonaro (“personagem perigoso”), sobre o presidente da Argentina, Javier Milei (“contraditório”), sobre o ex-presidente e candidato novamente à Casa Branca, Donald Trump (“perigo para a democracia mundial”), sobre Elon Musk (“desperdício brutal de dinheiro em foguetes, sem se importar com os seres humanos de carne e osso”), sobre sua defesa de que o Estado deva ser quem fornece maconha aos que a consomem e sobre como a esquerda pode enfrentar o avanço da extrema-direita. Ex-líder guerrilheiro do Movimento de Liberação Nacional-Tupamaros, Mujica recordou como sobreviveu aos mais de 12 anos na prisão, incluindo quase dez numa solitária. Na conversa tête-à-tête, numa tarde chuvosa e fria, lembrei a ele do filme sobre sua vida no cárcere.

“Dura, né. Eu passei 12 anos na prisão, quase 13. E passei sete anos sem livros. Sem poder ler. Depois me deixavam ler ciência, só isso. Porém, esses foram os anos, naquela solidão, em que eu mais aprendi. Porque aprendi a pensar e me fiz algumas perguntas, daquelas para as quais é preciso ter muito tempo. O que nós, os humanos, somos? O que vem no disco rígido da natureza? E quais são as coisas adquiridas pela civilização ao longo do tempo em que vivemos? Porque a grande pergunta veio acompanhada desta outra pergunta: 'Não estamos brigando com o disco rígido?'. E eu não conseguia dar respostas porque não tinha... então eu disse 'a resposta deve estar na antropologia'. Mujica contou que os livros que leu entre os 16 e 22 anos de idade, antes de entrar para a luta armada, salvaram sua vida atrás das grades. 

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“Eu passava seis, sete horas em uma biblioteca pública. Li de tudo. Filosofia antiga e tempos modernos. A história da arte pilluana. Todos os clássicos espanhóis, começando por Cervantes, que eu adoro, até Kant, até Hegel, até... bom... Depois eu contraí o vício da misantropia, de falar comigo mesmo, que dura até hoje. Eu trabalho na terra porque vou pensando.”, disse. Até poucos dias, Mujica costumava falar com ele mesmo enquanto percorria sua chácara com o trator a cada manhã. Agora, num ritmo mais lento por sua saúde, poderá concentrar seu amor pela terra através do cuidado das suas flores, mas, provavelmente, sem dirigir seu trator.

Mujica disse que, ainda hoje, nunca se sente sozinho. Que aquele hábito adquirido na prisão, nos anos sessenta e setenta, de falar com ele mesmo continua até hoje. Mas não é por isso que dorme mal. E, rindo, revela. “Imagina se eu durmo bem! Tenho que levantar cinco ou seis vezes para urinar. Eu tenho os problemas que qualquer velho tem! Mas os meus não são problemas aqui, de consciência, essa está bem, o problema é que o corpo está velho! Por isso eu me preocupo. O Lula está muito bem, está duplamente bem, porque reencontrou o amor, acho isso importante, muito importante para tonificá-lo.”

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Tudo o que Mujica diz transmite sabedoria. Para ele, por exemplo, a América Latina deveria mudar de nome e se chamar ‘Continente Amazônico’, porque tudo o que acontece na Amazônia afeta o planeta e, além disso, recordou América Latina foi um nome imposto pelos colonizadores, excluindo os indigenas e os escravizados. E que a situação na Venezuela ocorre porque ela é rica demais em petróleo e sofre pressões externas. Ele está preocupado com a eleição presidencial do dia 28 de julho.

Mujica falou sobre a vida e sobre a morte – jamais em tom dramático e lembrando que tem 89 anos (que fará no dia 20 deste mês de maio). Mujica só alterou o tom da voz quando falou sobre o ex-presidente Bolsonaro. “Vejo Bolsonaro como um personagem perigoso, mas também meio louco. Por quê? Por coisas tão malucas como dizer… estavam enterrando gente aos montes, e ele diz que é 'uma gripezinha'. Merda. Diante de uma evidência que salta aos olhos, ele diz que é ‘uma gripezinha’. Essas não são coisas de direita ou de esquerda, são coisas...Havia uma evidência que saltava aos olhos. Eles estavam cavando buracos com pás mecânicas para enterrar pessoas.” Para ele, os que ainda apoiam o ex-presidente e formam o bolsonarismo refletem os efeitos das notícias falsas. “Tem gente que se confunde e também porque o nosso tempo é muito dominado pela mídia... e de tanto martelar, as informações falsas conseguem penetrar. É o que Goebbels disse, uma mentira repetida milhares de vezes, é verdade. Ela não apenas entra, mas fica incrustada. Então tem gente que fala ‘Lula é ladrão’ e isso e aquilo, mesmo que os fatos mostrem o contrário, mas não tem jeito”, disse Mujica na entrevista exclusiva ao Brasil 247.

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A cozinha da casa de Mujica e da sua companheira, a ex-vice-presidente e ex-senadora Lucía Topolansky, tem as paredes cobertas de livros, com espaço para as compotas de tomate, que ele gosta de cozinhar e que aprendeu a fazer com a mãe dele, e uma caixa de madeira, que ganhou com charutos de Fidel Castro. Mujica guarda os cadernos escritos a mão que ganhou do ex-guerrilheiro Ernesto ‘Che’Guevara. São os tesouros do ex-presidente.

“O senhor passou 12 anos na prisão, incluindo anos na solitária, foi senador, ministro, presidente. Como o senhor se define?” Mujica reflete antes de nos responder. “Eu, filosoficamente, sou muito antigo. Eu sou um estóico”. Por que? “O estoicismo é uma filosofia muito antiga, começou antes de Cristo. É algo muito antigo. Para mim, a pessoa pobre é aquela que precisa de muita coisa. Porque se alguém precisa de muita coisa, nada é suficiente. Ou, pobre é, como dizem os aimarás, aquele que não tem comunidade, aquele que está sozinho no mundo. Eu tenho muitos companheiros, eu não sou pobre. A pobreza não é material, é outra coisa. Meu sentido de vida é viver com muita sobriedade. Com o necessário para viver. Só isso, é só disso que eu preciso. Nada mais”.

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Para Mujica, o capitalismo e a cultura do consumismo geram pessoas eternamente insatisfeitas, inconformadas. A primeira pergunta da entrevista foi que conselho o senhor daria à esquerda latino-americana diante do avanço da extrema direita na região? A resposta dele: “É preciso enriquecer a teoria e o pensamento. É preciso ter atitude. Uma das atitudes é fazer uma pergunta que começa: as pessoas são mais felizes do jeito que vivemos? Porque não é só um problema de dinheiro. Aqui tem um problema: nós temos apenas uma vida. E essa vida acaba. Inequivocamente. A grande pergunta é: 'somos felizes com essa vida?' Temos mais carros, temos mais conhecimentos, curamos mais doenças, mas somos mais felizes? Eu acho que não. Muitas pessoas precisam tomar remédio para dormir.”. Mujica não toma remédio para dormir. Costumava tomar um copo de vinho junto com seu churrasco na hora do almoço, mas esse hábito foi suspenso depois do seu problema de saúde.

Insisto. Mas por que a extrema-direita avança? O que está ocorrendo? Por causa da desigualdade social? Porque as pessoas não percebem respostas da esquerda?

“Tem várias coisas. O capitalismo, nesta fase, criou uma cultura subliminar. Ele precisa que nós sejamos consumidores. Mas isso não é conhecimento intelectual, é o domínio das nossas emoções. Porque o capitalismo precisa que a gente compre, compre e gaste. E que a nossa vida seja orientada para comprar e gastar, e comprar e gastar novamente. O capitalismo não domina porque tem o exército, porque tem a lei. Sua força principal é porque é o criador de uma cultura subliminar que nos domina. Então, a ansiedade que carregamos dentro de nós, que por isso confundimos ser com ter, nos deixa sempre insatisfeitos, porque temos uma ansiedade que chega ao ponto de nos frustrar. Principalmente as gerações mais novas se sentem frustradas se não conseguem consumir e consumir.”

Quando perguntado se personagens políticos como Milei teria compreendido esse tempo atual e passado a mensagem para o eleitorado que o apoiou nas urnas, Mujica respondeu quase que com a mesma indignação que demostrou ao falar sobre Bolsonaro.

 “Claro, porque eles apresentam o horizonte. Eles estão apresentando uma mentira, o horizonte de que todas as dificuldades são consequência das políticas do Estado e que, por isso, cada indivíduo deve se tornar o rei de si mesmo, e empurrar e empurrar. Acaba sendo, na verdade, a liberdade da raposa dentro do galinheiro. Porque no mundo, se considerarmos as cem maiores concentrações econômicas que existem, cinquenta são países, mas mais de cinquenta não são países, são empresas transnacionais gigantescas, que têm um PIB superior ao de um país. E elas não têm bandeira, não estão nas Nações Unidas, não têm hino. Mas têm o peso real de um Estado devido à brutal concentração econômica. E esse fato não pode ser ignorado por nenhum governo. Acreditar que liberdade é como eles dizem é uma fantasia, porque a liberdade está rodeada por um monstro econômico que se desenvolve e que se não existir um Estado que coloque um freio e organize, é como pedir aos peixinhos que vivam num cardume de tubarões.” 

Citei o fato de Milei ser admirador do empresário Elon Musk e de que Bolsonaro o defendeu em um discurso recente na praia de Copacabana. “Claro, a liberdade de Musk! Um homem que se dá ao luxo de organizar foguetes para ir à estratosfera observar... Claro, é a liberdade do grande capital para fazer o que quiser e organizar o que quiser. E poder organizar esse desperdício brutal sem se importar com o que acontece com os seres humanos de carne e osso. E aqueles de nós que pensam que o Estado deve procurar ajudar a equilibrar as coisas que o mercado não consegue resolver, porque não podemos pedir ao mercado que tenha piedade dos idosos destroçados ou das crianças abandonadas porque isso não é negócio! Mas como somos humanos, não podemos cruzar os braços e deixá-los pelo caminho. Porque eles são seres humanos.” Para Mujica, estão faltando solidariedade e colaboração entre as pessoas. Que esse é o sentido da vida. E a esquerda conhece bem esses princípios e é com eles que poderá enfrentar o desafio do crescimento da extrema-direita no mundo.

“A esquerda precisa reconstruir o seu arsenal de ideias. A esquerda precisa levar em conta as contribuições da neurociência, as novas descobertas. É verdade que a concorrência multiplica as opções. Mas, em última análise, o que mais multiplica o progresso é a colaboração. Não, não, querem nos colocar em um mundo onde a única coisa que existe é que eu compito contra você e você contra mim. Mas na humanidade nós temos problemas que estão pedindo colaboração.”

Quando Mujica foi presidente (2010-2015), o Uruguai foi o primeiro país do mundo a autorizar o consumo recreativo da maconha e foi autorizada a abertura para a plantação e produção de cannabis para uso medicinal. Ele acha que hoje é preciso ir além dessas iniciativas. 

“Eu penso muito mais longe. Acho que temos dois problemas: temos o consumo de drogas que acaba sendo uma doença, mas como é uma coisa clandestina e perseguida está nas mãos do narcotráfico, e como é um monopólio a favor dos audazes, produz um taxa de lucro que acaba corrompendo tudo. E a humanidade vem reprimindo há cinquenta anos, e nós fracassamos e fracassamos. O que eu acho é que essas coisas deveriam ser tratadas pelo Estado. O serviço público tem que abastecer quem quer consumir, mas deve controlar o que é consumido. Por quê? Porque aqui existe um problema de quantidade. Se eu tomar um ou dois uísques todos os dias, pode não me fazer bem, mas é suportável. Agora, se eu beber uma garrafa todos os dias, serei um alcoólatra, portanto,sou uma pessoa doente, e se eu for uma pessoa doente, tenho que ser tratado, o Estado tem que me tratar, mas para isso ele tem que me tratar a tempo! Como o Estado pode me tratar a tempo se ele não sabe o que eu estou consumindo? E a forma de derrotar o tráfico de drogas é deixá-lo sem mercado. Porque senão é um monopólio a favor dos audazes ​​com uma taxa de lucro bárbara. Estamos fracassando policialmente. Os Estados Unidos fracassaram com tudo o que têm... O que nós vamos fazer? Estamos loucos? Mas é uma mudança na política mundial. E o mundo é governado por veteranos. Pessoas que esqueceram como eram quando eram jovens. A pior coisa que você pode fazer é proibir algo a alguém jovem. Porque se você proíbe, isso desperta a curiosidade deles e eles vão direto, até mesmo por rebeldia.”. Lembro que no Brasil, recentemente, o Senado aprovou, no primeiro turno, a criminalização de drogas, incluindo a maconha, sem importar a quantidade. A reação de Mujica. “Isso é encher as prisões por bobagens. Porque se eu vou colocar um menino na prisão por fumar cigarro de maconha, estamos loucos, estamos loucos. Tenho que educá-lo e tratá-lo de maneira diferente. E eu tenho que convencê-lo, maluco, não vai por aí. Não dá para resolver na marra. Pelo contrário, vão amontoá-los nas prisões”. 

Na entrevista exclusiva ao Brasil 247, Mujica explicou que ele não acredita em Deus, mas que o fato não o impede de ser amigo do Papa Francisco – que para ele é um jesuíta com profnda sensibilidade social – e entender quem pratique uma religião. Quando perguntado sobre o crescimento das igrejas evangélicas, especialmente as pentecostais na América Latina e, principalmente, no Brasil, ele disse: “Existem 4.200 religiões, mais ou menos, no mundo. E 60%, 70% da população mundial acredita em alguma coisa. Porque o ser humano tem perguntas dentro de si, sem respostas, que nunca poderemos responder. Então nós nos refugiamos naturalmente, pelo amor que temos à vida, mas nós estamos condenados a morrer, e não queremos morrer, mas morremos inevitavelmente.” A religião, entende ele, é um apoio e ele respeita quem a tem, mesmo sem acreditar em Deus. “Não acredito em Deus, mas respeito muito quem acredita, porque é um consolo, e isso é explorado. As perguntas “de onde viemos” e “para onde vamos” não têm respostas. Por isso, nos aturdimos em encontrar uma resposta. Somos animais utópicos, precisamos acreditar em alguma coisa”. 

José ‘Pepe’ Mujica acredita na política e na possibilidade de aprender a cada dia. Por isso, continua sendo um leitor assíduo, uma cabeça ativa e atenta e amigo das pessoas que admira, como o presidente Lula. Quando a câmera já estava desligada, comento que ele citou que Lula tem um amor (Janja) e ele também. A ex-senadora Lucía Topolansky, como ele militante política desde a juventude, e quem sempre está perto dele. “Sem ela, eu não estaria vivo”, confessa. Quando soube da notícia sobre seu tumor, liguei para eles. Ela atendeu. “Vamos lutar. Sempre lutamos. Mas todos sabemos que chegamos para partir. Pepe está bem”, disse. Força Mujica. Força Lucía.


* Marcia Carmo é jornalista e correspondente do Brasil 247 na Argentina. Mestra em Estudos Latino-Americanos (Unsam, de Buenos Aires), autora do livro ‘América do Sul’ (editora DBA)

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