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Valéria Dallegrave

Jornalista, escritora e dramaturga

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As engrenagens da Fantástica Fábrica de Golpes

Para comentar o filme, é preciso primeiro falar sobre Muito Além do Cidadão Kane, que mostra as vísceras da relação entre mídia e poder no Brasil

(Foto: Divulgação)
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Para comentar A Fantástica Fábrica de Golpes, de Victor Fraga e Valnei Nunes, dois jornalistas brasileiros radicados no Reino Unido, é preciso primeiro falar sobre Muito Além do Cidadão Kane, um documentário britânico de Simon Hartog feito para a TV, exibido em 1993 pelo Channel 4, emissora pública do Reino Unido. Ele mostra as vísceras da relação entre mídia e poder no Brasil, em especial entre a Rede Globo e a ditadura militar. O nome do documentário trata da comparação de Roberto Marinho com Charles Foster Kane, personagem ficcional de Cidadão Kane (1941), baseado em empresário real estadunidense*.

Em Muito Além do Cidadão Kane, ficamos sabendo que a criação da Rede Globo contou com o apoio da ditadura militar e dos EUA, através do conglomerado Time Life, atual Time Warner. A partir daí, são narradas as interferências feitas pela Globo na vida política e social brasileira, com destaque para a distorção da cobertura do movimento Diretas Já e a edição manipuladora do debate final entre Lula e Collor (1989).

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Herdeiro de Muito Além do Cidadão Kane, A Fantástica Fábrica de Golpes inicia com uma retrospectiva histórica da manipulação midiática, entranhada na cultura brasileira e na disputa pelo poder. É relatado o caso ocorrido em 1913, quando o jornal A Noite, para gerar manchete, coloca uma roleta no centro do Largo da Carioca, no RJ. O episódio virou letra de samba, “Pelo Telefone” (Donga), o primeiro samba registrado no Brasil.  

Os entrevistados compõem um mosaico internacional para a fábrica de golpes (banal como uma fábrica de panelas): Entre eles, Altamiro Borges (presidente do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé), John Ellis (produtor de Muito Além do Cidadão Kane), Geoffrey Robertson (advogado de direitos humanos internacional), Roberto Requião, Benedita da Silva, Dilma Rousseff, Márcia Tiburi, Chico Buarque, Glenn Greenwald, Adolfo Perez Esquivel (Nobel da Paz), Celso Amorim, Breno Altman e Jean Wyllys.

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Resgatando trechos de Muito Além do Cidadão Kane, a produção atual  trata da relação íntima entre o surgimento da Rede Globo e a ditadura, com benesses especiais como a isenção de impostos. Altamiro Borges conta sobre o início do conglomerado, quando o jornal O Globo se colocou em oposição à lei do salário mínimo e à construção da Petrobrás e teve seus carros atacados pelo povo nas ruas, após o suicídio de Getúlio Vargas. Sobre o golpe militar, conta que o jornal  ostentou, no dia seguinte “Ressurge a Democracia”, dando a entender que os militares faziam parte da providência divina, e protegiam o povo de suposta ameaça comunista. Sob a proteção dos militares, a família Marinho adquiriu força excepcional no controle e manipulação da opinião pública, dominando vasto espectro da mídia: TV, rádio, internet, agência de notícias, produtora de filmes... 

John Ellis, produtor de Muito Além do Cidadão Kane, considera que a Globo nunca poderia existir na Grã Bretanha, onde a legislação de regulação de rádiodifusão garante uma cobertura equilibrada das notícias. Lembremos que no Brasil qualquer tentativa de regular essas legislações é imediatamente taxada de censura. Não é apenas o trauma de uma imprensa que viveu a censura na ditadura militar, como alguns querem dizer. O assunto tornou-se tabu porque não interessa aos donos do poder.

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A deputada Benedita da Silva aponta a grande mídia como protagonista do golpe de 2016, mas Dilma Roussef ressalta outros atores importantes em uma articulação que contou com setores políticos e segmentos do mercado financeiro.  Dilma também fala sobre a forma de funcionamento da Lava-Jato, que investigava e vazava as informações para a mídia, principalmente para a Globo, com o objetivo de desmoralizar Lula e o PT. Roberto Requião descreve o que ocorreu no Brasil como um golpe parlamentar/judicial/midiático, diferente dos golpes militares, mas já testado em Honduras (2009), com Zelaya, e no Paraguai (2012), com Fernando Lugo. Breno Altmann explica que tal golpe híbrido busca ter um verniz legal. Márcia Tiburi acrescenta a misoginia como característica do conluio que derrubou a Presidente Dilma e Celso Amorim cita uma homilia do Papa que explica como são dados os golpes hoje em dia. As etapas dos mesmos são: maledicência, campanha de mídia, atuação do judiciário e, por fim, o golpe.  

Requião também destaca a imposição de uma narrativa por parte da Globo para o Brasil, com a imprensa européia repetindo os meios de comunicação daqui. Glenn Greenwald conta que fora do país era difícil entender os acontecimentos, e se comprava a ideia do povo brasileiro lutando contra um governo corrupto.  A associação do nome de Lula à corrupção fez com que mesmo parte da imprensa internacional perdesse o interesse por ele. 

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Ken Livingstone, prefeito de Londres de 2000 a 2008, revela que a imprensa internacional também trata políticos progressistas com parcialidade.  Segundo ele, os medos da mídia do mundo capitalista fazem qualquer redistribuição de riquezas ser considerada comunismo. Esse não é, portanto, um fenômeno brasileiro. Dilma conta que esteve em Londres em maio de 2018, e concedeu ao The Guardian uma entrevista sobre o golpe que nunca chegou a ser publicada.

Adolfo Perez Esquivel menciona a existência de um sistema que regula a situação e a comunicação, incidindo sobre a consciência coletiva dos povos que não têm consciência crítica. Ele lembra que a América Latina sempre foi vítima da intervenção dos EUA, que a consideram seu quintal, e por isso se julgam no direito de patrocinar golpes aqui para defender seus interesses geopolíticos. 

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Ficamos sabendo ainda que o uso do lawfare (a lei usada como tática de guerra), aliás, é relacionado a um encontro estadunidense para o aperfeiçoamento do poder judiciário na América Latina, tema da primeira conferência das Américas (1994/Miami), que lançou programas de aperfeiçoamento do poder judiciário na AL com concentração da justiça na luta contra o terrorismo e a corrupção. Além do lawfare, a manipulação midiática é importante nos golpes, e pode acontecer de diversas formas, omitindo, dando destaque, escolhendo imagens que falam por si, entrevistando mais quem apoie ou quem critique, e até censurando determinados temas. Entre os exemplos de censura recente citados está o caso Chico Pinheiro e a proibição de mencionar o  nome de Chico Buarque na Globo. O compositor, ícone da MPB, que teve sua imagem atacada por fakenews, observa que a emissora é liberal nos costumes, mas apenas nisso. Ele também lamenta ter “perdido” sua música “Pelas Tabelas”, da década de 80, quando camisas amarelas e o ato de bater panelas tinham um significado completamente diferente de hoje, pois eram associadas à luta pelas Diretas Já. As panelas, novamente – que, do ponto de vista estético do audiovisual, poderiam ter sido melhor aproveitadas para marcar o ritmo da “produção de golpes”.O papel não só da Globo no golpe de 2016, como da imprensa em geral, é tema para os entrevistados discorrerem, assim como a campanha de ódio. Márcia Tiburi, que precisou sair do país por receio de ameaça a sua integridade física, avalia que hoje o antipetismo no Brasil é como o antisemitismo na Alemanha nazista, e atingiu não só o PT, Lula e Dilma, mas todos que se aproximaram deles. As fakenews, que aumentaram o ódio criado pela grande mídia tentaram até forçar um revisionismo histórico, tal qual fez o nazismo quando imputou aos judeus a culpa pelos problemas econômicos da Alemanha nos anos 30, como se todos fizessem parte de uma grande conspiração.

É preciso assistir ao documentário com atenção, pois há diversas informações. Os acontecimentos dos últimos anos mostram que nossa história precisa ser alvo de  grande reflexão, a fim de que se interrompa a espiral do golpismo, em um amadurecimento democrático real. Não se trata apenas do golpe de 2016, ou do golpe militar de 64. O país carrega cicatrizes de vários golpes. Em 1823, na Noite da Agonia, foi dissolvida a Assembleia Constituinte da primeira constituição do país. Em 1831, a insubordinação das tropas levou Pedro I a abdicar do trono. Em 1840, houve o “golpe da maioridade”, quando é adiantada a maioridade de D.Pedro II e inicia o Segundo Reinado. A própria independência é considerada um golpe contra os movimentos sociais, principalmente o movimento abolicionista. E a proclamação da República? Golpe, claro!

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Mas não é apenas no Brasil que se sucedem golpes, muitos países da América Latina e do mundo vivem essa realidade. Após cada golpe, aqueles que os promovem fazem questão de cultivar a ideia de normalidade na sociedade, para que tudo seja esquecido. Falta aos povos atingidos uma perspectiva histórica sobre o presente. A imprensa atual, conivente com os donos do poder e rendida ao imediatismo cede pouquíssimo espaço a reflexões históricas, principalmente sobre a fábrica de golpes – em que panelas deixam de conter comida e se enchem de baratas. É muito bem-vindo, portanto, o documentário de Victor Fraga e Valnei Nunes, que joga luz sobre tramas ocultas na grande mídia nacional e internacional. É preciso esclarecer o público sobre este sistema cruel de manipulação dos povos,como diz Esquivel, quando ressalta: a pior monocultura é a das mentes.

DICAS

Muito Além do Cidadão Kane (Beyond Citizen Kane) 1993 - Filme de Simon Hartog, exibido em 1993 no Brasil. Sua exibição foi proibida depois disso, e surgiram diversas cópias piratas, exibidas em sindicatos e universidades em sessões clandestinas. O documentário foi alvo de uma batalha jurídica entre as Organizações Globo e o Channel 4 por muitos anos. Depois que a Globo perdeu a causa, tornou-se amplamente visualizado. Está disponível, na íntegra, no youtube. 

Condor/2007, dirigido por Roberto Mader. Fala da operação Condor, cooperação entre governos militares sul-americanos que resultou no sequestro e assassinato de milhares de pessoas e no exílio de tantas outras. (1080) Condor - O Filme - YouTube *Cidadão Kane (Citizen Kane) 1941 – de Orson Welles – ficcional, baseado na vida do magnata estadunidense das comunicações William Randolph Hearst. Uma crítica ao capitalismo. Está disponível para ser alugado no youtube.

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