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Valéria Dallegrave

Jornalista, escritora e dramaturga

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De Lázaro a Jair, a dor de mais de quinhentos mil mortos

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O silêncio que nos aprisiona hoje é o medo de lidar com a dor. Para superá-la, entretanto, precisamos encará-la de frente. É importante conhecer melhor o que houve com quem foi acometido pela forma grave do coronavírus, e consta no número enganoso de “salvos”, que minimiza a gravidade da doença e ignora reincidências comprovadas. A dor e o sofrimento de vítimas e familiares não pode ser ignorada. Os sobreviventes sofrem diversas sequelas, físicas e psicológicas, sobre as quais pouco se fala - muitas nem conhecemos direito ainda. Não é apenas fraqueza, perda de paladar e/ou olfato.

Há quem, ao descobrir que a crise de sinusite se tornou um grave comprometimento dos pulmões, tenha se desesperado com o isolamento no hospital, e com a certeza de que iria morrer. Já os medicamentos usados no atendimento médico podem trazer graves consequências, como fragilizar o coração ou levar à perda temporária de parte da visão. As sequelas envolvem dor de cabeça crônica, diabetes, fraqueza muscular, perda de mais de vinte quilos, delírios, etc. Acordar da sedação, sobrevivendo ao virus, traz o constrangimento de se descobrir cheio de fios, com fraldas e sondas pelo corpo...

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E quem não sobrevive!? Em grande maioria, também não é citado nos jornais, apenas como parte de um número, de até 4.249 mortes diárias - até agora -, em um total de mais de quinhentos mil desde o início da pandemia. Para romper este silêncio faço, a seguir, uma homenagem a todos que partiram, citando algumas dessas pessoas inestimáveis:

Tio Lazinho, Lázaro Gomes de Moraes Neto, 65, um músico nato, aprendeu sozinho a tocar violão, piano e gaita, para alegrar sua vida e a dos seus. Além disso, transformava sucata em arte, podia criar do nada um móvel único ou, com seu grande coração, dar um jeito de fazer um novo brinquedo para a criançada, um verdadeiro Papai Noel. Dona Adair Benedita da Silva, 61, também gostava muito de presentear, e doava às visitas mudas das flores do seu jardim, espalhando beleza e delicadeza ao redor. E sabedoria: “quem sabe o que planta, recebe a colheita, a melhor de todas”, dizia.

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Dona Acassia, com nome de flor, comemorava a vida dançando. Aos 59 anos, com sete netos, apresentando problemas de artrose, não se negava a uma festa, a cantar e dançar, mesmo que tivesse que ser sentada. Nos intervalos da música, certificava-se que todos se alimentavam bem, e contava histórias de vida.

Seu Abdon, 82, tinha mais histórias incríveis para contar, que cuidava de apimentar com muita graça, gostava de fazer rir. Após anos sem faltar um dia ao trabalho, aposentou-se e criou uma nova rotina de vida: Pouco antes do almoço, colocava os óculos escuros e ia ao barzinho perto de casa tomar duas cervejinhas. Depois da refeição, pegava um palito de dentes na caixa de sapatos (uma excentricidade sua) e ficava na rede, olhando as árvores dançarem com os pássaros no céu azul. Quando parecia estar dormindo, saía subitamente com a frase preferida nessas horas: “Como Deus é perfeito”.

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Laura, 22, também sabia apreciar a beleza deste mundão de Deus. Amava os animais e a natureza, e colecionava pores de sol. Tinha a saúde frágil, embora não parecesse, em decorrência do lúpus. Mas isso não era motivo para viver com menos paixão ou cuidado pela família. Desfrutava a alegria das coisas simples da vida, como sair em passeios com o namorado para tomar açaí e dividir com ele os sonhos de um futuro em comum. 

Seu Jair Sabóia Dantas, 80, criou uma aventura especial com a neta Thainá, levá-la para tomar açaí escondido. Ia buscar todos os netos na escola, colocava o boné e saía na bicicletinha vermelha para encontrá-los. Tinha cinco filhos e nove netos. Gostava de ajudar a todos, a quem ensinava o grande valor de um pão com mortadela e um cafezinho. Viveu cinquenta e três anos com o amor de sua vida, dona Augusta Machado Dantas, 77, que com muita fé realizou o sonho de abrir um negócio próprio, a lojinha de doces. As deliciosas guloseimas da Vó Guta eram a alegria dos netos, cujos sonhos cuidava de adoçar com carinho. Tinha, porém, um pequeno defeito: esquecia sempre alguma coisa na lista do mercado, o que fazia seu Jair ter que ir e voltar diversas vezes, e os tornava um casal perfeito, pois quando alguém sugeria a ele que descansasse, retrucava: “se parar, enferruja”.

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Tio Lazinho, Dona Adair, Dona Acassia, Seu Abdon, Laura, Vó Guta e Seu Jair, como muitos outros, partiram precipitadamente em 2020, devido a contaminação por coronavírus. Não são números  nem personagens, mas pessoas reais*. Cada um deles fazia do mundo um lugar especial para alguém, e por respeito à memória deles é preciso lembrar que a vida é preciosa e única.

Embora em acidentes aéreos a imprensa trate de retratar o drama de cada um dos passageiros, os mortos pelo coronavírus no Brasil, que deveriam ser diariamente chorados por nós, são invisibilizados, assim como a dor pela sua perda. Muitas vezes, têm o motivo de sua morte negado por familiares, que julgam parte de alguma ideologia proibida a admissão do contágio por coronavírus. Ou ainda, como as vitimas de estupro, são considerados os únicos culpados pelo desfecho de suas histórias: um não se cuidou, outra esperou demais para ir ao médico, outro “ousou” brincar com os netos ou “deu uma escapadinha”.

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Mas como negar-se o costume de socialização de uma vida inteira, e a alegria de estar com os entes queridos!? Talvez uma grande campanha de conscientização promovida pelo Estado pudesse alertar sobre a gravidade da situação atual, nunca vivida antes na humanidade. Isso poderia dar a todos força para aguardar o momento certo de vivenciar novamente encontros familiares. Em época de individualismo exacerbado, em que aprendemos que cada um deve cuidar apenas de si, é preciso muita orientação, repetida exaustivamente - na internet, nos rádios, tvs, outdoors, alto falantes, etc-, para fazer entender a excepcionalidade da ameaça, que exige a todos cuidar-nos (no plural solidário) para que alguns não se tornem vítimas. Uma campanha fraterna que tivesse convocado à responsabilidade, ao cuidado, ao amor ao próximo, poderia ter mudado o rumo das coisas.

Entretanto, esse esforço não é feito pelas principais autoridades do país, que preferem nos deixar na alienação do ódio individualista, na loteria da morte. Dos que são obrigados a sair às ruas para buscar a sobrevivência, uns terão sorte, outros não. Poderia ser diferente, se a pandemia não tivesse sido chamada de gripezinha no começo, de forma extremamente irresponsável, ou se as medidas de prevenção (como o uso de máscara e evitar aglomerações) fossem respeitadas, e não sistematicamente sabotadas por quem mais deveria promovê-las.

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Já pensaram se o auxílio emergencial de seiscentos reais (instituído pela oposição na câmara) tivesse durado alguns meses, se as fronteiras tivessem sido fechadas preventivamente, se houvesse controle de quarentena para quem chegava nos aeroportos!? Se não tivesse sido disseminada a ideia de que alguns remédios comprovadamente ineficazes poderiam evitar a morte? E, talvez o mais lamentável dos erros, se as vacinas tivessem sido adquiridas em grande quantidade no começo!?

O problema é que tudo isso acontece e ninguém é responsabilizado! Estamos perdidos em um debate entre irresponsáveis -que colocam a culpa no vírus, nas cepas, no acaso, nos deuses- e os denominados por estes como “donos da verdade”, que reivindicam a ciência para nos guiar a uma saída da pandemia com o mínimo de sacrifícios humanos. Eu me coloco entre os últimos, passei quatro anos aprendendo em uma Universidade Federal, na graduação de jornalismo da UFRGS, mais dois anos em um mestrado da UFC, e outros ainda exercendo o magistério, trabalhando na formação de novos profissionais da comunicação.

No império da imbecilidade em que vivemos, o conhecimento acadêmico e científico, a arte e a cultura não são respeitados. A ponto de alguns senadores governistas, na CPI da pandemia, proporem um debate entre médicos com “opiniões” diferentes sobre tratamento precoce e uso de cloroquina contra o coronavirus. Mas o tema não pode ser abordado assim. Não se trata de um debate entre opiniões diversas, ou do exercício de diferentes narrativas, mas de conhecer o resultado de experimentações práticas e discussões especializadas feitas por estudiosos qualificados na área no mundo inteiro, que guiam a comunidade científica internacional.

Sim, todos vão morrer um dia, mas quantos açaís roubados, pores de sol a contemplar deixaram de existir? Quantos doces da avó ficaram a saborear, ou músicas para dançar!? Quantos sonhos deixaram de ser realizados!? A vida que se deixou de viver é inestimável, e como uma das “donas da verdade” na área da comunicação, preciso alertar: nem sempre o que tem destaque nas notícias, ou é mais frequentemente abordado, é o mais importante a saber. Devido aos espetáculos midiáticos montados, é possível que o título deste artigo, inclusive, tenha criado expectativas falsas. No entanto, ele surgiu da premissa de que o mais imporante neste momento é nos tirar da anestesia quanto aos mais de quinhentos mil mortos, revelando a dor.

Depois de nos conscientizar da dor e ir além dos números, é preciso reivindicar a correção imediata das falhas que ainda multiplicam vítimas, e que sejam punidos os responsáveis, os aliados do vírus. A CPI vem neste caminho, ao revirar um lodo que mostra não só a interferência de posições ideológicas, como o desvio de dinheiro destinado à compra de vacinas, uma corrupção genocida – não há outra palavra possível. Por fim, há que se voltar ao silêncio, mas um silêncio consciente, de respeito pelos que partiram, e de oração. Que nos ilumine sempre a solidariedade para com quem sofre a dor da perda de familiares e amigos. Isso nos torna, de fato, humanos, no melhor sentido da palavra. Caso contrário, estaremos, como espécie, involuindo...

* Você pode encontrar todas essas histórias de vida, e muitas outras, em inumeraveis.com.br, o memorial dedicado às vítimas do coronavírus no Brasil. 

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