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Valéria Dallegrave

Jornalista, escritora e dramaturga

35 artigos

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Eles Poderiam Estar Vivos – O Experimento Brasil

A melhor homenagem aos que nos deixaram precocemente é tornar nosso voto parte de um grande clamor coletivo por justiça para as famílias enlutadas

Eles poderiam estar vivos - documentário (Foto: Divulgação)
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Embora diversas mentiras tentem esconder a face horrenda do que se pode chamar, sim, de genocídio,  artistas e representantes da intelectualidade têm criado verdadeiros documentos históricos, com talento e respeito à ciência e ao povo brasileiro, que ficarão como marcos, como gritos contra a barbárie cometida. Um deles é o documentário “Eles Poderiam Estar Vivos”,  excelente registro audiovisual da forma criminosa como foi tratada a pandemia em nosso país.  

Os diretores Lucas e Gabriel Mesquita realizaram entrevistas com familiares de vítimas da covid e especialistas para fazer um retrato humano e embasado no conhecimento científico.  Entre os especialistas ouvidos está Fernando Aith, diretor do Centro de Pesquisa Sanitário da USP, Deisy Ventura Araújo, professora de Ética da Faculdade de Saúde Pública da USP e Luana Araújo, infectologista mineira que depôs na CPI da COVID. 

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A edição dinâmica alterna entrevistas, algumas carregadas de forte emoção, com ilustrações de Latuff, Paula Villar e Cris Vector, além de contar com uma importante reportagem sobre a  luta contra a desinformação e o vírus na favela de Heliópolis*, a maior de São Paulo. Fica claro que a pandemia teve cor e classe social específicas como alvo. Há também uma linha do tempo que mostra os eventos cronologicamente, resultante de estudo realizado por Deisy Ventura e Fernando Aith, um acompanhamento diário de como o Brasil lidou com a pandemia.  Eles partiram da premissa de que, ao final, poderiam colocar o país como modelo para o mundo. Mas não foi bem assim...

O documentário faz um resumo exemplar do que acontece a partir daí. No combate à pandemia, o Brasil teria a vantagem da estrutura do SUS e de 48 anos de experiência no programa nacional de imunização. Zé Gotinha era personagem símbolo dessa campanha bem-sucedida, um patrimônio nacional. Porém, a vantagem foi minimizada por muitas sabotagens. Como a propaganda pelo não uso da máscara, as dúvidas exaltadas quanto à segurança e eficácia das vacinas, e a insidiosa  crença de que tentar proteger-se da doença era demonstração de covardia. Casos isolados foram hipervalorizados e a cultura de vacinação foi desconstruída dia a dia.  Chegamos ao cúmulo de um ministro da saúde esconder mortes de crianças para justificar a falta de pressa em vaciná-las. Em novembro de 2020, o presidente desautorizou uma compra de vacinas feita por Pazuello, o responsável pela pasta na  época, que aceitou passivamente a decisão. Aliás, foi Pazuello que, quando nomeado para o ministério da saúde, disse nem saber o que era o SUS. 

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Destaca-se que o combate ao vírus só ocorreu a partir de uma atenção terciária. Deixou-se que a população fosse contaminada e se passou a lidar com as consequências, em uma estratégia muito mais cara, difícil e arriscada, sobrecarregando todo o sistema de saúde. Se tivesse um foco na atenção primária, em educar as pessoas a evitar a contaminação, oferecendo máscaras, fazendo um plano de mobilidade urbana, etc, teria sido possível evitar tantos internamentos em UTI's. Se a conscientização da importância das vacinas tivesse sido mantida, a disseminação do vírus teria sido barrada por cada indivíduo vacinado, e a história seria outra. Vacinar-se ou não, ao contrário do que muitos defenderam, era uma escolha com consequências para a coletividade, não apenas para o indivíduo. 

É dada a importância (negativa) devida ao despresidente do Brasil, relembrando que ele debochou dos doentes, chamou a covid de frescura, mimimi, gripezinha, resfriadinho, e deu a entender que os mortos eram, além de tudo, fracos. Negou, e ainda nega, os conhecimentos científicos construídos ao longo da pandemia, e continuou a distribuir fakenews. Disseminou a covid ao gerar aglomerações em seu deslocamento pelo país. Chegou até a arrancar a máscara do rosto de uma criança. Para piorar ainda mais, o bolsonarismo espalhou as fakenews em seus próprios canais de comunicação, direto para seus seguidores. O público foi, o tempo todo, vítima de uma comunicação ambivalente e catastrófica. 

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A aposta na imunidade de rebanho por contágio é denominada “assassinato em massa”. O governo claramente tentou disseminar o vírus, muitos morreram por se expor de maneira desnecessária, por achar que estavam protegidos com medicações ineficazes, por esperar a vacina que demorou a chegar. A União publicou normas que incentivaram a multiplicação do vírus,  declarando, por exemplo, que celebrações religiosas, lojas lotéricas e salões de beleza eram atividades essenciais.  Um dos casos mais cruéis aconteceu quando se reteve a liberação de recursos para a compra de oxigênio. Em 14 de janeiro de 2022, houve o colapso do sistema de saúde de Manaus, com 31 mortos por falta de oxigênio. O presidente também vetou medidas de emergência para indígenas (como acesso a água potável, materiais de higiene e limpeza, leitos hospitalares, etc). O veto, felizmente, foi derrubado pelo Congresso Nacional. 

Divulgar o número de pessoas supostamente recuperadas foi, conforme o documentário, mais um ardil. Essas pessoas poderiam ainda ter sequelas, estar sofrendo com a versão longa da doença, e morrer mais adiante com consequências da covid. E, quando não era conveniente divulgar o número de mortes, colocava-se  parte das mesmas como  causadas por síndrome respiratória aguda grave. A insuficiente campanha de informação finalmente realizada foi por determinação do STF, assim como outras ações recomendadas pela OMS no enfrentamento da situação.

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O audiovisual também menciona a pesquisa que traçou um paralelo entre a quantidade de votos conseguidos por Bolsonaro no segundo turno e a quantidade de mortos pela pandemia em diferentes localidades. Nas cidades em que houve mais votos nele, houve maior quantidade de mortes pela covid, pois seus eleitores acreditaram nas mensagens passadas. Portanto, pode-se considerar que as pessoas não tiveram culpa, culpada foi a mensagem pró-morte, pró cloroquina, contra a vacina e a máscara, contra o conhecimento, a ciência e a vida. Mas quem foi responsável por elas!? É preciso que os responsáveis sejam julgados e paguem pelas mortes que causaram, mesmo que de forma indireta. Se compararmos a média da quantidade de mortos no Brasil e no mundo,  podemos concluir que mais de 400 mil brasileiros poderiam ainda estar vivos. 

O luto coletivo de milhares foi abafado, os mortos transformados em números inexpressivos, o luto individual de muitos minimizado ou ignorado. Mateus Magalhães, cujo pai faleceu em decorrência da covid, expressa a sensação de abandono: “Eu grito, mas ninguém faz nada, ninguém me ouve! Se meu pai tivesse tomado a vacina, será que estaria vivo!?”  Marcelo Toledo, que perdeu uma irmã e um irmão para o vírus, ainda sofreu por não poder contar isso aos pais, por recomendações médicas. Ele considera que seus irmãos foram assassinados. A irmã faleceu de consequências da doença, e o irmão morreu ainda doente. Ele narra, comovido: “Conseguimos ver minha irmã no caixão, mas meu irmão foi 'empacotado'.”

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Apesar de toda essa dor ser ainda recente, o documentário traz algumas constatações importantes, como a de que é preciso fazer mudanças na legislação epidemiológica, para que isso nunca mais se repita. Os familiares clamam pela punição dos responsáveis, e pela união dos brasileiros, com a superação do ódio. As histórias pessoais narradas são, entretanto, apenas a ponta do iceberg. É recomendável ler os comentários dos espectadores do documentário no youtube, onde há inúmeros depoimentos de quem também teve perdas irreparáveis, como o de A.S., que diz: “Nunca vou esquecer do meu pai, despedindo-se de nós por videochamada antes de ir para a UTI. O rosto assustado porque não era uma gripezinha, como o presidente que ele tanto confiava dizia, e que o kit do tratamento precoce não tinha dado certo.”

A história de cada um dos entes queridos que partiram nesta triste onda de morte, denominada por um dos entrevistados como “experimento Brasil”, ainda precisa ser contada. Parece-me inevitável lembrar do belo documentário de Marcelo Masagão “Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos” (disponível no youtube), que costurou magistralmente imagens documentais e trechos de vidas de pessoas anônimas para narrar a história do século XX. O momento recente que vivemos, inacreditável e assustador, dá material para diversos novos audiovisuais - que já devem estar sendo produzidos, espero. A delicadeza e a dor da vida e da morte de cada um nem precisa de ficção, basta ir até as fontes, os familiares das vítimas guardam vivas as imagens dos que nos deixaram antes do tempo em suas memórias, no coração, e com certeza em meios digitais. Não podemos esquecê-los.

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* “Eles tentaram nos matar, mas a gente 'combinamos' de não morrer” citação mencionada de Olhos D'Agua, de Conceição Evaristo, define a resistência de comunidades como Heliópolis  à pandemia que teve o desgoverno Bolsonaro como aliado. 

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