Abominações da classe média

Eu, representante da classe média carioca, diferente do que acredita a filósofa Marilena Chauí, não sou reacionário, estúpido, conservador, ignorante, petulante, arrogante nem, muito menos, terrorista



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Numa bela manhã de domingo, eu, minha esposa e nosso filho de então quatro anos seguíamos para o parque perto de casa um privilégio concedido a poucos numa cidade cada vez mais concretada e asfaltada como o Rio de Janeiro. Resolvemos cortar caminho por uma loja de departamentos de cujo teto pendiam centenas de ovos de páscoa de todos os tamanhos, cores, pesos e, claro, preços. Um deles custava a bagatela de cinquenta reais o que, proporcionalmente, equivalia o mesmo a pagar duzentos e cinquenta reais o quilo do mesmo chocolate sem o formato oval. A loja estava cheia e as filas, enormes. Queríamos nos desvencilhar daquelas hordas consumistas quando, a nossa frente, surge um menino com não mais de quatro anos pedindo que lhe comprássemos um chocolate. Não um ovo de páscoa, mas um chocolate, qualquer um. Dizemos que não podíamos e seguimos em frente, saindo finalmente do outro lado da loja. Ali, na entrada, uma mulher estava sentada junto com outras crianças pedindo esmolas.

Comendo seu pão de queijo, nosso filho pergunta o porquê de sua mãe estar chorando baixinho, com as mãos à frente do rosto. A mãe responde que estava triste porque o menino "só queria um chocolate", era um pedido genuíno, nada daquela bobagem de ovos com brinquedo dentro ou em formato de taça da copa do mundo. Ele queria um chocolate porque, possivelmente, estava com fome e via um monte de criança ganhando chocolate. O choro também tem a ver com a raiva de saber que mesmo comprando o chocolate para aquele menino, o problema não seria resolvido. Muitas outras crianças estavam na frente da loja. Raiva e, talvez, culpa, porque não quisemos aliviar a miséria que gritava na nossa cara. A mãe recusou a culpa, culpa cristã, e eu concordei com ela. O problema está em outro lugar.

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A partir daquele dia, esporadicamente, nosso filho, hoje com cinco anos de idade, lembrava-se do episódio, às vezes aparentemente sem motivo ou depois de observar o que se passa ao seu redor, andando pelas ruas da cidade onde mora. Lembro, de cara, de três momentos:

1) O primeiro, quando passamos ao lado de um colchão jogado na calçada a poucos metros de nosso edifício, sobre o qual um amontoado de crianças de várias idades espremia-se e tentava dormia, nosso filho pergunta se eles não têm casa e o que fazem se começa a chover.

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2) O segundo, passando pelo mesmo local, de onde o colchão havia desaparecido, mas substituído por um homem que ali resolveu passar a noite, nosso filho pergunta como aquela pessoa faz para beber água se sente sede, a quem pede água.

3) O terceiro, comentando com espanto que havia visto uma pessoa pegar comida da lixeira de rua e que, se a comesse, passaria mal. Continua o raciocínio deduzindo, logicamente, que esta pessoa miserável teria filhos miseráveis e o ciclo se perpetuaria, desejando que isso nunca acontecesse conosco. Este comentário abriu brecha para uma pequena lição de moral do pai, já que dias antes nosso filho havia jogado, de propósito, biscoitos no chão. Pai malvado.

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Para uma criança de cinco de anos, não serve uma dissertação sobre as mazelas do sistema capitalista ou das benesses do socialismo. Preferimos, eu e a mãe, aproveitando a época de eleição e de nossa repulsa ao ver a propaganda eleitoral "gratuita" na televisão, quando rostos conhecidos da velha política de cabresto aparecem sem nos pedir licença, ensiná-lo que há pessoas que deveriam estar nos ajudando, mas que preferem nos roubar. E o "nos" se refere tanto a nós, a família que assiste àquele festival de mentiras, quanto a todos aqueles a quem nosso filho se referiu em seus comentários. Aos poucos, vamos introduzindo-o à ideia do voto. Mas, para os adultos, dá para aprofundar a análise.

A culpa não é da classe média, da qual faço parte, que paga três vezes pelo mesmo serviço, que paga os impostos que deveriam custear uma saúde pública de qualidade, mas é obrigada a pagar um plano de saúde particular porque os impostos destinados não são aplicados corretamente, é alvo de "malfeitos", e paga ainda uma terceira vez porque boa parte dos médicos que aceita plano tem sua agenda lotada obrigando, desta forma, o pagamento de consultas particulares em casos de emergência. Será mesmo que o sistema público de saúde atingiu quase a perfeição, como o ex-presidente Lula ousou afirmar, espero que em tom de chacota do próprio governo?

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A culpa não é da classe média, da qual faço parte, que é obrigada a pagar uma escola particular para seus filhos porque o sistema público de ensino é uma vergonha, cujos professores ganham uma miséria, cujos equipamentos estão caindo aos pedaços, cujo material didático chega à sala de aula meses após o início do ano letivo.

A culpa não é da classe média, da qual faço parte, que vê os preços subirem constantemente e é obrigada a rever seu conceito de "lista de supermercado" e "supérfluo". Sorte a nossa que não temos carro por opção, livrando-nos do pagamento de mais impostos e da gasolina caríssima, num país que se gaba de ser autossustentável.

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A culpa é, sim, daqueles que assaltam o Estado brasileiro a cada eleição, em todas as eleições, que confundem espaço público e espaço privado, que colocam seus interesses privados a frente dos interesses da coletividade que lhes confiou o voto, que colocam a máquina pública a serviço de seus acordos de compadrio, que utilizam a perversa lógica do clientelismo político para se perpetuarem no poder, que acreditam na antiquíssima máxima do "L'état c'est moi", que enchem a administração pública de indivíduos desqualificados para a função através de instrumentos legais como os chamados "cargos de confiança", que adotam a estratégia de "dividir para conquistar" ao qualificar a cidadania a partir de critérios exclusivistas como o pertencimento religioso.

A culpa é de quem vende a alma ao diabo para continuar no poder estabelecendo alianças com o que de mais retrógrado e corrupto existe no país, afirmando que corrupção existe em qualquer partido, praticamente naturalizando esta característica da política brasileira.

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A culpa é, também, de quem perpetua este estado de coisas através do "voto inútil", que concorda com estes maus representantes legitimando-os, que é a favor da ideia da "farinha pouca, meu pirão primeiro", que troca o voto por uma dentadura, que é ávida por uma boquinha onde quer que seja, que para em cima da faixa de pedestres e que avança o sinal vermelho, que "molha a mão" do policial para escapar da multa de trânsito, que fura a fila do supermercado, que é fã incondicional do "jeitinho brasileiro" como valor fundamental da civilização tupiniquim, que acha que "achado não é roubado". Atenção, senhores: a Petrobras não foi achada; mais respeito, por favor.

Eu, representante da classe média carioca, diferente do que acredita a filósofa Marilena Chauí, não sou reacionário, estúpido, conservador, ignorante, petulante, arrogante nem, muito menos, terrorista. Não sou fascista nem violento. Tampouco quero depender de qualquer tipo de Bolsa. Quero, sim, que meus direitos como cidadão pagador de impostos escorchantes sejam respeitados, e que o Estado cumpra com seus deveres definidos muito claramente na Constituição Federal.

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Chega de vergonha alheia. As novas gerações agradecem.

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