O STF e os precedentes perigosos

O que os observadores de bom senso temem é que o inconveniente espetáculo, em que se transformou o julgamento da Ação 470, excite os golpistas de sempre



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Nunca tivemos, no Brasil e alhures, uma justiça perfeita. A esse respeito permanece como paradigma da dúvida do julgamento político a condenação de Sócrates. A acusação que lhe fizeram foi de impiedade, o que, no léxico de então, mais do que hoje, significava heresia diante dos deuses: Sócrates estaria pervertendo os jovens com seus ensinamentos, tidos também como antidemocráticos. As lições de Sócrates sempre foram da dúvida, da incessante busca do conhecimento, mesmo que o conhecimento fosse, em sua inteligência, inalcançável. Ele dizia saber que nada sabia.

Nesse pensamento negativo radical, recriado e elaborado por Platão, estaria, em ultima ratio – à qual não se atreveu Platão – a suprema heresia de duvidar da existência dos deuses. Os deuses eram os fiadores da democracia, e quando esse contrato com o mito, em que se fundava a sociedade, rompeu-se, ao ser sua existência posta em dúvida, Atenas perdeu o seu ponto de gravidade e entrou em irrecorrível declínio político.

Não estamos em Atenas daquele tempo emblemático, e seria, isso, sim, impiedosa heresia comparar o julgamento atual do STF ao de Sócrates. Em certo aspecto, no entanto, os dois episódios se semelham: o do espetáculo. Como tudo em Atenas, o julgamento de Sócrates foi público, com 501 juízes. Os acusadores e Sócrates, em sua apologia, foram ouvidos por uma assembléia numerosa, de acordo com os relatos, mas os que acompanham a Ação 470 vão muito além: chegam a dezenas de milhões.

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A transparência é salutar, mas não seria essa exposição demorada e ampla, vista pelo outro lado da razão, contaminada pela vaidade de alguns magistrados e, dela decorrente, pela influência de jurados estranhos e ilegítimos, mediante os meios de comunicação?

Todos os condenados já se encontravam, mesmo sem que se conhecessem devidamente os fatos, julgados por apresentadores de programas de televisão e políticos, sem falar nos que se identificavam como "cientistas políticos" e "juristas", iluminados pelos holofotes, que supriam de argumentos interessados os mediadores das emissoras. Assim se desenvolveu um julgamento paralelo, que antecipava votos e açulava os telespectadores contra os réus. Por isso mesmo, e de acordo com alguns observadores, também em outros aspectos foi um julgamento que desprezou as cautelas da lei no que se refere ao direito de defesa dos acusados.

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Se isso realmente ocorreu, abriu-se precedente perigoso, que poderá servir, no futuro, contra qualquer um. Ainda que os acusados fossem realmente culpados, a violação de alguns princípios, entre eles o da robustez das provas, macula o processo e o julgamento. Como dizia Maquiavel, "quando se violam as leis por uma boa causa, autoriza-se a sua violação por uma causa qualquer", ainda que nociva ao Estado.

O que os observadores de bom senso temem é que o inconveniente espetáculo, em que se transformou o julgamento da Ação 470, excite os golpistas de sempre. Ainda que a sugestão não passe de tolice insana, há os que pretendem aproveitar-se do julgamento para promover um processo contra o presidente Lula e seu governo.

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Se isso viesse a ocorrer, os juízes do Supremo teriam que admitir novos processos contra outros chefes de Estado, pelo menos no exame dos atos de governo dos últimos vinte anos. Como diz o provérbio rural, o risco que corre o pau, corre o machado.

A história nos mostra – e 1964 é alguma coisa recente na vida nacional – que uma das primeiras vítimas institucionais dos golpes é exatamente a imprensa. O "Correio da Manhã", que se excedeu no entusiasmo conspiratório, e publicou o célebre editorial de primeira página em favor da deposição de Jango pela força, sob o título de "Basta, e Fora!", foi o primeiro a se arrepender – tardiamente – e o primeiro a ser sufocado pela arbitrariedade da Ditadura.

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Os outros vieram depois, amordaçados pela censura, e obrigados a beber do fel que queriam que fosse servido aos competidores. Os açodados editores dos jornais e diretores dos meios eletrônicos, como são as emissoras de rádio e televisão, devem consultar seus arquivos e meditar essas lições do passado.

Com todo o respeito pelo STF e a sua autonomia republicana, não nos parece conveniente a transmissão ao vivo dos julgamentos. Os juízes devem ser protegidos pelos ritos da discrição. Seria ideal, também, para a respeitabilidade da Justiça, que os juízes só recebessem as partes e seus advogados em audiências regulares, das quais já participam oficialmente os representantes do Ministério Público.

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O ato de julgar, em todas as suas fases, deve ser visto como alguma coisa sagrada. Essa era a razão dos ainda mais antigos do que os gregos, que só escolhiam os anciãos para a difícil missão de ministrar a justiça. Os julgamentos não podem transformar-se em entretenimento ou em competição oratória.

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