Cunha sobre 'Vermelho amargo': "denso e forte"
Obra de Bartolomeu Campos de Queirós, de apenas 69 páginas, foi lido "numa corrida só", conta o ex-deputado em nova resenha em seu blog; "O livro, numa escrita poética/proseada, tem uma força magnetizadora do começo ao fim. Uma família e uma cidade sob o olhar de um menino que narra com dor o passar do tempo", escreve João Paulo Cunha
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247 - João Paulo Cunha conta ter tido uma "surpresa" com "Vermelho amargo", de Bartolomeu Campos de Queirós, um livro de apenas 69 páginas lido "numa corrida só". Isso porque o vermelho, que antes, para o leitor, sempre foi ligado ao sangue, a paixão e a rosa, foi enfrentado como amargo ao longo da obra. "O livro, numa escrita poética/proseada, tem uma força magnetizadora do começo ao fim. Uma família e uma cidade sob o olhar de um menino que narra com dor o passar do tempo", descreve o ex-deputado.
Leia abaixo a íntegra da resenha publicada em seu blog:
O vermelho amargo de todos nós
Cheguei na prisão carregando um saco de roupas, um lençol, uma toalha de banho, apetrechos de uso pessoal e quatro livros. Um deles "Vermelho Amargo", de Bartolomeu Campos de Queirós, da editora Cosacnaify. Tinha comprado alguns dias antes. Li o livro numa corrida só. Sua edição é primorosa. Capa dura (quase madeira) num vermelho desbotado. Eu que sempre liguei o vermelho ao sangue, a paixão e a rosa, nunca imaginei enfrentar um vermelho que fosse amargo. Mas, depois de ler o livro, entendi que a vida tem o vermelho da paixão (o amor, o bem) e o vermelho do amargor (dor, tristeza). Há livros curtos (69 páginas) que são densos e fortes para marcar o leitor de forma definitiva.
Bela surpresa! O livro, numa escrita poética/proseada, tem uma força magnetizadora do começo ao fim. Uma família e uma cidade sob o olhar de um menino que narra com dor o passar do tempo.
A cidade partida ao meio por um "raso rio" fazia o menino ("sempre um morador do outro lado") espiar o lado de cá. O pai, que "andava tropeçando em penumbras e suspiros" para espantar a solidão, arrumou outra mulher e agora "amava em dobro: o amor que sobra aos viúvos e mais o amor reinventado e capaz de camuflar o luto". Alojou na casa a mulher que ocuparia o lugar da mãe e completaria a família: pai, madrasta e seis irmãos.
Mas forte e marcante na vida do menino era o amor pela mãe, que morreu numa "manhã seca e fria de maio". Exatamente no mês das mães. "Sem a mãe, a casa tornou-se um lugar provisório". Olhando a estrada levar a ida e trazer a volta, descobriu então que, às vezes, só existe a ida. "Viajar para o sempre não demanda bilhete de partida". E a partida da mãe foi uma dor tão grande para o menino que ele jamais superaria. "Quando se ama, em cada dia o morto nasce mais".
A vida do menino passou a ser dividida entre o que foi bom, sob os cuidados da mãe, e o que era o mal, sob o controle da madrasta. E descobriu pelo tomate, com seu vermelho amargo e doce, as diferenças entre o bem e o mal.
Pelas mãos da mãe o tomate era fatiado em cruz e se "transfigurava em pequenas embarcações ancoradas na baía da travessa". A madrasta "cortava o tomate vermelho, sanguíneo, maduro como se degolasse cada um de nós". O tomate preparado pela mãe era engolido "imaginando ser ambrosia ou claras em neve batidas com açúcar nadando num mar de leite, ...com as mãos do amor". A madrasta retalhava o tomate "em fatias, assim finas, capaz de envenenar a todos. Era possível entrever o arroz branco do outro lado" e as "fatias delgadas escreviam um ódio que só aqueles que se sentem intrusos ao amor podem tragar".
Os irmãos, identificados por hábitos estranhos, na realidade construíam também seus próprios mundos. Afinal, nem o menino nem seus irmãos faziam parte do mundo ausente de pai e estruturado pela madrasta. Aí surge o irmão que comia vidros: "Depois, ele cuspia o vidro moído e o chão parecia ladrilhado com pedrinhas de brilhante". A irmã bordava em cruz ("Tecia paisagens com pontos de cruz, miúdos, mas tão miúdos que ficava difícil acreditar que não eram mares as águas que ela crucificava"). A outra irmã tinha um gato que não miava ("Abria a boca, mostrava os dentes afiados com um olhar de súplica, mas se negava a miar") e a mais nova "dormia voltada para o nascente, ansiosa pelas madrugadas" e "cada dia renascia em um lugar e marcava, [no globo terrestre] com alfinete para não repetir o nascimento."
Todos eles aos poucos vão partindo. Como o trem. Com uma diferença: o trem volta. Os irmãos partem e não voltam mais. As rodelas de tomate vão ficando mais espessas. O autor, metaforicamente, coloca o trem a imitar a vida. Ou será a vida imitando o trem? "Sempre suspeitei o nascer como entrar num trem andando. No meu vagão não escolhi os companheiros para a viagem. Também entrei sem comprar o bilhete de viagem. Vou sem escolher o destino. O trem estancava na minha cidade, trocava de carga e reabastecia-se. O mundo só nos permite uma baldeação definitiva".
Até que um dia o próprio menino parte deixando para trás a cidade ("afetuosamente cruel"), o pai e a madrasta. Ao deixá-los, ele resolve que "esquecer é desexistir, é não ter havido" e assim atenua sua culpa, que "é relativa ao tamanho da memória". Pensa ter resolvido seu problema com a madrasta e superado a ausência do pai. Mas, serão nossas memórias curtas e nossas culpas grandes?
Bartolomeu foi um achado. Um tesouro. Sua linguagem sensível aliada ao ofício de trabalhar palavras leva o leitor a alcançar lindos significados para frases quase puras: "passarinho é uma vírgula pontuando o céu". Ou profundidade em singelas metáforas: chorava a morte da mãe "como se o mar morasse dentro dele".
Lendo quietinho o livro na cela que me abrigou, me vem a imagem de um artesão de palavras ensinando que "há que experimentar o prazer para, só depois, bem suportar a dor". Ao final da leitura, Bartolomeu, pela boca do menino cochicha em meu ouvido: "meu real é mais absurdo que minha fantasia".
E ele não sabia nada da minha vida!
João Paulo Cunha
Fevereiro/2014
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