'Deus me fez poeta, não cantor', diz o cantador e violêro Elomar
Artista interrompe reclusão da fazenda para tocar em São Paulo, que abre exposição sobre sua obra; Elomar divide o palco com um dos filhos, o maestro João Omar, e com o "cavaleiro" Heraldo do Monte, violonista de longa data, integrante do célebre Quarteto Novo, de curta duração, nos anos 1960: Heraldo, Theo de Barros, Airto Moreira e Hermeto Pascoal, que entrou por último (até então, o grupo era o Trio Novo)
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As apresentações deste fim de semana fazem parte da Ocupação Elomar, aberta ontem no Itaú Cultural, na Avenida Paulista. Ali estão ilustrações, vídeos, livros, gravuras, cartas, documentos, raridades de seu trabalho musical, inclusive em fitas cassete, canções disponíveis para audição e até tiras de Henfil – que criou um de seus personagens, o Bode Francisco Orelana, inspirado no músico, criador desses animais. A exposição busca recriar a fazenda onde o artista mora, no sertão da Bahia. Fotos, só de bodes e da natureza. Elomar, além de não dar entrevista, não permite ser fotografado. E conseguiu um fenômeno para os dias atuais: durante a apresentação, ninguém arriscou fotografá-lo ou filmá-lo. Antes do show, a organização já havia feito esse apelo, falando da necessidade de cumprir um acordo feito "no fio do bigode" com o artista. Segundo Elomar, o que vale, para um artista, é a obra.
A apresentação nem sequer foi gravada pela casa, ao contrário do que costuma ocorrer. A única gravação foi para os arquivos da Fundação Casa dos Carneiros, referência à fazenda onde mora Elomar, no povoado da Gameleira, distrito de Iguá, a 20 quilômetros de Vitória da Conquista. A fundação foi criada em 2007 para preservar e divulgar a obra literária e musical de Elomar e outras manifestações artísticas. Chamada de "Conquista" pelos baianos, a cidade é a terceira maior da Bahia, fica a aproximadamente a 500 quilômetros de Salvador e é conhecida pelo clima frio. Durante o show, Elomar fez referência à neblina frequente no local, que chega a impedir o pouso e partida de aviões durante vários dias.
Sem fotos
Para a ocupação inaugurada ontem, sugeriram que ele posasse para uma fotografia. Ele sugeriu, então, que se usasse um poema, chamado Meu Retrato (leia no final do texto). Para "compensar" a ausência de fotografias, a exposição traz várias imagens feitas pelo artista Juraci Dórea, baiano de Feira de Santana e amigo de Elomar, para quem já trabalhou em alguns discos do compositor. O evento, que começou na lua nova, vai até 23 de agosto, na lua crescente.
À guisa de imagem, poderia se usar, talvez, O Violeiro, uma de suas canções mais conhecidas, lançado em seu primeiro compacto, gravado em 1968, e incluída no disco Das Barrancas do Rio Gavião, de 1972. E que não foi cantada na apresentação de ontem à noite.
Vô cantá no cantori primêro
As coisas lá da mĩa mudernage
Qui me fizero errante e violêro
Eu falo sero e num é vadiage
E pra você qui agora está me ôvino
Juro inté pelo Santo Minino
Virge Maria qui ôve o qui eu digo
Se fô mintira me manda o castigo
Apois pra o cantadô e violêro
Só há treis coisa nesse mundo vão
Amô, furria, viola, nunca dinhêro
Viola, furria, amô, dinhêro não
"Minha música é fora de moda, cafona", diz o cantor durante o show. "Não consegui me modernizar. Com 16 anos, eu já tinha 100", afirma, arrancando risadas, o que se repetirá várias vezes. Ele conta que pediu à produção que providenciasse partituras de tamanho maior, porque esquecera seu "espiante", referindo-se aos óculos.
Autodidata
Filho de um tangedor de gado (Ernesto) e de uma costureira (Eurides), Elomar fez Arquitetura na Universidade Federal da Bahia. Ali também participou, durante alguns meses, de seminários livres de música. Mas sua formação musical é autodidata.
Elomar divide o palco com um dos filhos, o maestro João Omar, e com o "cavaleiro" Heraldo do Monte, violonista de longa data, integrante do célebre Quarteto Novo, de curta duração, nos anos 1960: Heraldo, Theo de Barros, Airto Moreira e Hermeto Pascoal, que entrou por último (até então, o grupo era o Trio Novo). Participam ainda o violeiro Chico Saraiva e violoncelista Gabriela, ainda estudante de música, como Elomar diz ao apresentá-la.
Em 1982, Elomar e Heraldo participaram do disco ConSertão, ao lado de Arthur Moreira Lima e do "saudosíssimo" Paulo Moura, conforme lembra o compositor. Três anos antes, o pianista Arthur Moreira Lima assinaria com Elomar o disco Parcelada Malunga, gravado ao vivo, com participações de Heraldo, Xangai e José Gomes. Outra obra conhecida, e cultuada, é o LP Cantoria, que ganharia três álbuns, com as presenças de Elomar, Xangai, Geraldo Azevedo e Vital Farias. O primeiro disco é de 1984. O guia da ocupação lembra que, naquele ano, Elomar "passou a trabalhar sua obra erudita e adentrar no universo das óperas, dos concertos, das antífonas e da escrita orquestral". O próprio Elomar projetou um teatro (Domus Operae) dedicado à montagem de óperas brasileiras, como o seu Auto da Catingueira.
Na música, ele diz se considerar, acima de tudo, um compositor. "Deus me fez poeta, não cantor", diz ao público. "Alguns dizem que eu tenho voz bonita, mas eu nunca ouvi", acrescenta, enquanto derrama sua melodia e brinca com as afinações e desafinações dos instrumentos. "Deixa eu dar uma passada", diz a certa altura João Omar, tomando o violão das mãos do pai. Este começa a dedilhar o violão do filho, e faz graça. "Foi comprar lá na Espanha. Um dia vou comprar um deste." Rápido, João pega seu instrumento de volta, para "protesto" do pai. "Tava gostando...", diz, já rindo.
No início do show, ele entra apenas depois que João Omar toca os primeiros acordes. Mas sua voz já é ouvida da coxia. E vem Elomar no escuro, na penumbra, de capa e chapéu. A capa ele tira, o chapéu fica. No final, também sairá na escuridão, cantando. Com os diversos elementos que compõem a sua obra, o artista narra o seu universo, a vida de sua terra, o amor, a vida e a morte, a religiosidade, o misticismo. Com seu violão e sua voz, transporta o público para a terra dos Carneiros.
Meu Retrato
Eu já nasci pronto, um poeta puro
Que me desculpem aqueles que não o são
Às vezes anjo mais pra pecador
Fera indomada estando com a razão
Mais dado ao riso bem pouco ao furor
Não sou de pegar a coisa que cai
Chutando-a a um canto alguém depois que o faça
Confesso mĩa ogeriza asco horror
Aos poderosos ao homem violento
Ao mentiroso e à estupidez da massa
Conhecedor de Física e Matemáticas
Esculhambo com prazer toda a ciência
Que mente e trapaceia em toda a existência
E a serviço dos maus põe suas práticas
Pra terminar esta triste figura
Com uãs pinceladas mais em branco e preto
Sem coloridos e em tosca moldura
Aqui deixo esboçado meu retrato
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