A saga de Carlos Ramos

A história de um empresário que começou no jogo do bicho e que, associado a parte da mídia e a um senador mais falso que uma nota de três, acabou se transformando em chantagista e em peça importante na criação do mensalão; leia a reportagem de Antônio Carlos Queiroz e Raimundo Rodrigues Pereira, para a revista Retrato do Brasil, que o 247 antecipa

A saga de Carlos Ramos
A saga de Carlos Ramos (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)


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por Antônio Carlos Queiroz e Raimundo Rodrigues Pereira

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1. ONDE FOI PARAR O FILHO DE TIÃO CACHOEIRA

Carlos Augusto de Almeida Ramos é filho de Sebastião de Almeida Ramos, um caminhoneiro que transportava materiais para a construção de Brasília no final dos anos 1950 e que depois levou a família para Anápolis, Goiás, a cerca de 150 quilômetros da capital federal, onde acabou se tornando um dos donos do jogo do bicho. Ainda nos anos 1960 seu Tião Cachoeira, como era conhecido, em função do nome da fazenda em Araxá, Minas Gerais, de onde viera, separou-se da mulher, “dona Zezé”, Maria José, então com 14 filhos. E “Carlinhos Cachoeira” parece ter sido o filho pródigo: tomou o partido da mãe na separação, mas foi trabalhar com o pai, para ajudá-la. Do pai acabou herdando não só o apelido, como os negócios, que ampliou e buscou legalizar e nos quais empregou em diferentes funções quase todos os parentes.

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Quando a mãe morreu – agora, em meados de abril, com 79 anos – seu Tião Cachoeira, 82 anos, segundo cronistas do enterro, era apenas um velhinho perdido na vida. Vivia só, num hotel decadente do centro de Anápolis, e passava os dias jogando nos caça-níqueis da cidade, controlados pelo filho. Carlinhos, que tinha sido preso pela Polícia Federal (PF), a 29 de fevereiro, na chamada Operação Monte Carlo, junto com mais 40 pessoas das quais seria uma espécie de capo mafioso, não pôde comparecer. Mas não era o único grande ausente, como disse aos jornalistas Maurão do INSS, vereador do PDT em Anápolis, durante o enterro, sem dúvida alguma com razão: “Se o Carlinhos não tivesse sido preso, aqui estariam chorando governador, senadores, deputados federais, ministros”. Como se verá nos desdobramentos desta história, Maurão estava se referindo ao governador de Goiás, Marconi Perillo, ao senador Demóstenes Torres e a alguns deputados federais, de vários partidos. PMDB, PSDB, PPS, PT, por exemplo, que Carlinhos ajudou em campanhas eleitorais ou negócios. Desses, apenas o deputado Carlos Alberto Lereia (PSDB), que dias depois, no plenário da Câmara Federal, saudou o aniversário de 49 anos do amigo Carlinhos, mandou uma coroa de flores.

Cachoeira pode ser visto como um tipo de bandido, um chantagista. Nessas funções, que descreveremos nos próximos capítulos de nossa história, não esteve sozinho: apoiou-se nas debilidades de nossos políticos tradicionais, grandes e pequenos, e contou também com alguns dos mais famosos órgãos de imprensa do País – foi informante ou personagem de destaque do Jornal Nacional, da TV Globo, e de Veja, revista semanal da Editora Abril. Mas deve ser visto também como um empresário, dos jogos legais e ilegais, da indústria farmacêutica, da construção civil e de outros ramos. O bicho foi sua porta de entrada para os negócios. Como se sabe, esse jogo é praticado em ampla escala no País. A poucas quadras da redação de Retrato do Brasil, na cidade de São Paulo, no tradicional bairro de Pinheiros, por exemplo, com um mínimo de atenção é possível ver os apontadores, que recebem e registram as apostas.

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A PF tem, há décadas, o mapa mais amplo da atuação dos grandes bicheiros, como Cachoeira, do Centro-Oeste, e de outros, bem mais antigos, como Aniz Abrahão David, patrono da Beija-Flor, Luiz Pacheco Drummond, presidente de honra da Imperatriz Leopoldinense, ambas escolas de samba do Rio de Janeiro, Ivo Noal, de São Paulo, e outros, de menor fama.

Só que Cachoeira, pode-se dizer, é de uma geração nova, dos jogos eletrônicos, dos caça-níqueis e dos bingos, amplamente espalhados pelo Brasil e tornados legais em vários estados da federação justamente a partir de meados dos anos 1990, época das reformas liberais no País, quando ele, então com 32 anos, assumiu, do pai, o comando do jogo do bicho em Anápolis. Como se verá no próximo capítulo, tinha negócios legais de jogos eletrônicos em vários estados da federação e estava associado ou em disputa com corporações internacionais do setor, como a maior delas, a GTECH, prestadora de serviços muito lucrativos à Caixa Econômica Federal, o grande banco estatal que, na prática, estava perdendo o monopólio dos chamados jogos de prognósticos no País.

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2. CACHOEIRA, EM 2002, NÃO QUERIA SERRA, ERA LULA?

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Cachoeira gravou suas negociações com Waldomiro Diniz, presidente da Loterj, a loteria do estado do Rio de Janeiro, em 2002. O vídeo dessa gravação só foi aparecer no Jornal Nacional da Globo em fevereiro de 2004, quando Waldomiro era então assessor de José Dirceu, chefe da Casa Civil do governo Lula. Fez isso para se defender, como diz (veja Cachoeira & Waldomiro, nesta página), ou porque já era um tipo de chantagista? Muito não se sabe ainda sobre o personagem central de nossa história: em 2002 ele, mesmo estando envolvido com políticos do PSDB e do PFL em seu estado, não queria que se apoiasse Serra e estava animado com Lula, que prometia legalizar até o jogo do bicho, como se verá logo adiante. Waldomiro aparece no vídeo pedindo a ele uma comissão pessoal de 1% num negócio. Cachoeira já era empresário de jogos eletrônicos através da Gerplan, que ele tinha em Goiás, e possuía negócios com a GTECH Corporation, a maior do ramo em todo o mundo e detentora das tecnologias mais avançadas para o setor. O relacionamento Cachoeira–GTECH começou em 1997, quando a empresa americana adquiriu a brasileira Racimec para poder atuar no mercado local, e, assim, herdou o contrato de serviços que essa empresa prestava à Gerplan. Especificamente, no processamento do sistema central e na manutenção de equipamentos para a loteria do estado de Goiás, operada por Cachoeira no governo do peemedebista Maguito Vilela (1995–1998), aliás, seu padrinho de primeiro casamento.

No Rio de Janeiro, o consórcio de Cachoeira, Combralog, concorreu com a GTECH na licitação de um contrato com o governo estadual para a exploração no estado de uma loteria de jogos instantâneos – através da instalação de cerca de mil postos oficiais desses jogos. Cachoeira venceu a disputa, contestada, sem sucesso, pela GTECH, entre outras razões porque o edital impedia a participação de empresas que operassem loterias concorrentes da Loterj. Para participar, a GTECH teria que abrir mão de contrato com a Caixa Econômica Federal (CEF), responsável por cerca de 10% de seu faturamento mundial. A despeito dessa diferença, Cachoeira e GTECH tentaram fechar outros negócios. Em 2002, assinaram um memorando de intenções para a exploração conjunta de propostas para novos editais e licitações de loterias estaduais. Nenhuma de umas poucas tentativas cobertas por esse memorando prosperou. Em 2002, Cachoeira participou de um dos encontros que Diniz, já então como assessor de José Dirceu, mas, oficiosamente, sem o conhecimento dele, promoveu com executivos da GTECH em Brasília.

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A essa altura, em Goiás, Cachoeira batalhava para que o novo governo, de Marconi Perillo, do PSDB, voltasse a instalar os jogos eletrônicos oficiais que tinha operado com seu antecessor, Maguito Vilela. Em 2000, um decreto do governador e uma lei da Assembleia Legislativa goiana, sancionada por Perillo, tinham autorizado a exploração das loterias instantâneas, mas procuradores federais no estado tinham barrado a iniciativa. Em 2002, Cachoeira também era sócio do argentino Roberto Coppola na holding Brazilian Gaming Partners (BGP), que, por meio de uma controlada conhecida como Larami, tinha vencido a concorrência para explorar o Serviço de Loterias do estado do Paraná, criado no governo de Jaime Lerner (1999–2002), do PFL, atual DEM. E em sociedade com a Capital-Bet, outra empresa internacional de jogos, foi confirmado, no final do governo Olívio Dutra (1999-2003), como vencedor da licitação para implantar a Lotergs, empresa de loterias do estado do Rio Grande do Sul. Ele tinha ganho a licitação em 2002, com a empresa Capital Construtora e Limpeza. Olívio tinha anulado o resultado, por considerar estranha a razão social da ganhadora. Mas foi obrigado a assinar o contrato, no fim de seu governo. Em maio de 2004, um novo governo, de Germano Rigotto (PMDB), suspendeu a loteria estadual e cancelou o contrato. E, até agora, as duas partes duelam na Justiça.

Os jogos de azar – como o bicho, os caça-níqueis, os bingos – deveriam ser legais? E, mais do que isso, poderiam ser explorados comercialmente por particulares? Não é só Cachoeira que responde sim às duas perguntas. A Constituição Federal não proíbe esses jogos. Como disse o famoso jurista Celso Bastos (1938–2003) em parecer de 1998, quando já estava instalada a polêmica sobre a legalização ou não dessas loterias, a Constituição estabelece as contribuições fiscais sobre a “receita de concursos de prognósticos” nas quais se incluem os jogos de azar, como “um dos pilares de sustentação da Seguridade Social”. E a Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, que dispôs sobre a organização da Seguridade Social e instituiu seu plano de custeio, no primeiro parágrafo do seu artigo 26, definiu especificamente “concursos de prognósticos” como “todos e quaisquer concursos de sorteios de números, loterias, apostas, inclusive as realizadas em reuniões hípicas, nos âmbitos federal, estadual, do Distrito Federal e municipal”. Além disso, no parecer, Bastos diz ainda não existir qualquer proibição constitucional à exploração privada dos jogos.

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Em 2002, aparentemente, Cachoeira esperava uma vitória de Lula. E, com ela, uma legalização dos jogos. Num vídeo divulgado pelo Jornal Nacional, da TV Globo, bem depois, e que é uma espécie de making of da gravação que Cachoeira fez do pedido de propina de Waldomiro Diniz, já citado, o empresário aparece dizendo ao prefeito de Anápolis, Ernani de Paula, para não votar em José Serra, pois o tucano iria ser derrotado. Muita gente – de diferentes partidos – defendia a legalização dos jogos, como dissemos. Lula era um deles. Anunciara essa posição em 2001, mas mudou de ideia um ano depois de eleito, justamente uma semana após a divulgação do vídeo contra Diniz, que abalou seu governo e pode ser considerado a pedra fundamental para a construção do chamado mensalão, que quase levou a seu impeachment. No início de 2004, na mensagem que enviou ao Congresso, Lula justificava a legalização dizendo que ela “prevê a obtenção e o disciplinamento de fontes de recursos, como é o caso dos bingos, que permitam ao governo financiar projetos de inclusão social”.

Com o escândalo, Lula mudou radicalmente. Editou, a 20 de fevereiro de 2004, uma medida provisória (MP) em sentido contrário, proibindo “o funcionamento de casas de bingos e caça-níqueis em todo o País” e comparando a sua legalização à de uma eventual legalização da prostituição infantil e da bandidagem. A MP passou na Câmara dos Deputados em 30 de março, por 295 votos a 73, com três abstenções, mas caiu no Senado, no dia 5 de maio, por 32 votos a 31 e três abstenções. Destaque-se que um dos votos contra a MP foi do senador Demóstenes Torres, eleito em 2002 pelo PFL de Goiás como um campeão da moralidade. Ele dizia que a proibição era uma infantilidade e uma tática para desviar a atenção do caso Diniz. Argumentava que a legalidade ou não dos jogos era uma questão jurídica, que não deveria ser decidida pelo presidente ou pelo Congresso, mas pela Justiça.

Examinando outra das gravações clandestinas desse período, a de um áudio no qual aparece o ex-procurador-geral da República José Roberto Santoro, feita por Cachoeira, na sede da procuradoria em Brasília, em fevereiro de 2004, cerca de uma semana depois da divulgação do vídeo de Waldomiro, uma conclusão possível é a de que a essa altura Cachoeira não estava alinhado com inimigos do governo Lula. Santoro tinha uma cópia do vídeo, recebida do então senador Antero Paes de Barros (PSDB–MT), mas queria que Cachoeira entregasse formalmente o vídeo que incriminava Waldomiro para que ele fizesse o que chamava de “prova lícita” na investigação em curso. Cachoeira não concordou. Chegou a propor a Santoro que se construísse um flagrante, a ser feito pela Polícia Federal, num local combinado, no qual ele deixaria o vídeo. Mas Santoro não aceitou. Disse que da PF o vídeo acabaria indo parar nas mãos do então ainda chefe da Casa Civil, José Dirceu, e do presidente Lula. Santoro tinha pressa: tinha medo de ser surpreendido pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fontelles. Disse que ele chegava cedo ao trabalho e o acusaria de estar tramando com um jornalista e um bicheiro contra o governo que o nomeou. Segundo o Jornal Nacional, que divulgou trechos do diálogo, a conversa durou quatro horas, passou das três e meia da madrugada, mas o procurador não conseguiu o pretendido.

A derrubada da MP instalou uma confusão jurídica, que persistiu por três anos, com os tribunais de diversas instâncias decidindo ora a favor ora contra a legalização. Até que o governo fez uma reforma jurídica que criou a súmula vinculante – decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) com vigência obrigatória em todas as instâncias inferiores. E a súmula vinculante de número 2, da plenária do STF de 30 de maio de 2007, estabeleceu que é “inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre os sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias”. Desde 1999, no entanto, Cachoeira já percorria outro caminho para tornar-se um homem de negócios menos arriscados.

Nesse ano, comprou o controle do laboratório Vitapan, empresa fluminense de produção de medicamentos, criada em 1977, em São João de Meriti, que se transferira em 1990 para o distrito agroindustrial de Anápolis, terra dos irmãos Henrique e Ademar Santillo, políticos da região que tiveram importância durante o processo de redemocratização do País. Ademar foi prefeito de Anápolis. Henrique foi ministro da Saúde do governo de Itamar Franco, que, entre 1992 e 1994, concluiu o mandato do presidente Fernando Collor de Mello, cassado em consequência de um processo de impeachment. Henrique era médico e foi um dos grandes incentivadores da produção de fármacos no País para reduzir nossa dependência das multinacionais. No segundo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1999–2002), Santillo foi sucedido por José Serra, que se empenhou pela aprovação da Lei dos Genéricos, afinal sancionada em fevereiro de 1999. Essa norma permitiu a fabricação no País de grande quantidade de medicamentos cujos princípios ativos tinham patentes internacionais vencidas, mas que continuavam sendo produzidos apenas pelo oligopólio da grande indústria farmacêutica global com aditivos anódinos e sob o disfarce de rótulos variados.

Com o Vitapan, Cachoeira deu um passo importante em direção à legalidade. Outro marco de sua caminhada nessa direção é a associação do Vitapan com outras duas indústrias farmacêuticas goianas, a Neoquímica e a Teuto, no Instituto de Ciências Farmacêuticas (ICF) criado em Goiânia em 2002, sob a inspiração do já citado Ernani de Paula. Paulista, empresário de sucesso em Anápolis, prefeito da cidade entre 2000 e 2003, foi dele a ideia de criar o ICF, que associou a indústria local ao curso de Farmácia da Universidade Federal de Goiás, fez convênios com a Fiocruz e se transformou num centro de certificação de medicamentos, que emite uma espécie de certidão da eficácia do fármaco analisado. Mas não foi por essa via que Carlinhos Cachoeira chegaria à grande cena política nacional. Para isso ele contaria com a contribuição fundamental da grande mídia conservadora interessada em explorar todas as contradições da nova corrente política no poder, que ela chamaria de “lulo-petismo”, a principal das quais foi o mensalão.

3. NO ESTOPIM DO MENSALÃO, A MÃO DE CACHOEIRA

Embora tivesse sido divulgado dois anos depois de gravado e fosse relativo a uma atividade que Waldomiro desempenhara durante o governo de Benedita da Silva no Rio de Janeiro, o escândalo provocado pelo vídeo armado por Cachoeira teve enorme repercussão e o chefe de Waldomiro, José Dirceu, quase caiu de seu posto, logo após a divulgação, já no início de 2004. De algum modo, no entanto, Cachoeira e seus amigos passaram para amigos de Dirceu o áudio da conversa do empresário com o procurador Santoro, que acabou no Jornal Nacional, da TV Globo. E uma coisa matou a outra: Santoro saiu da procuradoria, pela evidente impropriedade de sua conduta, e Dirceu ficou no cargo, quando se percebeu que havia um propósito escondido na Procuradoria-Geral da República para denunciá-lo. Mas a pressão contra o chefe da Casa Civil voltaria em meados de 2005 com a divulgação de outro vídeo famoso, primeiro pela revista Veja e depois por todas as mídias do País. Ele mostrava Maurício Marinho, um funcionário dos quadros intermediários dos Correios, recebendo uma propina de 3 mil reais de um empresário, Arthur Wascheck, e dando detalhes de um esquema de coleta de contribuições existente no órgão em proveito do PTB, o partido presidido pelo deputado Roberto Jefferson.

O técnico, digamos assim, que providenciou o equipamento para a gravação da conversa de Wascheck com Marinho é Jairo Martins, preso junto com Cachoeira em 29 de fevereiro deste ano, acusado de ser um de seus agentes para gravações clandestinas e espionagem. Na época, quando depôs na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios, criada em conjunto pelo Senado e pela Câmara em junho de 2005, para investigar o escândalo desencadeado com a divulgação do vídeo, o depoimento de Martins já havia causado estranheza. O relator da CPMI, Osmar Serraglio (PMDB–PR), considerou que era, no mínimo, uma incrível coincidência que Martins, como dizia no depoimento, tivesse encontrado o empresário num bar, por acaso e, também por casualidade, conhecesse Carlos Cachoeira. E, ainda por acaso, tivesse sido apresentado ao dito empresário por Casser Bittar, cidadão casado com uma sobrinha da mulher de Cachoeira. O então deputado federal José Eduardo Cardozo, atual ministro da Justiça, no mesmo interrogatório, analisando as contradições entre o que diziam de um lado Martins e de outro o empresário para o qual ele trabalhara, concluiu que ele havia traído o cliente, em nome de outros interesses.

Com o vídeo, Waschek, que era fornecedor dos Correios, queria melhorar seus negócios com a empresa. Martins, que se disse jornalista e dono, com o pai, de uma empresa de prestação de serviços jornalísticos, queria divulgar o vídeo de graça, segundo o que disse na CPMI, para prestar um serviço ao País. Para tanto procurou Policarpo Júnior, o chefe da sucursal de Veja em Brasília e também um dos redatores-chefes da revista. Na esteira das repercussões do vídeo, Jefferson voltou suas baterias contra Dirceu, acusando-o de ser o chefe da distribuição de um mensalão, uma contribuição mensal para deputados da base aliada votarem com o governo. Como Retrato do Brasil já reportou, em sua edição com a história desse escândalo, o primeiro alvo da oposição ao governo foi o presidente Lula, que, de fato, indicara Delúbio Soares, o principal acusado, para a direção executiva do PT. Mas logo a oposição viu que o impeachment de Lula era um objetivo muito difícil de atingir.

Depois de um editorial de O Estado de S. Paulo, o mais consequente e o mais influente órgão da grande imprensa liberal do País, dizendo ser “José Dirceu de Oliveira e Silva” o nome da crise, as baterias oposicionistas se voltaram contra o chefe da Casa Civil, o ex-comunista, o ex-guerrilheiro, um alvo mais apropriado do ponto de vista político e ideológico. Roberto Jefferson, que de início se voltara também contra Lula, dizendo que ele fora informado do mensalão anteriormente, discursou na Câmara com novo foco. Disse para Dirceu deixar seu cargo no governo para não prejudicar o presidente, “um homem inocente”. Com o final de três comissões de inquérito que de formas diversas acabaram explorando o escândalo, Dirceu foi apontado como o “chefe da quadrilha” do mensalão nos relatórios dos dois procuradores-gerais da República que examinaram o caso, primeiro Antônio Fernando de Souza, em 2006, depois Roberto Gurgel, em julho do ano passado, e deve ser julgado pelo STF proximamente, junto com os outros chamados “mensaleiros”.

A prisão de Cachoeira, agora, trouxe outra versão para a história do vídeo dos Correios. Várias gravações de conversas do empresário com seus auxiliares o mostram dizendo ser a sua equipe de especialistas em gravações clandestinas, da qual Martins fazia parte, a verdadeira produtora de vários escândalos contra os governos petistas apresentados por Policarpo em Veja, escolhida, como diz um deles, por ser a quarta maior revista semanal do mundo. O prefeito De Paula disse em entrevista ao site 247 e ao jornalista Paulo Henrique Amorim, da TV Record, que Cachoeira lhe contou ter ajudado a produzir o vídeo que denunciou Marinho em 2005, o que significa dizer que Martins trabalhava não exatamente para o bem do Brasil, como dizia, mas para os interesses de Cachoeira.

Em entrevista a RB, De Paula deu indicações do que pode ser outra pista para entender melhor o chamado mensalão. Como já vimos, ele foi prefeito de Anápolis até 2003. No final daquele ano, o governo Perillo interveio na prefeitura alegando o descumprimento de certas normas da Constituição estadual quanto ao uso de verbas da educação. De Paula também fazia parte do grupo político apoiado por Cachoeira. No making of do vídeo de Waldomiro, divulgado pela TV Globo, Cachoeira aparece recebendo o telefonema de um “prefeito” pedindo algo que ele diz que vai atender. Esse prefeito é De Paula. Ele diz que na ocasião era o arrecadador de fundos em Anápolis para a campanha dos candidatos a deputado da coligação PFL–PSDB e telefonou a Cachoeira pedindo ajuda.

De Paula, que hoje vive em São Paulo, diz que ficou em Anápolis por mais alguns anos após a perda do mandato. Sua mulher, Sandra Melon, era suplente do senador Demóstenes Torres e, na época do escândalo do mensalão, houve uma sondagem do governo Lula para levá-lo para a Secretaria Nacional de Justiça, o que interessava ao ex-prefeito de Anápolis, porque sua mulher se tornaria senadora. Demóstenes acabou não indo para o governo (uma das gravações de suas conversas com Cachoeira, divulgadas agora, mostra os dois discutindo – e aprovando – uma articulação que o levaria ao governo da presidente Dilma Rousseff, a partir de uma mudança de partido, do DEM para o PMDB, que seria feita no início do ano passado).

A articulação para inseri-lo no governo do PT já bem antes, no entanto, não é improvável. O senador era uma figura de duas caras. Como disse o jornalista Valdo Cruz, do diário Folha de S.Paulo, num talk-show da TV Globo, no início de maio, ele era o que mais batia no governo durante o escândalo do mensalão, mas, sistematicamente, saía do Senado no final do dia e ia confabular com o então ministro Antônio Palocci, tornado, com a queda de Dirceu, o homem forte do governo Lula, que estava desorientado. A Polícia Federal (PF) era da área de influência do senador Romeu Tuma, ex-PFL e então no PTB. O chefe da PF era o delegado Paulo Lacerda, ligado a Tuma. No final de 2006, Lacerda nomeou, com a função de investigar uma conspiração que ameaçaria o próprio presidente da República, e alocou na diretoria-geral, sob seu comando direto, o delegado Protógenes Queiroz, que deflagrou a Operação Satiagraha. O presidente disse num programa de televisão que, no caso do mensalão, tinha sido traído. A Satiagraha que, a princípio, se voltava contra o financista Daniel Dantas, foi também atrás desse traidor, ao que tudo indica, no próprio Palácio do Planalto.

Queiroz grampeou muita gente. Os relatórios de seus grampos, que se estenderam por um ano e meio, encontraram, segundo dizem explicitamente, três quadrilhas: duas comandadas por financistas, Daniel Dantas e Naji Nahas, e uma terceira no próprio Palácio do Planalto. Quando Protógenes foi afastado da Satiagraha, em 2008, e investigado pela própria PF, os agentes descobriram, em seus locais de residência, a comprovação de várias impropriedades de sua investigação. Entre elas estava um vídeo da gravação, feito irregularmente pela Rede Globo de televisão, de um encontro no qual Queiroz pretendeu armar um flagrante de corrupção contra a equipe de Dantas. Descobriu, também, um “dossiê Dilma”, grampos feitos de conversas com referências à chefe da Casa Civil. O dossiê Dilma é o resultado da procura do “traidor” do presidente. Quando Queiroz começou a grampear gente a torto e a direito, Dilma, então ministra da Casa Civil, era a encarregada por Lula de comandar a operação que tirou a Brasil Telecom (BrT) do comando conjunto exercido por Dantas, pelo Citibank e por fundos de pensão das grandes estatais e a passou ao controle da dupla empresarial Jereissati–Andrade Gutierrez, para a formação da Oi, então chamada de a tele verde-amarela.

O primeiro grampeado próximo da então ministra Dilma Rousseff foi Luiz Eduardo Greenhalgh, petista histórico, advogado de Lula, que então trabalhava para Dantas com vistas a resolver as pendências entre o financista e os fundos de pensão na BrT. No seu relatório, Queiroz diz que Greenhalgh “frequenta as antessalas da Presidência da República” e é “intimamente próximo do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, cuja conduta envolvendo tais autoridades” – ele se refere explicitamente à então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, e ao ainda chefe de Gabinete da Presidência da República, Gilberto Carvalho – “serão apuradas (sic) em instrumento próprio, caso assim entenda Vossa Excelência”, no caso o juiz federal Fausto de Sanctis. Se esse “instrumento próprio” foi desenvolvido, não se sabe. O certo é que o escritório de José Dirceu em São Paulo foi invadido na calada da noite e a memória de seu computador principal foi surrupiada.

Queiroz havia espalhado senhas do Guardião, o sistema oficial de gravação de conversas telefônicas pela PF, para arapongas trazidos da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ou contratados por fora. Segundo um delegado da PF que viu o desmantelamento desse esquema quando Lacerda foi afastado do comando da instituição, em outubro de 2007, o chefe do serviço de inteligência da Satiagraha na época de Queiroz era Idalberto Matias de Araujo, o Dadá. O relatório do delegado da PF Amaro Ferreira, que investigou Queiroz e o levou à condenação em primeira instância, se refere a matérias encontradas com Dadá e que mereceriam exame, tendo em vista serem despropositados (veja o quadro na página 36).

Dadá formou com Jairo Martins a dupla de espiões de Cachoeira e também foi preso com ele em fevereiro deste ano. Com Martins, Dadá e as matérias produzidas para Veja por Policarpo Júnior, Cachoeira promoveu, a partir da experiência adquirida com o mensalão, várias outras operações em defesa de seus interesses. Duas merecem destaque. A primeira é a que gravou um corredor do Hotel Naoum, em Brasília, que dava para um apartamento onde o deputado Dirceu promovia reuniões. Cachoeira diz a Demóstenes, pouco antes de a matéria ser publicada, que Martins tinha passado para Policarpo as imagens que o chefe da sucursal de Veja iria “estourar” na revista. Cachoeira diz que o vídeo vai mostrar que Dirceu continua mandando, que o ex-chefe da Casa Civil de Lula promoveu a queda de Palocci, chefe da Casa Civil de Dilma, e Torres diz que aquilo “é bom demais”. Cachoeira explica que orientou Martins para que Policarpo Júnior peça autorização a ele para usar a gravação, para que possa negociar as condições da entrega. Demóstenes concorda que tem de ser assim: se não, “ninguém ‘guenta’”. A segunda trata da divulgação de informações para derrubar Alfredo Nascimento, então ministro dos Transportes, e o chefe, naquele momento, do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), Luiz Antônio Pagot. Segundo um dos grampos da PF das conversas com Cláudio Abreu, diretor da construtora Delta no Centro-Oeste, Cachoeira diz ele que “plantou” matérias contra o chefe do Dnit na imprensa e comenta, mais grosseiramente: “Enfiei tudo no rabo do Pagot”. Em outra conversa entre os mesmos personagens, Cachoeira diz: “Precisamos dar uma porrada aí”, referindo-se a Nascimento. Fala em “denúncia pesada contra o cara”.

Pagot contou após a difusão dos grampos das conversas entre Cachoeira e Abreu o que, a seu ver, de fato aconteceu: “Houve uma reunião muito tensa. Ela deveria ter ocorrido no fim de junho, mas foi antecipada. A presidente reclamou acintosamente dos valores das obras do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] 2. Eu disse que já tinha avisado e ela se irritou. Encerrou a reunião dizendo que precisávamos reavaliar o PAC 2. Qual não foi minha surpresa quando no fim de semana saiu a reportagem escabrosa e na segunda-feira estávamos demitidos”.

4. POR QUE O PROCURADOR NÃO PROCUROU DEMÓSTENES

O comportamento do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, no caso Cachoeira, também entrou em discussão porque ele não encaminhou para o Supremo Tribunal Federal os autos da Operação Las Vegas, a que antecedeu a Monte Carlo, já em setembro de 2009, quando os recebeu da Polícia Federal com amplas evidências de que o senador Demóstenes Torres estava intimamente ligado ao esquema de Cachoeira. No depoimento que deu no último dia 8 de maio à CPMI instalada para apurar o caso agora, o delegado da PF Raul Alexandre Marques de Souza, que conduziu a Las Vegas, disse expressamente ter amplas condições para afirmar ser Demóstenes, já em 2009, claramente “o braço político da organização” de Cachoeira. Marques de Souza disse que entregou o relatório da Las Vegas à subprocuradora Cláudia Sampaio Gurgel, a 15 de setembro de 2009, e ela o chamou um mês depois para dizer que o procurador-geral, Roberto Gurgel, coincidentemente seu marido, lhe teria dito não existirem indícios suficientes para abrir inquérito contra parlamentares. O delegado apontou ainda outra incongruência de Gurgel. Se ele acha que os indícios contra Demóstenes não eram suficientes, por que na denúncia feita agora, em 2012, contra o senador, usou mais indícios colhidos pela Las Vegas, 22, do que colhidos pela Monte Carlos, apenas 20? “Gurgel está sem defesa”, disse o deputado Onix Lorenzoni (DEM–RS) após ouvir o delegado. “Ele estava com a bomba atômica na mão e nada fez.”

O procurador Gurgel também agiu de modo parcial em relação ao governador petista do Distrito Federal, Agnelo Queiroz. Veja-se por exemplo a disparidade de tratamento que Gurgel dispensou a ele e ao governador de Goiás, no começo da história, quando já eram inúmeros os indícios de uma relação muito próxima de Perillo com Cachoeira. Havia diálogos entre o empresário e seus auxiliares que revelavam explicitamente uma operação para levar ao governador, no próprio palácio do governo, dinheiro para o pagamento de uma casa. “É pro governador”, diz Cachoeira ao seu operador Wladimir Garcez. Como se sabe, Cachoeira foi preso numa casa que pertencia a Perillo. O governador a teria vendido a um terceiro. Não se sabe por que, então, Cachoeira morava nela. Outros diálogos mostram Cachoeira tentando evitar que se diga que a casa é dele. Há ainda inúmeros casos de controle de setores das polícias Civil e Militar de Goiás por Cachoeira.

No caso de Agnelo, o que existiam eram indícios de iniciativas ilegais ou imorais da Delta, de pressões e chantagens da empreiteira contra o governador. E, no entanto, o procurador-geral pediu logo ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorização para investigar o governador petista do DF e não o governador tucano de Goiás. Mais estranhamente ainda a Procuradoria-Geral da República no DF e Territórios e a Polícia Civil de Brasília, com a Operação Saint Michel, uma espécie de apêndice da Operação Monte Carlo, deflagrada no final de abril, pretendiam entrar no Palácio do Buriti, sede do governo do DF, no eixo monumental de Brasília, para prender um funcionário que estaria envolvido na possível fraude de uma licitação que deveria ter sido feita há tempos e não foi e cujo edital nem sequer existe. A notícia da prisão do funcionário no Buriti chegou a ser dada por Mino Pedrosa, do blog Quidnovi. O site dizia: “Eram 4h23min da manhã, quando a Polícia Civil e o Ministério Público entraram no gabinete do secretário de Governo do DF, Paulo Tadeu (PT), e no do ex-chefe de Gabinete do governador Agnelo, Cláudio Monteiro”. Só que, de fato, essa invasão do Buriti não existiu. O funcionário já havia deixado o governo há tempos e foi preso em sua casa. O Quidnovi é o principal foco de ataque ao governador Agnelo, municiando a grande imprensa com histórias preparadas ou conseguidas de arapongas infiltrados na polícia. Famoso pela entrevista com o motorista Eriberto França, em junho de 1992, crucial no processo de impeachment do presidente Collor de Mello, Mino Pedrosa fez trabalhos para Cachoeira entre 1999 e 2004. Segundo Cachoeira deu a entender em depoimento à CPI da Loterj, criada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, foi Pedrosa quem entregou a gravação de Diniz à revista Época, em fevereiro de 2004, desencadeando o primeiro escândalo político do governo Lula.

Dos incontáveis grampos de seus telefonemas pela PF na Operação Monte Carlo, ao longo de todo o ano de 2011 e começo de 2012, se vê que Cachoeira, a despeito de ter ganhado um bom dinheiro nos seus já então 17 anos de atividades e de ter se elevado socialmente, ainda cuidava pessoalmente, nos detalhes, do seu negócio mais perigoso, o da exploração dos caça-níqueis já então proibidos de forma ampla. Em 31 de maio de 2011, por exemplo, desde a manhã, ele está preocupado com as informações que tem sobre a repressão aos jogos em Valparaíso de Goiás. Trata do assunto três vezes, entre as 8h17 e as 9h40, com aquele que a PF considera o seu principal assessor, Wladimir Garcez. Às 20h29, Cachoeira conversa diretamente com o delegado Aredes Pires para saber da nomeação de um certo Alexandre Lourenço para cuidar da repressão aos jogos em certa área. Pires, a despeito de ser o corregedor da Polícia Civil goiana, é um dos cerca de 30 policiais que segundo a PF fazem parte da quadrilha. Cachoeira quer saber quem é o tal Alexandre. Aredes diz que se trata de um chato insuportável, com o qual não há negócio possível e que os amigos de Cachoeira na área em referência vão ter problemas: “Ali é problema grave, não tem como manter aquilo ali”.

Segundo relatório da Receita Federal feito a partir dos documentos apreendidos pela PF, Cachoeira e os que seriam os seus três principais “laranjas” – seu irmão Sebastião Ramos, sua ex-mulher, Andréa Aprígio, e o irmão dela, Adriano Aprígio – tinham um patrimônio declarado de 25,4 milhões de reais em 2010. Em 2006 Cachoeira foi multado pela Receita em 1,24 milhão e, a partir de então, acha a PF, teria passado a movimentar no exterior boa parte de seus recursos. Cachoeira é um homem rico, com certeza. Sua ex-mulher e os dois filhos desse casamento moram no Excalibur – edifício no qual cada apartamento ocupa todo um andar, com piscina e jardim próprios – e têm como vizinhos algumas das famílias mais ricas de Goiânia. Ele, com a nova mulher, Andressa Mendonça, moram no Alphaville, um conjunto de condomínios de alto padrão onde residem o governador Perillo e altos executivos, entre os quais Cláudio Abreu, da construtora Delta. Cachoeira foi preso no Alphaville, no final de fevereiro, assim como Abreu, um mês depois, em nova operação da PF, a Saint Michael, da qual já falamos.

Cachoeira pode ser então um milionário na faixa das dezenas de milhões de reais. Não na das dezenas de bilhões de reais, que é, como explica a aritmética simples, mil vezes maior. Mas ele parece ter se aproximado dessa faixa de gente com os seus negócios com a construtora Delta, de Fernando Cavendish, empreiteiro, de 49 anos como Cachoeira, cujas festas em Paris com o governador fluminense, Sérgio Cabral, e seus secretários encheram as páginas dos jornais no começo do mês passado. A Delta, uma empresa pernambucana de meio século, mas até recentemente com pouca expressão, cresceu vertiginosamente nos últimos anos, quando mudou sua sede para o Rio de Janeiro e passou a disputar agressivamente obras públicas. Hoje, tem algumas dezenas de filiais e 200 contratos com governos federal, estaduais e municipais. Seu faturamento passou de 50 milhões de reais em 2001 para 1,1 bilhão de reais no ano passado.

A empresa já se encontrava no que se pode chamar de zona do escândalo político disparado através de notícias da imprensa divulgadas por adversários comerciais da Delta, utilizando, novamente, o nome da grande figura do mensalão. Veja, em maio do ano passado, publicou matéria na qual disse que o ex-ministro José Dirceu tinha assinado um contrato de assessoria com ela. Previsto para seis meses, no valor de 20 mil reais por mês, o contrato com Dirceu, revelavam à revista sócios rompidos com a Delta, tinha sido suspenso após quatro meses. Mas, dizia a revista, seria “muito mais que uma simples coincidência” e explicaria por que a Delta teria crescido tanto nos últimos anos. Com a prisão de Cachoeira e a divulgação de inúmeras gravações de conversas aparentemente comprometedoras dele com Abreu, o diretor da Delta para o Centro-Oeste, Cavendish, tudo indica, se assustou.

Ele concedeu entrevista bombástica à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, dizendo que a Delta iria quebrar. Com a prisão de Abreu, deixou a presidência do Conselho de Administração da empresa, da qual é o controlador com cerca de 85% do capital. Afastou também seu presidente-executivo, Carlos Pacheco. Nomeou um novo administrador, Carlos Verdini, que foi ao Congresso prestar contas. Cavendish ainda articulou a venda da Delta para o grupo que controla o JBS, hoje a maior empresa global da área de carne bovina, de empresários de Goiás e do qual participa como presidente do Conselho Consultivo o ex-presidente do Banco Central e ex-presidente do BankBoston Henrique Meirelles, também de Anápolis.

A se crer na PF, que obviamente prepara seus relatórios e seleciona o que vai publicar de acordo com critérios próprios, Cachoeira caíra nas graças de Cavendish. Diz Abreu num desses trechos selecionados pelos investigadores, num relatório anterior ao da Operação Monte Carlo, o da Operação Las Vegas, realizada entre 2006 e 2009: “Você [Cachoeira] é meu grande guru. Tô falando tão bem de você para Fernando [Cavendish] e [Carlos] Pacheco, que eles estão doidinhos para te conhecer”. A Delta foi para Goiás em 2005. Atualmente diz que as relações com Cachoeira eram as mantidas apenas por Abreu, seu diretor regional, afastado pela empresa uma semana após a prisão de seu “guru”. Isso não parece verdadeiro. A Delta Construções doou oficialmente 2,3 milhões de reais para as campanhas eleitorais de 2010, mas a PF encontrou o que os grandes jornais passaram a chamar de “deltoduto”: transferências de 26,2 milhões de reais da Delta para empresas consideradas de fachada controladas por Cachoeira, que acabaram transferindo para outras, de mesmo tipo, 17,8 milhões de reais, que teriam ido para vários políticos, como Perillo (450 mil reais), o governador goiano, e o deputado Sandes Júnior (PP–GO, 300 mil) no ano eleitoral de 2010.

Cachoeira e Abreu não trabalhavam apenas para benefício próprio: juntavam esforços em defesa da Delta. Tome-se o caso do Distrito Federal. A mídia empenhada na crítica do lulo-petismo tomou o governador Agnelo Queiroz, do PT, como um dos alvos a serem atingidos. De fato, o que parece ter ocorrido no DF foi uma enorme pressão comandada por Cachoeira e Cláudio Abreu para assegurar à Delta postos de comando no novo governo, que substituiu o de José Roberto Arruda, do DEM, após uma série de escândalos do tipo dos armados por Cachoeira – com vídeos clandestinos de denúncias de corrupção divulgados pela mídia e coisas do gênero. Como disse o diário Correio Braziliense no final da primeira semana de maio, as gravações da PF mostraram que Cachoeira e Demóstenes contavam com denúncia do Ministério Público contra o governador para pressionar pelos interesses da Delta em contratos com o governo do DF.

Num dos diálogos, diz Dadá, o espião de Cachoeira, a seu chefe: “Primeiro tem que conversar com Cláudio [Abreu] e Fernando [Cavendish], porque eles querem que bata [em Agnelo]”. Em vários outros telefonemas Dadá mostra que o grupo de Cachoeira espera uma denúncia de Gurgel, o procurador-geral da República, contra Agnelo Queiroz para atacá-lo e que o objetivo é enfraquecê-lo para obter concessões, como nomear o presidente do Serviço de Limpeza Urbana, que controla os contratos de lixo do DF. Num governo interino que funcionou entre a data do afastamento de Arruda e a posse de Agnelo, o contrato de lixo do DF com a Delta tinha sido prorrogado por uma liminar da Justiça. A Delta ambicionava também ganhar o contrato para os serviços de bilhetagem eletrônica do transporte urbano do DF, estimados em 60 milhões anuais. O papel de Demóstenes na história era o de aproveitar a conjuntura para atacar o governador Agnelo, enfraquecê-lo para facilitar os negócios pretendidos pela Delta. E Demóstenes cumpria seu papel. Em novembro passado pediu o impeachment de Agnelo da tribuna do Senado.

5. MUITAS PEQUENAS VERDADES E UMA GRANDE MENTIRA

Cachoeira pode ter achado que a Delta abriria para ele uma via de ascensão mais rápida para uma esfera mais legal e segura. Se o fez, se enganou. Os escândalos que criou com a ajuda da grande mídia descontente com o lulo-petismo acabaram se voltando contra ele e seu principal parceiro nessas histórias, o senador Demóstenes Torres. Muita gente se diz surpresa ao descobrir que o senador, tido como a grande estrela dos liberais até há pouco, tenha se revelado mais falso que uma nota de três reais, sem se dar conta da experiência recente do País, na qual dois ex-presidentes tidos como paladinos da moralidade – Jânio Quadros, no início dos anos 1960, e Fernando Collor de Mello, no início dos 1990 – já tinham sido exemplos dramáticos dos horrores do moralismo para a vida política nacional.

Os esforços para tirar lições políticas e punir culpados pelos malfeitos revelados esbarram, primeiro, no próprio clima de escândalo no qual as revelações são feitas. O juiz federal Ali Mazloum escreveu em O Estado de S. Paulo, a propósito do espetáculo criado pelos vazamentos seletivos das interceptações telefônicas, para exemplificar, que “uma conversa telefônica envolvendo cocaína não comprova o tráfico de drogas” porque fica faltando “a materialidade do delito”. “Para que tenha efetividade”, diz Mazloum, “uma investigação não deve ficar limitada à exibição impactante do material sigiloso”. O policial, diz ele – e, poderíamos acrescentar, o jornalista –, “deve sair a campo para demonstrar que no mundo real existem fatos que correspondem ao teor das conversas interceptadas”.

Mazloum, especialista em direito penal, distingue um “direito penal do autor” – “de natureza nazifascista”, que se materializa, por exemplo, com essa excessiva preocupação com as palavras dos agentes – do “direito penal do fato” e pede que se aguardem, para tirar conclusões mais reais, “as provas e contraprovas, o direito inalienável de defesa, o curso natural do processo democrático”. O advogado de Demóstenes e do governador Perillo, Antônio Carlos de Almeida Castro, quase no mesmo sentido que Mazloum, lembrou que a Operação Monte Carlo é uma continuidade da Operação Las Vegas e que, nesta, a PF e o Ministério Público de Goiás concluíram que os indícios de crime contidos nas conversas de Cachoeira com o senador Demóstenes, deveriam ser encaminhados ao STF, por este ter foro privilegiado. Mas, depois, na Operação Monte Carlo, continuaram a grampear as conversas telefônicas Cachoeira-Demóstenes, mesmo sabendo que Demóstenes tinha foro privilegiado. Portanto, esses grampos devem ser anulados pelo STF, devem ficar fora dos autos, diz Almeida Castro. Ele rebate o argumento de que Demóstenes foi grampeado fortuitamente na Monte Carlo por falar com Cachoeira. “Encontro fortuito não pode ser um diálogo que perdure durante um ano e meio, dois anos. Se fosse direito de família [a relação entre Demóstenes e Cachoeira] teria estabilidade”, ele ironiza.

O Senado levou Demóstenes à sua Comissão de Ética, e o senador Humberto Costa, relator do processo, leu um parecer pedindo a sua condenação, que foi aprovada pela unanimidade dos 18 membros da comissão. Por precaução, Costa não usou os famosos grampos telefônicos colhidos pela PF e argumentou basicamente que Demóstenes agiu como um mentiroso contumaz. E tudo indica que, num processo que deve durar até o final deste mês, ele será cassado por seus pares, o que parece razoável. A CPMI que começou a funcionar no início do mês passado teria, em princípio, a possibilidade de ir além e tirar conclusões políticas mais amplas dos fatos observados. O deputado Henrique Fontana (PT–RS), relator da Comissão da Reforma Política, atualmente semiparalisada em função da oposição dos que defendem o financiamento privado das campanhas eleitorais, achou que a atual CPMI torna a proposta do financiamento público “mais atual do que nunca”.

O caso Cachoeira, diz Fontana, “dá uma força para o projeto, porque mostra com mais clareza que, além do abuso de poder econômico feito de maneira legal, que torna desequilibrada a eleição, o sistema de financiamento atual é uma espécie de paraíso para o crime organizado e para o dinheiro da corrupção entrarem para dentro (sic) da política”. Dificilmente a CPMI será levada nessa direção. Pela mesma razão de que já está sendo levada, pela pressão da grande mídia conservadora, hegemônica na espetacularização do escândalo Cachoeira, a concluir que a discussão do papel da imprensa nessa história é uma espécie de censura, inadmissível. De um modo geral, os políticos, mesmo os mais progressistas, sabem e temem o poder dessa mídia para destruir reputações. Na primeira semana de funcionamento da CPMI, por exemplo, como lembrou a jornalista Cynara Menezes, em artigo para a revista CartaCapital, dos 167 requerimentos apresentados à comissão, sendo 115 deles para convocar depoentes, nenhum jornalista ou dono de jornal ou revista foi colocado na lista.

A mídia da qual Veja é o símbolo considera que sua tarefa é divulgar qualquer coisa que seja “verdadeira”. Não quer saber, como dizia o poeta, que a verdade mora num poço e não é fácil de achar. Qualquer fato social relevante está envolvido por uma miríade de pequenas verdades, grande parte delas irrelevante para a verdadeira compreensão do fato social analisado. Como a sociedade é contraditória e dividida em camadas e classes sociais, os fatos relevantes são construídos socialmente, a partir de jornalistas, órgãos de imprensa, com interesses, posições. E quando, na grande mídia do País, como agora, existe praticamente uma corrente única, crítica do lulo-petismo, as verdades ficam sendo apresentadas, principalmente, de um ponto de vista só. E, assim, um conjunto de pequenas verdades acaba formando uma grande mentira.

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