'O sistema carcerário é uma covardia social'

Todo homem é maior que seu erro; esse é um dos lemas que inspira o trabalho da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), entidade sem fins lucrativos que há cerca de 40 anos trabalha com a recuperação presos; por meio de um método idealizado pelo médico e jornalista Mário Ottoboni os presos são corresponsáveis pela sua recuperação e contam com assistência espiritual, médica, psicológica e jurídica prestada pela comunidade; "O crime é uma peste, é uma doença, inclusive espiritual. Se a pessoa não estiver com a mente voltada para um rumo definido, ela sucumbe. Não tem jeito. Pobreza, miséria e ignorância contribuem para que o sistema prisional seja o que é hoje. É uma covardia social"

Todo homem é maior que seu erro; esse é um dos lemas que inspira o trabalho da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), entidade sem fins lucrativos que há cerca de 40 anos trabalha com a recuperação presos; por meio de um método idealizado pelo médico e jornalista Mário Ottoboni os presos são corresponsáveis pela sua recuperação e contam com assistência espiritual, médica, psicológica e jurídica prestada pela comunidade; "O crime é uma peste, é uma doença, inclusive espiritual. Se a pessoa não estiver com a mente voltada para um rumo definido, ela sucumbe. Não tem jeito. Pobreza, miséria e ignorância contribuem para que o sistema prisional seja o que é hoje. É uma covardia social"
Todo homem é maior que seu erro; esse é um dos lemas que inspira o trabalho da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), entidade sem fins lucrativos que há cerca de 40 anos trabalha com a recuperação presos; por meio de um método idealizado pelo médico e jornalista Mário Ottoboni os presos são corresponsáveis pela sua recuperação e contam com assistência espiritual, médica, psicológica e jurídica prestada pela comunidade; "O crime é uma peste, é uma doença, inclusive espiritual. Se a pessoa não estiver com a mente voltada para um rumo definido, ela sucumbe. Não tem jeito. Pobreza, miséria e ignorância contribuem para que o sistema prisional seja o que é hoje. É uma covardia social" (Foto: Leonardo Lucena)


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Marco Weissheimer, Sul 21 - Todo homem é maior que seu erro. Esse é um dos lemas que inspira o trabalho da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), entidade sem fins lucrativos que há cerca de 40 anos trabalha, especialmente no estado de Minas Gerais, com a recuperação de condenados a penas privativas de liberdades com um método especial, idealizado pelo médico e jornalista Mário Ottoboni. Por meio desse método os próprios presos são corresponsáveis pela sua recuperação e contam com assistência espiritual, médica, psicológica e jurídica prestada pela comunidade. Graças ao trabalho de um conjunto de voluntários, ex-apenados e o apoio do Ministério Público, da Vara de Execuções Penais, da prefeitura de Canoas e de outras instituições, a APAC chegou ao Rio Grande do Sul e se prepara para instalar sua primeira casa prisional no Estado, no bairro Guajuviras, município de Canoas, com capacidade estimada para cerca de 100 apenados.

O presidente da APAC de Canoas, a primeira constituída no Rio Grande do Sul, conhece o sistema prisional gaúcho em suas entranhas. Enio Andrade passou 18 anos preso em diversos estabelecimentos penitenciários do Estado. A história de sua vida é marcada por internações. Já aos 11 meses de vida, ele foi internado no Instituto Infantil de Ipanema e só saiu de lá aos seis anos, com seus irmãos, quando a mãe reencontrou condições para criá-los. Um ano depois, Enio saiu de casa, foi para as ruas e iniciou uma jornada que o levaria para a prisão com 20 anos. Em entrevista ao Sul21, Enio Andrade conta um pouco de sua história, assumindo a responsabilidade pelos erros que cometeu e recusando qualquer vitimização. "O responsável primeiro por tudo que aconteceu comigo sou eu mesmo. Não tenho do que me queixar, mas sim agradecer pelo que aprendi e pelos remédios amargos que me ajudaram a me curar".

Na entrevista, Enio foi acompanhado por seu secretário, Leonel Daboite de Araújo, também ex-apenado, que cumpriu 30 anos e 8 meses de prisão. Leonel conta que perdeu a mãe com 12 anos, foi para a vida do crime e acabou na cadeia com 22 anos de idade. Nesta vida de crimes e de cárcere, conviveu com bandidos famosos no Estado, como Melara, Carioca, Arno Kaulkmann da Rosa e Alemão, entre outros. Todos mortos hoje. Leonel sobreviveu e saiu em 2010, “com uma mão na frente e outra atrás”, relata. Mas trouxe um patrimônio desta passagem pelo inferno que, já no período da prisão, ajudou muitas pessoas. Quando entrou na cadeia, não sabia ler nem escrever. Aprendeu e passou a escrever para outros presos. “O meu vocabulário está na escrita. Na cadeia, aprendi a escrever para os presos. Um juiz me estimulou a estudar o Código Penal e a Lei de Execução Penal. para ajudar a escrever os recursos”. Convidado por Enio Andrade, Leonel passou a ajudá-lo no trabalho de implantação da APAC no Rio Grande do Sul. “Eu me sinto orgulhoso com esse trabalho que estamos fazendo”, diz.

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Para Enio Andrade, histórias como a dele e de Leonel indicam um caminho para a saída do inferno que se tornou o sistema prisional no Estado, cuja situação, adverte, piorou muito com a explosão do crack e o aumento da população dos presídios. Ele define o sistema prisional atual como um inferno que não reabilita ninguém e só estimula a criminalidade. Cita um dado para defender o método APAC. “A reincidência na APAC é de 10%. No sistema tradicional gira em torno de 85%, 90%”. Mas o principal argumento de Enio é a sua própria história. Ele pretende ensinar pelo exemplo.

Sul21: Por que caminhos você acabou indo parar no mundo do crime?

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Enio Andrade: Eu fui interno com onze meses de vida numa Febem da época, o Instituto Infantil de Ipanema, aqui em Porto Alegre. Saí de lá com seis anos, eu e dois irmãos. Passados seis anos, a nossa mãe reencontrou as condições de nos ter com ela novamente em casa. Mas lá encontramos o padrasto. Não que ele tivesse sido ruim ou qualquer coisa assim. Eu já tinha uma marquinha de rebeldia, talvez pelo internamento ou por condições psicológicas, não vem ao caso aqui, e não cheguei a ficar um ano em casa. Saí e não voltei nunca mais.

Sul21: Nesta época, você tinha de seis para sete anos?

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Enio Andrade: Exato. Aí comecei a roubar frutas, pular um pátio, e me juntei com aquela gurizada que já roubava alguma coisa. Vivia na rua, totalmente independente, ou na dependência da rua, melhor dizendo. Conheci todos os abrigos de menores que existem por aqui. Estive em 26 internatos diferentes, quando menor. Daí para a cadeia foi um pulinho. Também acabei conhecendo todas essas cadeias que têm por aí. Eu tinha 20 anos quando baixei pela primeira vez no Presídio Central. Tinha a mente bem despreparada, digamos, e tive que passar uns momentos até cair a ficha. Mas antes de baixar pela primeira vez no Central eu já conhecia todo o presídio por dentro, porque, na época, eles levavam o excesso de presos da Delegacia de Furtos e da 8ª Delegacia para uma galeria desocupada que havia lá. Então quando eu fui pela primeira vez para a cadeia na condição de maior eu já conhecia a cadeia e praticamente toda a população carcerária, pois eu me criei no crime e na violência desde pequeninho. No total, depois ter atingido a maioridade, fiquei 18 anos preso.

Eu não estou me lamentando aqui, dizendo como sofri e como doeu. As pessoas que me conhecem sabem que eu nunca me queixo. O responsável primeiro por tudo que aconteceu comigo sou eu mesmo. Não tenho do que me queixar, mas sim agradecer pelo que aprendi e pelos remédios amargos que me ajudaram a me curar.

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Por volta dos 24 anos, comecei a trabalhar na Pastoral Carcerária, no Presídio Central, mas, no início, eu estava fingindo, pensando em plasmar uma imagem de bonzinho ou em criar condições para alguma fuga. Eu não tinha nenhuma expectativa de sair pelo portão, minha única expectativa era de pular o muro ou a tela, voltar para a rua e fazer as mesmas coisas que sempre fiz. Eu comecei a me fingir de bem comportado e acabei descobrindo que, quando a gente quer mudar, pode começar fingindo que é legal. Eu aprendi a tocar violão e órgão e comecei a trabalhar com o coral. Eu amo coral. Mas boa parte do tempo que passei envolvido com a evangelização neste período foi consumido pela mentira. Eu montei uma farsa para tentar convencer aquelas pessoas que eu era legal. O objetivo era saltar fora e depois ver o que ia acontecer. Mas não foi assim que as coisas acabaram ocorrendo. Eu achava que nunca mais ia sair do cárcere e não me preocupava em saber da minha situação jurídica. Não mudava nada, eu saber ou não.

Sul21: Você tinha contato com algum advogado na época?

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Enio Andrade: Se hoje está difícil um advogado para o presidiário, imagina naquela época. Tanto isso é verdade que, em todas as casas prisionais pelas quais passei, ajudei a montar um setor jurídico paralelo ao da casa, que era muito mais eficiente que o da casa. Era um serviço muito procurado e concorrido pois tínhamos como enviar a correspondência, trazê-la de volta e dar resposta para a pessoa. O que mais alivia um presidiário é ele ter respostas às perguntas dele: quando é que vou sair? qual é o meu artigo? quanto é que eu tenho de pena?

Sul21: Quais foram os acontecimentos que foram levando você a pensar que talvez houvesse uma saída, uma possibilidade de mudança de vida?

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Enio Andrade: Certo dia, uma das senhoras que trabalhava na equipe de evangelização do Central, dona Sulema Terra, esposa do desembargador Alaor Terra, admiradíssima, madrinha amada que já faleceu, conversava com outros detentos em uma cela a respeito da minha pessoa. Eu estava atrás dela, ouvi a conversa e me apresentei: eu sou o Enio Andrade. Aí começou uma amizade e eu comecei a descobrir Jesus, não que ele fosse totalmente indiferente para mim até então. Tinha cerca de 24 anos, então. Quando eu me dei conta do que tinha feito e do que estava fazendo, ou seja, quando caiu a ficha, aí aconteceu uma coisa que acontece em geral com o bandido na cadeia. Ele molha o travesseiro sozinho, isolado, e fica repensando a vida que poderia ter ido para outro rumo. Mas eu ainda tinha vontade de sair e fazer o famoso pé de meia, que é o que mais faz as pessoas reincidirem e retornarem ao cárcere. A pessoa sai, até arruma algum trabalho pra fazer, mas fica de olho para um último crime, aquele que, supostamente, vai permitir com que compre uma casa e se estabeleça.

Quando caiu a minha ficha, eu entendi o sistema prisional, percebi concretamente por que eu estava ali, o que estava fazendo ali e decidi sair normalmente pelo portão caminhando, o que despertou uma risada geral entre meus companheiros na PEJ (Penitenciária Estadual do Jacuí). Eu estava me fingindo de bonzinho e, com o tempo, acabei ficando bonzinho mesmo. Na verdade, não gosto deste termo “bonzinho”, nem de “mauzão”. Acho que um homem tem que procurar ser justo com tudo e com todos, e, principalmente, consigo próprio. Em um determinado período, passei a crer, não exatamente em Deus, mas em mim mesmo, que sou obra de Deus capaz de mudar os rumos da minha própria vida.

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Mas o fato fundamental que acabou mudando a minha vida ocorreu na rua mesmo. Nesta época eu tinha saído da cadeia pela primeira vez. Eu estava em Canoas e decidi assaltar um motorista para pegar o carro dele e cometer um outro delito depois. Só que ele pressentiu que ia ser assaltado e estava armado com um revólver. Quando eu coloquei a mão na porta do carro para abrir e dizer que era um assalto, só deu tempo de dizer o “a….” Ele me acertou dois tiros. Uma bala está aqui (aponta para a região lateral do queixo) e a outra atravessou o pescoço.

Esse assalto representou um divisor de águas. Baleado, eu saí caminhando com uma pistola na mão e o sangue escorrendo. Decidi assaltar outro carro para conseguir fugir dali. Abordei um homem que estava chegando em casa com seu carro, que se chamava Oliveira, como vou descobrir mais tarde. Eu não conseguia falar direito por causa do tiro que tinha levado na garganta. Estava com uma voz parecida com a do Pato Donald. Lembro que disse para ele: “Não pisca nem respira muito fundo que eu te mato”. Esse cara, a minha vítima, me olhou com uma serenidade que me impressionou. Entrei pela porta do carona, disse que estava fugindo da polícia e pedi para ele ir para o lado de São Leopoldo. Nesta época eu morava numa casa entre Esteio e Sapucaia.

Ele ligou o carro e saímos dele, eu perdendo sangue e com o revólver engatilhado e apontado pra ele. De repente, tudo escureceu e apaguei. Quando me recuperei, ainda estava sentado no banco do carona. Oliveira tinha juntado o revólver, colocado em cima do meu colo e estava dando uns tapas no meu rosto para ver seu eu acordava: “ô seu bandido, acorda…” E me disse que eu estava perdendo muito sangue e precisava fazer alguma coisa se não ia morrer. Além do meu esconderijo, eu não tinha mais para onde ir. Eu me recuperei um pouco e parei de apontar a arma para ele, pois achei que não era mais preciso. Ele estava falando comigo quando apaguei de novo. Então ele, sozinho, me ajeitou no banco de trás e colocou os meus dois revólveres sobre a minha barriga. “Você está morrendo. Pra onde eu te levo?” – ele perguntou.

Se ele quisesse ter feito algo contra mim já teria feito. Dei o meu endereço e ele me levou para o meu esconderijo. O que mais impressionou nesta pessoa é que ela não demonstrou medo em tempo nenhum. Fiquei assustado até. Achei que ele devia lutar alguma arte marcial, algo assim. Resumo da história: ele cuidou de mim durante 21 dias.

Sul21: Como foi isso?

Enio Andrade: Ele era farmacologista e trabalhava como representantes de laboratórios, possuindo grande conhecimento sobre medicação. Depois de me deixar no meu esconderijo, ele saiu e voltou com tudo que era preciso para amenizar a minha situação, até eu poder me locomover para um hospital. E me cuidou durante 21 dias. Nestes 21 dias, a gente conversou sobre muitas coisas. Eu disse ao Oliveira que me chamava Luis Carlos e contei que havia me envolvido num tiroteio por uma divisão de bens. Quando eu já estava recuperado, disse para ele pegar o que quisesse numa sacola que eu tinha cheia de joias. Se quiser pegar tudo, pode pegar, eu disse. Afinal, ele salvou a minha vida. Mas ele não quis pegar nada. Disse que não era funcionário de aluguel e que tinha me ajudado porque eu estava precisando. Eu achei aquilo tão estranho, afinal a gente vive neste sistema capitalista de toma-lá-dá-cá. Propus então que ele pegasse algum dinheiro ao menos pra comprar um fusquinha novo. Também não quis. Ele me disse: “um tostão ou um milhão corrompem igual. E eu não estou aqui pra isso. Só quero te ajudar”.

Chegou o dia de eu ir embora e ele também, por conseguinte. Quando ele estava saindo da minha casa, já na porta da cozinha, falou para mim: “Luís, depois que tu levantar, dá uma olhadinha nestes jornais que estou deixando aqui no sofazinho da cozinha”. Está bem, eu respondi. Fiquei ouvindo o barulho do carro saindo e à medida que ele ia se afastando, ia aumentando um grilo na minha cabeça: por que será que ele falou nestes jornais? Levantei e fui ver o que era. Estavam todos os jornais abertos na parte da crônica policial, dobrados um sobre o outro, desde o dia em que ele me conheceu, com toda a minha história, dizendo que o Enio Andrade tinha feito isso e aquilo. Ele sabia quem eu era o tempo todo. Fiquei admirado. Ninguém jamais tinha agido comigo com aquela lealdade. Depois disso, fui para Florianópolis para fazer a cirurgia que eu precisava fazer. Mas a figura do Oliveira ficou marcada na minha cabeça.

Sul21: Depois desse episódio, você reencontrou o Oliveira?

Enio Andrade: Cerca de um ano depois, eu pego o jornal e vejo uma notícia com uma foto dele algemado. Tinha matado a amante (a esposa dele estava no Hospício São Pedro há cerca de quinze anos). E nós vamos acabar nos reencontrando no Presídio Central. Naquela época eu comandava uma galeria onde estava a enfermaria. Era um lugar privilegiado dentro do presídio. Como ele era farmacologista, eu falei com um médico e ele foi trabalhar na administração. Arrumei uma cela especial pra ele, com uma cama e um fogãozinho e mandei pintar. Ele não queria aceitar. Aí eu disse que não estava pedindo para ele ficar ali, mas determinando. Aí eu passei a frequentar aquela cela e comecei a aprender. Ele estava sempre com um livro na mão e só escutava música orquestrada na rádio Guaíba.

Aprendi muita coisa ali. Ele me fez voltar a ler. O primeiro livro que me recomendou foi “O Pequeno Príncipe”. Quando tiver alguma palavra que não entender, faz um risquinho com o lápis e me pergunta, disse. Foi assim que eu comecei a desenvolver também a prática da fala e da audição.

Sul21: Lembra alguns outros livros que ele te recomendou a leitura?

Enio Andrade: Eu tenho a relação de todos guardada e tenho uma boa parte desses livros também. Além do Pequeno Príncipe, eu li “O Profeta” (Khalil Gibran), “O Príncipe” (Maquiavel) e vários outros. Tudo coisa séria. Eu estava acostumado a ler bang-bang e Tio Patinhas. Era só isso que ocupava a minha cabeça. E ele me fez todas essas recomendações com a maior suavidade. Nunca quis impor nada. Aliás, eu nunca vi ele levantar a voz com ninguém.

O Oliveira me disse coisas que até hoje ecoam dentro de mim. Na época, eu não entendia muito bem algumas dessas coisas, mas com o tempo e os livros que ia lendo comecei a entender. Esse cara foi a grande diferença na minha vida. Ele foi o meu Deus, foi um divisor de águas. Pela primeira vez comecei a trabalhar com sinceridade. Já não era mais fingimento. A minha estrutura, até ali, era toda baseada na mentira e na farsa. De repente, não era mais. Quando eu cantava meus hinos na capela, aquilo retratava algo de mim. Voltei a estudar. Eu tinha parado de estudar no segundo ano primário e foi assim que eu entrei na cadeia. Foi o Oliveira que me perguntou: Vem cá, Enio. Por que tu não está estudando? Minha primeira resposta: mas estudar pra quê? E ele me falou, com toda calma, sobre a visão que o estudo dá sobre o mundo e as coisas.

Sul21: E como esse trabalho com a APAC entrou na tua vida?

Enio Andrade: Quando eu saí do cárcere em definitivo, em 1998, havia uma dúvida muito grande por parte das autoridades sobre o que eu iria fazer. Quando eu me reabilitei, me dei conta que 80% dos prisioneiros do sistema prisional saltariam fora do crime se tivessem uma oportunidade, e isso me motivou muito a trabalhar na equipe de evangelização. Antes de começar a trabalhar com a APAC, eu fiquei 12 anos na condição de conselheiro e ouvidor da Fundação Patronato Lima Drummond, aqui em Teresópolis. A dona Sulema Terra, da qual eu falei no início da entrevista, sempre me levava livros na cadeia e, entre eles, estavam os livros da APAC que recém estavam começando a sair. Ela me dizia que sonhava em ver uma APAC no Rio Grande do Sul e eu trabalhando nela.

Eu passei muitos anos trabalhando com presos na cadeia. Cheguei a ter o maior número de presos trabalhando num local só e tentei alguns métodos de recuperação dentro das cadeias. Depois que eu fiquei bem comigo mesmo eu quis passar esse bem adiante. Até que fui convidado para participar de umas reuniões da APAC. Devo dizer que nunca tive grandes simpatias por nenhum político, mas o deputado Jeferson (deputado estadual Jeferson Fernandes, do PT) me convidou para participar da construção da APAC aqui no Estado. Fui ficando, vendo a ideia se desenvolver e acabaram me indicando para ser o presidente. Nós partimos do zero. No início era só uma ideia. Hoje já temos um escritório funcionando no prédio do Ministério Público e um terreno em Canoas, onde deve ser construída a primeira APAC no Rio Grande do Sul.

Sul21: Quais são os objetivos da APAC aqui no Estado?

Enio Andrade: A proposta da APAC é substituir isso que nós conhecemos como sistema prisional tradicional. Esse sistema que está aí é criminoso. Não se faz isso com seres humanos. Ah, mas eles roubaram, eles mataram…, dirá alguém. Eu sei disso. É claro que quem comete um crime tem que pagar por ele. Mas é bom lembrar que às vezes um deputado ou governante, com um canetaço, destrói mais vidas do que alguém que assalta um posto de gasolina. Falando sobre a APAC aqui no Estado, de todos os municípios notificados sobre nossos planos, Canoas, através do prefeito Jairo Jorge, foi quem nos acolheu e se dispor a iniciar um trabalho conjunto.

Nosso objetivo principal agora é construir a APAC em Canoas e, se possível, ter uma em cada município. Estou encantado com essa possibilidade. Mesmo antes do assunto APAC vir à tona aqui no Rio Grande do Sul, eu já conhecia a história da associação desde a inauguração da primeira casa, em São José dos Campos, São Paulo. Temos esperança de começar a operar no ano que vem aqui no Estado. A gente sabe que essa luta é árdua, mas altamente compensadora. É muito triste errar, criminalmente falando. Mas mais triste ainda é você se dar conta de que pegou um bonde errado e não ter a mínima chance de voltar. É muito triste quando tudo comprime você para seguir no crime. Eu não quero permanecer presidente da APAC por muito tempo. O que eu quero é trabalhar com o preso, dizer para ele algumas coisas que o juiz, o delegado ou o promotor não sabem dizer e que o Estado não quer dizer de jeito nenhum.

Acredito que o município que quiser investir numa APAC terá um privilégio. Pela primeira vez eu vejo uma instituição realmente voltada a dar uma oportunidade para o preso se recuperar. A reincidência na APAC é de 10%. No sistema tradicional gira em torno de 85%, 90%. O crime é uma peste, é uma doença, inclusive espiritual. Se a pessoa não estiver com a mente voltada para um rumo definido, ela sucumbe. Não tem jeito. Pobreza, miséria e ignorância contribuem para que o sistema prisional seja o que é hoje. É uma covardia social. A APAC é um sonho que alimentei durante muito tempo. Agradeço especialmente àquelas pessoas que eu nunca gostei muito, que são as autoridades, afinal éramos opostos. Agora estamos do mesmo lado com o objetivo de recuperar pessoas, salvar espíritos e recompor esses indivíduos na sociedade. Há pessoas na sociedade que estão verdadeiramente preocupadas com esse trabalho de recuperação. Pessoas como o deputado Jeferson, como o juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções, e como o procurador Gilmar Bortolotto.

Sul21: E o que houve com o Oliveira? Tem notícias dele?

Enio Andrade: Eu não sei se ele está vivo ou se está morto. Eu só sei que ele foi a página mais importante da minha vida. Eu gostaria muito de poder ser o Oliveira para alguma destas pessoas que estão procurando um lugarzinho ao Sol.


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