Duelo ao entardecer no Senado

Jornalista Paulo Moreira Leite detalha debate entre juízes, com a presença de Sérgio Moro, realizado esta semana no Senado em torno do PLS 402, que prevê prisão já após decisão em segunda instância para o réu que cometeu crime grave; "Num país onde a presunção da inocência é um princípio incontestável, não se trata de uma mudança pequena", comenta o colunista

O juiz federal Sergio Moro participa na Comiss�o de Constitui��o, Justi�a e Cidadania (CCJ) do Senado de audi�ncia p�blica sobre projeto que altera o C�digo de Processo Penal (Fabio Rodrigues Pozzebom/Ag�ncia Brasil)
O juiz federal Sergio Moro participa na Comiss�o de Constitui��o, Justi�a e Cidadania (CCJ) do Senado de audi�ncia p�blica sobre projeto que altera o C�digo de Processo Penal (Fabio Rodrigues Pozzebom/Ag�ncia Brasil) (Foto: Paulo Moreira Leite)


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Um debate em torno do PLS 402/2015, esta semana, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, mostrou um tenso e saudável ambiente de conflito entre magistrados, advogados e juristas do país. De um lado, o juiz Sérgio Moro, da Operação Lava Jato, que é o autor da PLS 402 em companhia de Antônio Cesar Bocheneck, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE).  

De outro, nomes respeitados do direito brasileiro, a começar pelo juiz Rubens Casara, autor de "O processo penal do espetáculo", artigo essencial para debater a Justiça brasileira depois da AP 470. Outro presente foi Marcelo Semer, juiz em São Paulo, com 25 anos acumulados em Vara Criminal. "Duelo ao entardecer", definiu um advogado presente.  

Se for aprovado, o PLS 402/2015, irá autorizar a prisão de toda pessoa condenada em segunda instância em casos de crimes considerados graves, como tráfico de drogas, sequestro, lavagem de dinheiro e corrupção.

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Num país onde a presunção da inocência é um princípio incontestável, não se trata de uma mudança pequena. Em 2009, numa decisão por 7 votos a 4, o Supremo concluiu que uma pessoa só poderia ir para a prisão depois que todos os seus recursos pendentes fossem esgotados. A base dessa decisão se encontra no inciso LVII do artigo 5o. da Constituição, que diz que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória."

Conforme aprenderam todos os seres humanos que tiveram a sorte de sair da maternidade depois da Revolução Francesa de 1789, o debate envolve a mercadoria mais preciosa de nossa época -- a liberdade individual.

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Em 2009, como registra Daniel Roncaglia no Conjur de 8/2/2009, o debate do STF envolveu um fazendeiro condenado a sete anos e seis meses por "tentativa de homicídio." Seus advogados entraram com recurso para que pudesse fazer a defesa em liberdade até o trânsito em julgado -- mas os pedidos foram negados pelo Tribunal de Minas Gerais e também pelo Superior Tribunal de Justiça. O STF reverteu a decisão com base no voto de Eros Grau. Ele disse que na verdade o trânsito em julgado envolve uma questão de puro bom senso. “Quem lê o texto constitucional em juízo perfeito sabe que a Constituição assegura que nem a lei, nem qualquer decisão judicial impõem ao réu alguma sanção antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória."

Empregando termos duríssimos, Eros Grau disse que se o princípio da presunção da inocência não for respeitado como prescrito pela Constituição, “é melhor sairmos com um porrete na mão, a arrebentar a espinha de quem nos contrariar”.

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Em 2009, a AP 470 não fora julgada. A Lava Jato estava no começo. Ninguém falava em redução da maioridade penal. Em 2015, a Lava Jato é assunto das ruas. Provoca protestos. Na tarde de quarta-feira, um senhor de cabelos todos brancos entrou na sala da CCJ pela porta dos fundos e, driblando a segurança, fez uma saudação em voz alta antes de ser retirado a força do lugar. Não saudou Sérgio Moro, mas o relator da AP 470. "Viva Joaquim Barbosa," gritou. "Ele deu dignidade ao povo brasileiro."

Lembrando que é juiz federal desde 1996, Moro falou de uma frustração que está longe de ser um caso individual. Referindo-se a um sistema processual que definiu como "muito moroso", ele falou de casos em que, mesmo com "prova muito forte da prática de um crime," não se chega ao final do processo. Conforme disse o juiz, isso ocorre por razões. Uma delas, explicou, é  "uma prodigalidade e um grande número de recursos no nosso sistema processual penal." O outro fator encontra-se na visão -- a mesma aprovada em 2009 pelo STF -- de que "a punição e a execução da pena só poderiam ocorrer a partir do trânsito em julgado."

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Moro falou de casos que ele mesmo julgou, como as denúncias do Banestado, que envolviam "fraudes bilionárias no âmbito do Estado do Paraná." Onze anos depois, o processo encontra-se em fase de recursos ao STF. O juiz também lembrou de Pimenta Neves, o jornalista que assassinou uma namorada e ficou dez anos antes de ser conduzido à prisão. Moro argumentou: "o grande problema no processo penal, do tempo, é que também muitos desses casos acabam em prescrição. Se a Justiça não julga o caso até determinado tempo, acaba havendo a prescrição, e, às vezes, uma pessoa que é culpada, condenada, acaba não sofrendo nenhuma punição por conta apenas da inércia e no decurso do tempo."

Lembrando de sua passagem pelo Supremo, onde atuou como assistente da ministra Rosa Weber durante o julgamento da AP 470, o juiz se referiu a um caso de condenação em segundo grau, em que o Supremo examinou sucessivos embargos e agravos regimentais durante três anos "para dizer que o recurso era incabível. Agora, eu sendo o advogado ou eu sendo o processado criminalmente, se eu sei que eu só sou preso ao final pela regra atual, o que eu vou orientar ao meu advogado fazer? Recorrer, recorrer, recorrer, mesmo quando não tenha razão e o sistema, infelizmente, processual brasileiro hoje permite essas brechas. A ideia é não permitir essas brechas e, com isso, obter um ganho significativo."

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Tratado, na Comissão, com a reverência que costuma acompanhá-lo nas aparições públicas, a autoridade de Sergio Moro permaneceu em plenário depois que ele fez silêncio e outros convidados tiveram direito à palavra. Um repórter a meu lado reclamou: "esses caras não entendem que ninguém quer ouvir o que eles têm a dizer? O que importa é o Moro."

A palavra dos adversários do PLS 402 tem uma utilidade inegável, na verdade. Garante um pouco de espírito crítico num debate onde a postura mais frequente é a adesão em toda linha. No final de março, o projeto foi criticado pelos dois mais antigos ministros do STF. Celso de Mello, o decano, foi direto na substância. Disse que a tentativa de negar o direito de um réu apelar em liberdade era "inaceitável, um retrocesso inimaginável, significa extinguir a presunção de inocência." Marco Aurélio afirmou: "Não vejo como ter-se no campo penal uma execução que não seja definitiva, já que ninguém devolve a liberdade que se tenha perdido."

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Outros questionamentos foram feitos no plenário, ontem. O professor Maurício Dieter, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a mais antiga do país, questionou uma das visões mais frequentes quando se debate criminalidade no Brasil -- a tese de que vive-se sob um sistema de impunidade crescente. "Isso é uma falácia", explicou. Seu argumento se apoia em dois números difíceis de questionar: enquanto a população brasileira cresceu 104% em uma década, o número de encarcerados multiplicou-se por 1700%.

Rubens Casara deixou claro que não iria "discutir as boas intenções do projeto. É inegável a boa vontade de quem o fez." Mas o juiz acrescentou que o PLS 402 faz parte de um movimento político destinado a atender o "desejo por mais punições, às pulsões repressivas presentes na sociedade."

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Para Casara, ao autorizar a prisão de um condenado antes que o caso tenha transitado em julgado -- isto é, antes que ele tenha tido todas as oportunidades que a lei oferece para provar sua inocência -- o projeto relativiza uma garantia fundamental. Uma das cláusulas prevê a possibilidade de decretação de prisão preventiva por um prazo superior a quatro "salvo se houver garantias de que o condenado não irá fugir ou não irá praticar novas infrações penais ou não irá praticar novas infrações penais se permanecer solto".

O juiz explica que, com essa condição, o PLS 402 transfere "àquele a quem se atribui a prática de um crime o ônus de provar que não vai fugir ou que não irá praticar novas infrações se continuar solto."

Casara lembrou, ontem, que isso constitui aquilo que, na doutrina, se chama de "prova diabólica, porque é prova de fato negativo, algo extremamente difícil, quando não impossível, fazer prova de que não vou fazer alguma coisa no futuro. Como eu vou fazer uma prova de que eu não vou fugir caso esteja sendo acusado da prática de um delito?"

Entrando na discussão de fundo, Rubens Casara lembrou que numa democracia "cada vez que um direito ou uma garantia constitucional é relativizada o Estado caminha rumo ao autoritarismo, ao Estado policial, ao Estado total." Neste ambiente político, disse, o PLS 402 "surge num contexto em que há um sucesso midiático popular de uma grande operação de combate à corrupção conduzida pelo professor Sérgio Moro."

Relator do projeto, o senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES) debateu com Rubens Casara durante a audiência. Lembrando que há quatro anos o ministro Cezar Peluso, do STF, elaborou uma proposta que pode ser vista como um rascunho do PLS 402, Ferraço questionou: "o sistema como vai? Tem produzido impunidade? O sentimento que nos move é nessa direção, e eu vou trazer aqui a fala do ministro Peluso: O sistema não é apenas custoso e ineficiente; ele é danoso e, eu diria, perverso."

Mas o próprio Ferraço entrou na discussão de guarda baixa. A Constituição de 1988 tem um espírito abertamente garantista, pensamento que prioriza a defesa dos direitos fundamentais como obrigação maior do Estado.

Isso se explica como uma lição dos anos de ditadura, um esforço dos constituintes para evitar uma repetição daqueles tempos. E é certo que esse espírito entra em conflito com a formulação da PLS 402. Só que ninguém havia dito isso de forma tão explícita, como fez Ferraço em seu relatório.

O problema é que, em sua argumentação para defender o projeto, Ferraço atravessou uma fronteira. Reconheceu que os cuidados com as garantias eram justificáveis logo após o fim da ditadura, mas que não tinham razão de ser um quarto de século depois, quando se tornou necessário fazer uma "releitura." Falou que é preciso "evoluir" nessa matéria.

"Não é correto interpretar as garantias processuais com base no período ditatorial", escreveu. "O Brasil vive hoje o mais longo período democrático de sua história. Vencemos! Durante esses quase 26 anos de Constituição, não houve sequer espaço para instabilidades antidemocráticas. Com base nesse parâmetro é que se deve evoluir."

Falando como representante do Conselho Federal da OAB, que condena o PLS numa nota de oito páginas, o advogado Pedro Paulo Guerra de Medeiros lembrou que um ano antes do golpe de 1964 "os jornais de 1963 também diziam que o país tinha uma democracia estável."

Nos Estados Unidos, as prisões costumam ser efetivadas após julgamento em primeira instância -- fato que Sérgio Moro lembrou em sua intervenção.

Não faltam exemplos de corruptos notórios, condenados em várias instâncias da Justiça, cuja culpa ninguém coloca em dúvida, como uma tentativa de justificar para essa postura.

O que se pergunta é outra coisa.

O que se faz com decisões do judiciário que implicam em retirar de uma pessoa anos de sua liberdade, que não podem ser substituídos, recompensados nem indenizados -- pelo menos do ponto de vista de quem  concorda que se trata de um direito fundamental, que não tem preço nem pode ser reduzido a uma mercadoria.

Em junho de 2015, nos Estados Unidos, a Justiça libertou Albert Woodfox, um antigo militante do movimento Pantera Negra, após 43 anos de encarceramento, incluindo dez  numa solitária de 3 x 2 metros quadrados. Acusado de cumplicidade num homicídio, o tribunal levou meio século para concluir que não havia provas contra ele. Woodfox era um ativista político típico de 1968 mas foi condenado em 1972, quando a elite dirigente dos EUA procurava ir à forra contra os rebeldes dos anos anteriores.

 

O que se debate são princípios, disse Rubens Casara, na quinta-feira. Numa de suas contribuições para definir as bases da democracia moderna, Voltaire estabeleceu que era preferível manter um culpado solto do que um inocente preso. Aí reside a presunção da inocência. Seu fundamento é que a liberdade dos cidadãos -- e não a opressão do Estado -- funda uma sociedade democrática.

Embora seja possível definir o nascimento do mundo em que vivemos como uma reação democrática frente à tirania, cuja origem se encontra no absolutismo de reis e príncipes, a verdade é que, recentemente, os regimes democráticos passaram a incorporar medidas de exceção, criando uma situação híbrida.

Foi assim que, nos Estados Unidos de George W Bush, vigorou um decreto presidencial que autorizava a tortura por afogamento. Nascida para contornar garantias democráticas, a prisão norte-americana de Guantânamo é um pesadelo que o governo dos EUA não tem como resolver. 

"Meia garantia é igual a meia gravidez: não existe", disse o professor Tiago Bottino do Amaral, durante o debate no Senado.

É curioso que, apesar de sua relevância, o PLS 402 será resolvido pelos senadores em rito sumário. Isso quer dizer que a maioria da Casa não irá se manifestar. Caso seja aprovado pelos 27 integrantes da Comissão, sem passar pelo plenário (de 81) será levado diretamente para a Câmara de Deputados -- onde o punho duro de Eduardo Cunha é mais poderoso do que a liderança de Renan Calheiros.

Os adversários da PL 402 especulam que a pressa pode ser um esforço -- interesseiro -- para garantir que os condenados da Lava Jato sejam mantidos na prisão até o fim de suas penas, caso as condenações, em primeira instância, em Curitiba, venham a ser confirmada pelo Tribunal Regional, em Porto Alegre.

Os defensores do projeto alegam que essa especulação é absurda, já que o Senado debate o projeto desde 2011 -- quando ninguém ouvia falar da operação -- quando o ministro do STF Cezar Peluso fez aquele projeto visto hoje como um rascunho. 

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