Rio de Janeiro (RJ) - 28/10/2025 - Dezenas de corpos são trazidos por moradores para a Praça São Lucas, na Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, após chacina policial

O governo Lula deve repudiar a chacina sem concessões, leniência nem ingenuidade

Cabe ao governo federal sustentar um outro modelo de combate ao crime, como indica a manifestação do presidente Lula

Em um cenário de extrema complexidade, como o representado pela operação criminosa no Rio de Janeiro que resultou em mais de uma centena de mortos, a atuação do governo federal exige um equilíbrio delicado. A resposta inicial da Presidência da República, manifestada publicamente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, parece indicar o caminho que se impõe nessa encruzilhada: a necessidade de um combate firme ao crime organizado, sem qualquer tipo de conivência, mas igualmente intransigente na rejeição a abusos e excessos na ação policial em que dezenas de suspeitos rendidos foram impiedosamente assassinados pelas forças policiais.

O presidente Lula estabeleceu o tom dessa  atitude ao postar que o país não pode aceitar que o crime organizado "continue destruindo famílias, oprimindo moradores e espalhando drogas e violência pelas cidades". No mesmo fôlego, porém, foi enfático ao defender que esse enfrentamento deve ser um "trabalho coordenado que atinja a espinha dorsal do tráfico sem colocar policiais, crianças e famílias inocentes em risco" . Essa declaração dual captura com precisão a única estratégia aceitável para um governo federal em uma crise de tal magnitude.

De um lado do abismo, encontram-se as facções criminosas, que de fato oprimem os trabalhadores que vivem nas comunidades e aterrorizam a população. O Comando Vermelho, alvo da operação, é uma organização que há décadas semeia violência, e o Estado não pode se furtar ao seu dever de combatê-lo com todo o rigor, mas de acordo com a lei. A omissão diante desses grupos equivaleria a uma leniência inaceitável, uma abdicação da função mais elementar do poder público: a proteção dos cidadãos.

Do outro lado, porém, os métodos aplicados na operação "Contenção" devem suscitar total repulsa. Com um número de vítimas que supera a histórica chacina do Carandiru, esta tornou-se a ação policial mais letal da história do Estado do Rio e do país . Relatos de moradores e a visão chocante de dezenas de corpos sendo retirados de áreas de mata falam de uma realidade que vai além do combate ao crime, configurando o que ativistas e a Federação das Favelas do Rio denominaram um "massacre" e uma política de segurança "genocida", típica de um governador golpista de extrema-direita como Cláudio Castro. O governo federal não pode, e pelo visto não quer, associar seu nome a essa realidade.

A sintonia fina que se exige do Palácio do Planalto, portanto, é a de promover a integração de forças, conforme determinado por Lula ao enviar o ministro da Justiça e o diretor-geral da Polícia Federal ao Rio, sem, no entanto, avalizar uma política de segurança que historicamente trata "as favelas e seus moradores como territórios inimigos e cidadãos de segunda categoria". O envio da lei antifacção ao Congresso e a defesa da PEC da Segurança, que visa justamente a uma atuação conjunta e planejada das forças policiais, são movimentos na direção correta, pois criam figuras legais, atacam as bsses financeiras do crime, agravam punições e priorizam a inteligência, o controle e a coordenação, em lugar do uso da força letal.

O risco de o governo federal parecer omisso ou leniente é real, especialmente em um contexto de acusações iniciadas pelo governador. No entanto, a verdadeira omissão não seria a de não emprestar blindados a uma operação específica, mas a de calar-se diante de possíveis execuções sumárias e violações de direitos. A leniência a ser combatida não é apenas com o tráfico de drogas, mas também com uma máquina estatal que produziu uma chacina de proporções inéditas.

O caminho é estreito e cheio de armadilhas, mas é o único viável. Cabe ao governo federal, portanto, sustentar um outro modelo de combate ao crime, como indica a manifestação do presidente Lula. Isso implica abater o crime organizado em sua espinha dorsal, financeira e logística, sem jamais pactuar com uma lógica de guerra que, em última instância, sacrifica a própria população que deve ser  protegida. As responsabilidades pela matança na serra da Misericórdia precisam ser apuradas. Os responsáveis por aquela ação devem ser punidos com todo o rigor, a começar pelo próprio governador e seus cúmplices. O Brasil não suporta mais escolher entre a violência do crime e a violência do Estado aparelhado pela extrema-direita. A única saída é, como no caso da intentona golpista de 8 de janeiro de 2023, o exercício pleno da poder da lei, da racionalidade e o respeito irrestrito à vida.


A chacina introduziu o tema da segurança pública de vez na campanha eleitoral. Forças reacionárias tentarão disseminar um clima de paranoia, um pânico de insegurança generalizada na opinião pública.
Caberá ao governo afirmar da maneira correta a sua liderança no combate ao crime. Urge denunciar a barbárie usada como instrumento pelos populistas da extrema-direita. Impõe-se apontar a conivência da direita e da mídia hegemônica. Mais do que nunca, é hora de mobilizar a sociedade para travar o debate sobre as formas corretas de enfrentar também as raízes da situação que provoca a insegurança. Com a palavra, a Justiça. É  preciso garantir que, sob o pretexto de combater as gangues, os algozes da democracia, transformem o país numa terra sem lei. São eles na verdade os reais agentes do crime nas estruturas do país, inclusive nas próprias polícias.
Um novo período se abriu. É preciso estar à altura de seus inéditos desafios.

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