Os serões de Dona Benta e do mensalão no Supremo

Lobato disse: Um país é feito de homens e livros! Porém, no MEC está censurado



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Parece piada de "humor negro" ou de mau gosto, mas o brasileiro que mais fez pelos livros e pela libertação do Brasil está com livros oficialmente censurados. Qual é o crime de Monteiro Lobato (1886 – 1948)? De minha parte, seu leitor da obra infantil, adulta e de textos inéditos, penado posso dizer: Lobato foi o responsável por eu ter escolhido a profissão. Na leitura de seus livros, assim como de outras obras clássicas, não me tornei um cidadão alienado, mas sim um crítico que usa o martelo na geologia e no jornal.

Graças a Lobato, principalmente, sei de onde viemos, como devemos viver comunitariamente e para onde vamos. Minha alma está salva, pois como diz o adágio que a "quem não saiba aonde quer chegar, qualquer caminho serve".

O lado racista

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O fato é que o tal IARA – Instituto de Advocacia Racial e Ambiental impetrou ação contra a distribuição feita pelo MEC – Ministério da Educação e Cultura - do livro Caçadas de Pedrinho (1933). O processo encontra-se em fase de conciliação no STF - Supremo Tribunal Federal. Mas não houve acordo, e pode ir ao plenário. Agora, virou moda falar de um "certo lado racista" nas obras de Lobato.

O Brasil aprendeu a ler com Lobato, nos livros que editou, traduziu, escreveu, distribuiu e que são vendidos até hoje. Em seu tempo, os livros eram impressos fora do país, vinham prontos no papel e nas ideias. Lobato, sim, foi o mais legítimo modernista, muito embora não tenha sido membro da corriola. Uma crítica justa, da arte ou da falta dela, feita, em 1918, numa pintura moderna de Anita Malfatti: "... Embora se deem como, nossos precursores da arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica ..." – abalou a pintora, e o indispôs com os bajuladores. Fato menor, que não o impediu de publicar os modernistas e ter recebido o reconhecimento dos bambas da cultura, como se comido pela antropofagia do maior Andrade e contaminado pelo menor e debochado Oswald. Seu primeiro jornal acadêmico, o "Marinete", marcou um grupo de jovens que moravam em uma pensão na parte de cima de um sobrado no Brás, cuja sacada dava uma visão ampla da rua, qual um mirante, o marinete.

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Advogado, Lobato foi promotor em Areias - SP, mas trocou a toga pela enxada na lavoura decadente da fazenda do avô, o Visconde de Tremembé. Na cadeia, o causídico, em vez de ajudar a si, em sua cela fazia fila para soltura de presos indevidos, no mesmo presídio de nome do Patrono da Liberdade, Tiradentes, que acolheu por três anos e pico a nossa Presidente Dilma Rousseff. Ambos anistiados políticos.

Porém, de pirraça, o presidiário Lobato, quando foi indultado, homem de honra que era, negou-se a sair, pois queria cumprir a pena injusta até o final. Com isso é um dos poucos homens dignos que não se envergonhou por ter sido preso ao desafiar os representantes da ditadura de Getúlio Vargas e ao quebrar suas duas empresas de livros e três de petróleo, que foram à falência por causa do governo e do truste da energia.

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Na área gráfica, fez o maior parque, a Editora Nacional, mas devido à falta de energia causada pela seca brava de 1924, por um lado a Light não fornecia eletricidade para operar as impressoras, e por outro, os bancos oficiais não deixavam de cobrar os empréstimos tomados para pagar as máquinas.

Em petróleo, foi o verdadeiro precursor dessa indústria que jurava que iria jorrar e libertar o Brasil dos trustes que exploravam nossas riquezas – e não o deixaram de fazer, por isso talvez Lobato precise ser censurado!

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Não teve apoio do governo e do capital nacional nascente, nos anos de 1932/39, e posteriormente descobriu-se que na região na qual mais investiu, São Pedro – SP, não havia petróleo. Mas a busca pelo ouro negro continuou até encontrá-lo, como resultado da "Campanha O Petróleo É Nosso", iniciada por Lobato, continuada pelas forças populares. Por causa desse movimento foi criada a Petrobras, em 1953, pelo Presidente Getúlio Vargas, que superando muitas dificuldades encontrou petróleo no continente e na plataforma continental, inclusive o pré-sal. Contudo, é preciso lembrar que essa corrida foi iniciada por Lobato, que procurava petróleo com sua cabeça dura, na rocha negra o basalto, mais dura ainda, mas usando boa técnica de geofísica e sondagem rotativa pioneira, caso tivesse continuado na sua luta escoteira, teria sido nosso líder do petróleo.

Socialista libertário

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Era um incrédulo – proibido ateu constante no índex da Igreja Católica–, que acreditava no Brasil e nos seus filhos. Um socialista libertário, um georgista ativista do cooperativismo, com uma queda pela bandeira vermelha. As páginas que escreveu não deixam dúvidas: detestava o Estado burocrático e corrupto. Homem de caráter, tentou por duas vezes entrar para a ABL – Academia Brasileira de Letras. Perdeu uma escolha e, antes da segunda derrota, retirou a candidatura, pois se negava a  pedir votos aos futuros pares. Em uma terceira chance, quando havia unanimidade pelo seu nome, já uma glória da literatura, se negou a aceitar sentar na mesma mesa onde havia uma cadeira para o ditador – Getúlio Vargas.

Quando menino, conviveu com escravos nas fazendas de café no Vale do Paraíba, primeira região do ouro verde feito pela mão do negro. Desiludido, voltou à cidade de São Paulo para lutar pela nossa libertação pelos livros e com o ouro negro, o petróleo. Lobato foi um empreendedor que lançou-se na melhoria da lavoura, passou pela indústria revolucionária do livro no Brasil, com os autores, editores, distribuidores e pontos de venda.

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Moderno e empreendedor

Na área editorial, àquela época, tentou fazer o que atualmente conhecemos bem, a franquia – os pontos de correio e as farmácias deveriam vender também seus livros. Atuou ainda na siderurgia com o carvão vegetal do babaçu, um processo até hoje interessante de produzir o ferro-esponja, com menor temperatura. Já propunha, em Alagoas, usar o álcool misturado com a gasolina. Para melhorar o rendimento dos motores, com um parente de Thomas Edson, queria produzir um carburador econômico.

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Lobato foi um homem moderno, que estava muitos anos à frente do café da Botocúndia, com a decadente lavoura e o abandono dos negros libertos. Relembro Urupês (1917) para quem o tenha lido, e para quem não o leu, eu recomendo, retrata a vida real no campo, com o matuto num ciclo vicioso do Jeca Tatu, que não terminou.

As estatísticas indicam melhorias no ensino e no índice de alfabetização nacional, mas, a bem da verdade, o Brasil é constituído de analfabetos genuínos e funcionais. Quem mal sabe escrever o nome e não entende uma simples leitura de um jornal é com todas as letras: um ignorante. Não podemos confundir a crítica de Lobato ao nosso caipira esperto ou indolente, contaminado até hoje com as doenças da falta de higiene e do excesso de miséria. Em contrapartida, as ações do governo, que nunca mudam, resumiam-se a políticas de higienização ou de eugenia propostas até pela saúde pública.

Homem de visão americanófila, adquirida entre 1927 e 1931, na convivência com um povo empreendedor e disciplinado, quando foi um adido comercial da nossa embaixada em New York, e com essa cancha escreveu o Presidente Negro (1926). Nesta premonição colocada no papel faltou, apenas, ter escrito o nome Obama. A ficção fala em melhoria do homem, mas tendo em vista a cultura e as circunstâncias da época, quando na América do Norte, os negros ainda não podiam estudar em escola de brancos nem sentar nos bancos deles nos ônibus.

O serão do mensalão

Só um Monteiro Lobato futurista para imaginar, com erro a menor, que em 2228 um negro seria presidente dos Estados Unidos da América. Aqui, se estivesse vivo, Lobato adoraria assistir ao duelo entre o bem e o mal, o saber jurídico entre os membros do time da capa preta na Corte de Themis, no julgamento da Ação Penal 470. Batizado de processo do mensalão, é o mais longo e importante de nossa história jurídica, transmitido ao vivo, está tirando o sono de muita gente, mas fazendo dormir até os membros do colegiado.

É fácil imaginar Lobato narrando Dona Benta no papel de presidenta do concorrido "Serão do Mensalão". Pedrinho, com a experiência de caçador, ocupa o posto do Procurador-Geral, em nome da sociedade, faz o papel de verdugo na firme acusação. Os demais, onze membros do "Tribunal de Dona Benta", com base nos fatos concretos, julgam condenando ou absolvendo os 38 réus, com base nas denúncias, defesas, provas e as pegadas deixadas ou não na lama.

O Ministro relator é a Tia Nastácia. Uma negra retinta alforriada, filha de pedreiro, com títulos a toda prova nas várias línguas que domina. Ao piano e violino, um toque preciso e delicado que, mesmo com sua coluna alquebrada, não se enverga diante dos fortes. Resmunguenta, fala sentada, semideitada ou em pé, de igual para igual, como se fosse a voz do povo. Solta o verbo na fala mansa, firme, segura e dura, sem afinar, nem desafinar, ao dar as notas certas das penas no conserto da sociedade. Na sua simplicidade tem por princípio de justiça condenar apenas aquilo que seja o óbvio e ululante.

O revisor é o Visconde de Sabugosa, o sabe-tudo, com seus cabelos de milho esvoaçantes ao balançar da espiga. Parece assustado, quando esbugalha os olhos vedados e mexe no labirinto dos ouvidos tapados que não enxergam e nem escutam nada. Lente da escola franciscana, com doutrina híbrida entre a do "é dando que se recebe" e a do que "é preciso ver para crer no fato", em sua impecável toga de palha, com voz empolada, range os dentes de milho que se perdem da espiga pipocando na argumentação antidialética.

Não conta com a vara de condão, nem o pó de pirlimpimpim, assim fica pasmo e branco com as intervenções da Nastácia. Dá dó de ver uma pancada certa no cravo alternada com outra lá na ferradura. Concorda discordando, para alongar o parecer, na fala que não diz nada, com a probabilidade de se prorrogar a ação que julga heterodoxa.

Na retaguarda, o sabugo conta com a dubiedade do Dr. Quindim, um segundo violino, da mesma escola, mais parece um capinha, que se tiver outro grau além do que foi dado pela pedra carmim do falso rubi do anelar, pode ser nos óculos, já que o rinoceronte não tem pedigree, nem a necessária autonomia dos herbívoros, uma vez que não é ruminante. No vão da beca de palha, na falta da borla e do capelo, que mal cobre a couraça sem pelo, mostra o rabicó preso no mensalão. Foi subalterno deles no circo do planalto e defensor do partido envolvido no escândalo do caraminguá. Os demais membros da Alta Corte, no julgamento público, tendo em conta a Ação Penal do Mensalão, honram a capa preta que vestem.

Principalmente as mulheres: Narizinho e Emília, a boneca de pano que fala pelos seus botões, pois a galera é todo silêncio na escuta de seus votos concisos dados como tiros certeiros. O perigo é a caçada no jogo subliminar melar ou virar fogo de palha, pois o time da toga, mesmo desfalcado, está vencendo por 8 a 2, pela condenação e cassação dos réus.

Com a isenção indispensável, nenhuma pessoa pode defender a censura de Lobato e a absolvição de mensaleiros, tampouco que a população viva na miséria e continue a se multiplicar sem o mínimo de cuidados no pré-parto, parto, infância, adolescência, maturidade e na morte.

Deus negro

Quanto ao negro, que hoje sabemos que não é raça, isso não pode nos obrigar a chamar quem seja preto de branco e vice-versa. Ademais, na linguagem de outrora, no tempo de Lobato, pós-escravidão, a fala oral ou escrita era outra e usual tratar – nos contos – os negros por apelidos, ou palavras que hoje caíram em desuso ou são politicamente incorretas.

O biótipo do negro é de pele escura – preta que é cor, negro é biótipo –, cabelo pixaim, dentes alvos, calcanhar proeminente, que provoca glúteos avantajados, seios grandes para boa postura ereta na mulher, com lábios grossos e membro avantajado nos homens, que carecem de explicação.

Ocorre que, se tivesse de falar em "raça pura" – o que já é, em si, absurdo –, ela seria de que tipo? Um tipo loiro de olhos azuis, como os arianos propostos pelos nazistas ou mesmos pelas imagens religiosas? Não, errado! Seria um belo negro, pois a teoria da evolução está comprovada: o ser humano veio de antepassados símios que deram origem à raça homo sapiens e surgiram na África, com pele escura. Foi com essa certeza que, em 1923, Lobato publicou: O macaco que se fez homem. Por isso, caso Deus exista, se tivesse sido ele o responsável pela criação ou pela evolução, e o homem tivesse sido feito a sua imagem e semelhança, por força de consequência Deus é Negro.

Portanto, o negro deveria ter orgulho de sua cor, se neste sentido é a raça original e pura. A humanidade permitiu a escravidão e, no Brasil, ela foi atroz, inclusive deixou marcas do preconceito, principalmente associado à classe social. Ora, quem tenha de contar sobre os negros no Brasil, não pode deixar de usar as palavras da época e a forma de tratamento. Lobato lutou pela libertação econômica e social do Brasil, mas reclamava de nossos governantes corruptos, o que não mudou, haja vista o processo do mensalão em curso, e a população inculta e indolente, ainda debaixo das asas sufocantes dos coronéis e da imposição do voto de cabresto.

Reescrever a história?

Dona Benta é avó de Pedrinho e Narizinho que fazia os "serões" (o tempo que decorre entre o jantar e a hora de dormir) nos quais se filosofava a respeito de tudo, inclusive do petróleo que entristeceu Lobato até sua morte. A "negra" Tia Anastácia, das primeiras edições, que posteriormente virou Nastácia. Por sua boca, com muita astúcia, Lobato questionou o mundo inculto e o belo. Por isso, em suas falas, frases que hoje seriam tidas como incorretas, naquela época não poderiam ser diferentes no texto lobatiano. A palavra do autor na obra, de acordo com a Emília no país da gramática (1934), não deveria ficar ocultada, fazia parte do linguajar cotidiano retratado pelo escritor.

Reescrever Lobato é impossível. Censurar Lobato jamais! Colocar uma ressalva ou uma bula com alguma justificativa qualquer é fazer uma emenda pior que o soneto. Quem não viu preconceito vai passar a ver. Basta educar bem o povo, que saberá separar o joio do trigo da escrita fina, elegante, hilária, culta, sarcástica e conscientizada de Monteiro Lobato.

Este é o Brasil que nos envergonha. Só nos falta, por lei, ter de botar a perna no Saci-pererê; tirar o pito da boca do menino travesso, para não dar mau exemplo para a turma, sem gorro vermelho, que logo larga o giz do quadro negro e cai na pedra de crack, pior que o pó branco!

Emília, a boneca de pano, era o alter-ego de Lobato. No livro A menina do narizinho arrebitado (1920) não pode ter vida; muito menos um sábio sabugo pode ser um nobre e, em o Poço do Visconde (1937) ensinar geologia elementar que nos mostra o porquê de o Brasil ser um País rico-pobre devido ao Escândalo do Petróleo e do Ferro (1936) e a roubalheira, tipo mensalão.

Pois as traças e as saúvas de carne corroem as páginas do livro e até o osso deste colosso. Na sua "Reforma da Natureza" (1939), Emília propõe tirar o chifre das vacas, mudar o rabo delas para abanar a cara e deslocar as tetas junto às pernas da frente facilitando a ordenha e dificultando a mamata; imprimindo livros comestíveis, com folhas feitas de farinha de trigo temperado de maneira que cada página lida seja arrancada e comida, de sorte que, no final, o corpo e o espírito estejam alimentados. O lema da boneca falante era: independência ou morte!, sem nunca ter sonhado alvejar o ser humano por fora.

Por oportuno, na mesma temporada do julgamento do mensalão, o Supremo perde tempo com a conciliação do uso do termo negro e suas variáveis nas "Caçadas de Pedrinho", quando tem nele o modelo. O nosso "homem da capa preta" é uma boa prova de que: o homem se faz com o falo, a fala, pelo trabalho e nos livros. Viva aos Serões do Supremo e de Dona Benta!

Everaldo Gonçalves é geólogo e jornalista

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