O juiz que sequestrou um jornalista

Os torcedores me amam. Quer dizer, a quase totalidade me ama. Os de amarelo amam um pouco mais. Tiram até selfies comigo quando vou a restaurantes, shows e homenagens. Mas, no ano passado, tivemos um pequeno problema de comunicação e minha dileta consorte pediu vênia para fazer a tal página no livro dos rostos

Sérgio Moro 
Sérgio Moro  (Foto: Felipe Pena)


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"Tenho Pena dele" é o nome da página no facebook que minha mulher fez pra mim.

No começo, não achei a ideia boa. Argumentei que não ficaria bem perante a minha comunidade, mas acabei cedendo às pressões do amor midiático da Karlinha, esposa amada e zelosa.

Como sabem, sou juiz da Liga de Futebol de Várzea do meu bairro. Quando me visto de preto, todos me respeitam a abaixam a cabeça. Apito com força e conhecimento. Sou formado pela Soccer Judge Association, em Harvard, capital intelectual do esporte.

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No campo, minhas decisões são rápidas. Não hesito em distribuir cartões vermelhos. Já mandei muita gente pro chuveiro mais cedo. Em alguns casos, deixo o jogador trancado no vestiário por meses até que ele entregue o técnico que o instruiu a entrar de carrinho no adversário. Aí expulso o técnico, o massagista e até o porteiro do clube. Sou o justiceiro da liga.

Os torcedores me amam. Quer dizer, a quase totalidade me ama. Os de amarelo amam um pouco mais. Tiram até selfies comigo quando vou a restaurantes, shows e homenagens. Mas, no ano passado, tivemos um pequeno problema de comunicação e minha dileta consorte pediu vênia para fazer a tal página no livro dos rostos.

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"Será um desagravo a você" – dizia, com uma admiração karnal, ultrapassando a metafísica e querendo me defender de um episódio controverso.

Ela se referia ao fato de eu ter divulgado gravações de conversas com os jogadores durante uma partida. Na época, vazei tudo para a imprensa, mesmo sabendo que era ilegal. O importante era garantir a transparência do jogo através do grampo no meu apito. Mas o pessoal da federação não gostou e puxou a minha orelha. Quer saber? Obrei pra eles.

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O problema mesmo é que ficaram irritadinhos porque chamei o capitão do time adversário pra uma conversa coercitiva com meus lindos e poderosos bandeirinhas. Nada demais, só uma vasculhada nas gavetas e duas ou três invasões de domicílio pra causar um AVC nos familiares.

E ainda fui obrigado a adiar a conversa porque um jornalista cretino vazou a operação. Quem ele pensa que é? Só quem vaza informação nesse jogo sou eu, meu querido. "Vai se arrepender" – pensei, e aguardei um ano pra dar o troco. Um ano de paciência, mas a hora do sujeito finalmente chegou.

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Hoje, meti uma coercitiva nele. O meliante do microfone foi arrancado de casa pelos meus bandeirinhas musculosos (comandados por um hipster todo trabalhado no fascismo) e conduzido para a sede da federação dos juízes. E ainda levei computadores, celular, tablet e aquela parafernália eletrônica do blog. Se ele conseguir sair do cativeiro, vai ficar um bom tempo sem trabalhar.

Os colegas do cara nem reclamaram. São todos meus amigos e vivem das informações que vazo pra eles. Se não fosse por mim, não teriam notícias. Acha que alguém é louco de me peitar nesse bairro?

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O futebol é meu esporte.

Sou o dono da bola e faço as regras aqui na várzea.

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Os poucos que não se enquadram enfrentam a fúria de Karla, minha esposa, minha protetora e minha blogueira.

Entrem na página que ela fez pra mim no facebook.

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Hoje, deixei um vídeo pra vocês. Amanhã, mostrarei as algemas do cativeiro e as fotos do sequestrado para aumentar o número de views.

Eu sei, eu sei: quando um juiz se preocupa com a popularidade, não faz justiça, faz política.

Mas quem se importa?

Isso é apenas futebol.

De bairro.

E de várzea.

Tenho pena de mim.

  • Felipe Pena é jornalista, escritor e psicanalista. Doutor em literatura pela PUC-Rio, com pós-doutorado pela Sorbonne III, foi visiting scholar da NYU e comentarista da GloboNews. É autor de 15 livros, entre eles o ensaio "No jornalismo não há fibrose", finalista do prêmio Jabuti.



Leia mais: http://extra.globo.com/noticias/brasil/contra-a-corrente/o-juiz-que-sequestrou-um-jornalista-21095473.html#ixzz4c3J4Y7v1

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