Processos de produção

Enquanto a esquerda, refém dos tipos ideais, imprime uma pegada sociológica a cada acontecimento interpessoal, o senso comum, sujeito a um empirismo falibilista, sem preocupação com muita coerência, estaria mais atento ao sentido manifesto da situação

Processos de produção
Processos de produção (Foto: Ian Langsdon/Agência EFE)


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Diante do espelho a travesti pensa em como vai se produzir. É um momento fugaz. Sua imagem refletida não tem contornos nítidos. É um vazio sobre o qual ela se precipita através de uma série de movimentos. Cílios postiços, cremes, esmaltes... Há um arsenal a sua disposição. Sua regra é nunca se repetir. A cada dia uma nova imagem sobe à superfície através de mil combinações.

"Identidade de esquerda ou pragmatismo radical?" É o título de um texto escrito por Moysés Pinto Neto, apresentado no "Cadenos IHUideias", volume 15, de 2017. E o texto tenta responder a pergunta, inclinando-se claramente a favor de uma das alternativas: o pragmatismo radical.

Nesse aspecto, o senso comum, apresentado como um contraponto à retórica da esquerda, escaparia ao dualismo desta, ao ver as coisas no interstício delas. O senso comum seria a favor das políticas sociais sem desprezar a responsabilidade individual, compreendida como o principal critério dos conservadores. Enquanto a esquerda, refém dos tipos ideais, imprime uma pegada sociológica a cada acontecimento interpessoal, o senso comum, sujeito a um empirismo falibilista, sem preocupação com muita coerência, estaria mais atento ao sentido manifesto da situação. Nesse caso, as exceções nunca seriam desprezadas em função do todo. A questão da ética passa a ser muito importante para o senso comum em função da responsabilidade individual, mas, ao contrário dos conservadores, o senso comum não será contra as políticas sociais.

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Essa ideia, do senso comum, de uma visão intersticial,  justificaria o perspectivismo em relação à esquerda. O fato é que, em seu último capítulo, "A Saída de Emergência", o autor estabelece uma divisão no senso comum, fazendo cair por terra a sua própria visão intersticial. Segundo Moysés Pinto Neto, haveria um senso comum confundido com o conservadorismo, próprio da esquerda reformista, onde a esquerda passaria a ocupar a "esquerda da direita", deixando vazia a sua posição original - um pragmatismo que se dá através de negociações com o poder em torno de concessões e aberturas, mas dando a sensação de que todos estão sendo saqueados, sem espaço para reação, o que promoveria uma descrença geral no sistema e permitindo que a extrema direita surfasse nessa insatisfação. E contraposto a esse senso comum, haveria outro, articulado a pautas radicais, as quais deixariam de estar ligadas a emblemas identitários - neste caso, a esquerda ao invés de remar para o centro, traria este para o seu lado, mas através de composições variáveis e contingentes - é o que o autor chamará de pragmatismo radical, sem forma institucional por enquanto, mas com capacidade de organização e ação coletiva, propiciando novas formas de organização e distribuição do espaço-tempo. São forças anárquicas subterrâneas, mas com experiência de organização, tais como: os movimentos que dizem respeito ao direito à cidade e às questões urbanas (a pauta do transporte público deflagrando as movimentações de 2013); a ecologia, o respeito à diversidade e a qualidade de vida, tornando-se consensos não conservadores; e os movimentos das ocupações. O grande desafio desse pragmatismo radical, compreendido como uma saída de emergência para a esquerda, não mais presa à identidade nem ao modelo desidratado da democracia, seria encontrar outras linguagens, não apenas a esquerdista, para se comunicar com a maioria. 

Mas com isso, acabamos nos sentindo refém do mesmo modelo dualista  que nos condenava a esquerda identitária via luta de classes. Haveria um pragmatismo conservador e outro radical, uma esquerda reformista e outra anárquica. Responder com clareza qual alternativa indicada pelo título é perder justamente o viés híbrido. 

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Esse viés híbrido que o autor reconhece no governo Lula pode ser comparado aos movimentos de 2013? Segundo Moysés Pinto Neto, sim. A classe média nas ruas, com pautas anticorrupção e de mais saúde, segurança e educação, seria uma composição tão híbrida, heterogênea e múltipla quanto o próprio lulismo, com forças políticas sendo cortadas transversalmente em relação à divisão que havia se estabelecido até então com o governo Dilma. Mas o próprio autor reconhece que essa disseminação de novas subjetividades era decorrente do sucesso econômico do lulismo e se contrapunha ao neodesenvolvimentismo, que viria a preponderar no PT com a descoberta do Pré-sal e a ascensão de Dilma Roussef. Em outras palavras, o lulismo era algo tão amplo que trazia no seu bojo a ampliação do capitalismo para as classes baixas, promovido pelas políticas sociais, e, através de seu núcleo mais duro, incrementava um projeto nacional de crescimento econômico amparado na indústria e construção civil. 

Quando eleito em 2002, as batalhas de forças que se deslocam das ruas para os ministérios, com a incorporação dos antagonismos sociais para a burocracia estatal, Ministério da Fazenda (ortodoxo ou neoliberal) e Ministério do Desenvolvimento (heterodoxo ou desenvolvimentista), com entrechoques inesperados, composições e recomposições improváveis, correlações insólitas de forças, produzem uma plasticidade, uma composição heterogênea, que é algo inédito no Brasil. Uma situação que vai gerar, inclusive, incompreensão por parte de uma esquerda radical, representada por alguns intelectuais, como Paulo Arantes, que vaticinam o fracasso total do partido, levando, inclusive, por ocasião da reforma da Previdência, a expulsão de alguns petistas mais à esquerda, como é o caso de Heloísa Helena.   

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O fato é que, em 2005, pesquisas informavam o sucesso das políticas sociais do lulismo, promovendo a ascensão social de segmentos que viviam na linha de pobreza e levando essas forças subterrâneas a reelegerem Lula em 2006, apesar do escândalo do Mensalão. E se antes o partido era sustentado pela classe média (intelectuais, funcionários públicos, artistas, movimentos sindicais ), a partir de 2006 se torna um partido de massa. Conforme Guiseppe Coco, a Bolsa Família e os Pontos de Cultura se tornariam embriões da renda mínima, capazes de organizar a classe trabalhadora na era do capitalismo cognitivo e promover um devir-sul do mundo. 

Interligar a rua com os ministérios me parece algo absolutamente inédito na história do Brasil e penso que esse foi um capítulo fugas, mas que propiciou um hibridismo muito maior que o pragmatismo radical. 

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Lembro de um texto maravilhoso de Ivana Bentes sobre a economia criativa nas favelas, e que pretendo retomar um dia, fazendo uma análise mais detalhada, porque neste texto de Moysés, talvez seu ponto mais alto, seja justamente sobre a potência do empreendedorismo. E talvez possamos até pensar no fenômeno Bolsonaro a partir daí. O que, em outras palavras, significa dizer que o ódio ao lulismo deva ser interpretado por sua arquipresença. Lula está na base até de Bolsonaro. Explico. 

O lulismo tem suas bases no empreendedorismo individual ou familiar. O crescimento do país se dá por partículas menores a partir de estímulos microeconômicos. Quantos microempresários não tiveram sucesso a partir dessa política? E quantos, com o tempo, não passaram a odiar o lulismo? Mas, com Lula,  a partir de microcréditos, nova política de salário mínimo e bolsa família, foi incrementada uma força criativa popular. O país passou a ser gestado de baixo pra cima. E isso na contramão de uma intelligentsia que entendia a virada dos anos 80 no mundo do trabalho, com a formação de redes e do horizontalismo, como uma forma de fazer os trabalhadores empresários de si mesmo na medida em que são explorados. Não há como deixar de lembrar nomes como Marilena Chauí e o próprio Jessé Souza que denunciam o regime de informalidade e precarização. É, dentro desse espírito, que surge, no lulismo, o modelo desenvolvimentista, fazendo frente à burguesia financeira, com uma nostalgia do emprego industrial, conforme André Singer. Através de decisões voluntaristas, que predominaram na segunda fase do lulismo, mais especificamente, no governo Dilma, incrementou-se uma junção entre a burguesia industrial e os trabalhadores, que acabou não dando certo. Era uma teoria bem sistemática, um estadocentrismo compulsivo, ao contrário da experimentação trabalhada à luz dos choques e percalços da primeira década do século XXI. A própria estratégia dos BRICS, cuja competitividade era fruto de uma política de jogar pra baixo o salários dos trabalhadores à custa da alta depredação ambiental e exploração de mão de obra, se apresentava na contramão do rearranjo geopolítico do mundo do trabalho. O desejo de retorno ao fordismo, que desde os anos 60 era considerado, por Marcuse e Adorno, como hierárquico e panóptico, fez parte do Brasil Grande, com macro empreendimentos e eleição dos campeões nacionais. 

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Mas o bolo parou de crescer. E a segunda fase do lulismo não conseguiu concretizar uma cidadania plena, gerando grandes explosões de insatisfação. Vem daí a migração de segmentos populares para o ativismo viral de Direita, sendo que uma parcela universitária se deslocou para a esquerda cultural, incapaz de um diálogo mais amplo com a sociedade. O liberalismo de direita com suas pautas de maior liberdade de mercado, menos imposto e valores mais conservadores, dando no neopentecostalismo, vai agregar, como vetor de subjetivação, o fascismo (contra a esquerda cultural) e o empreendedorismo (teologia da prosperidade). 

O desprezo pelo mercado e pela economia, por parte da esquerda reformista, que foi uma tônica do segundo lulismo, desperdiçou experimentos que poderiam mostrar outras formas de visualizar a economia para além do capitalismo e do socialismo. Experimentos que foram testemunhados em regiões marginais ou em empresas como o Google e o Facebook, com novas formas econômicas gestadas a partir das tecnologias de informação, numa lógica menos dogmática e mais experimental, indicam que fenômenos diversos, como o capitalismo e a inclusão de minorias podem ser possíveis, como o capitalismo pode comportar a diversidade e ser francamente favorável ao politicamente correto. Essa heterogeneidade plástica, que Lula foi capaz de produzir no país, é a sua maior marca. Não fica difícil compreender como uma esquerda, reformista e cultural, foi capaz de gerar um monstro. 

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Estou pronta. Essa aqui sou eu até amanhã. Depois outras metáforas virão. A noite é uma criança. Bye bye.

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