Bolsonaro e a tortura

A gente bem que gostaria de nunca mais voltar a semelhante memória de crimes contra a humanidade. No entanto, o anti-humano faz com que a gente volte a escrever, denunciar nestes dias mais que nunca. Que a mais ampla fraternidade contra o fascismo avance

Bolsonaro e a tortura
Bolsonaro e a tortura (Foto: Adriano Machado - Reuters)


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O leitor que pesquisar no google a palavra Tortura, encontrará 36.800.00 resultados, conforme vi em 18/10/2018 às 21:19 horas. Na mesma ocasião, ao pesquisar “tortura”  nas imagens, apareceram associadas  à palavra, em primeiro lugar, “bolsonaro”. Depois, “ditadura militar”, “filho”, “jair bolsonaro”, “denúncia” e “idade média”. Quando refletimos, notamos que tais relações se fazem com total lógica e sentido. Se duvidam das associações, olhem por favor aqui.

Mais adiante, na busca por vídeos para tortura, entre 4.890.000 resultados a palavra  leva ao YouTube com isto aqui

No vídeo, o capitão aparece a defender a tortura com a frase “eu sou favorável à tortura... matando uns trinta mil, se morrer gente inocente, tudo bem”. Ou seja, a tortura e Bolsonaro aparecem como irmãos siameses em qualquer pesquisa. É arrasadora, é imbatível a relação de Bolsonaro com a crueldade e a mais absoluta ausência de valores humanos. Pior e mais degradante: ele torna o torto comportamento em ato natural, e transforma em atitude cristã  um tratamento que não se deve dar a qualquer objeto, coisa ou pessoa, Dos cães às plantas, até a gente sem diferença de cor, sexo, raça, religião ou ideologia, a  tortura deveria ser abominável. Mas para ele e seguidores, tudo bem. Nas eleições deste 2018, a simples presença dessa coisa enlouquecida é sinal de que o Brasil entrou num abismo, que nos afasta de qualquer civilização e humanidade. 

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O pesadelo, o horror, é que a tortura não é uma palavra fria, um dado abstrato de pesquisa. A tortura é quente, de sangue, vísceras e morte. A tortura é um real de dor e abjeção que foi praticada contra jornalistas, estudantes, artistas e militantes políticos durante a ditadura. E no momento ameaça voltar para negros, pobres, gays, professores, educadores públicos e todos. A tortura é um ato vil que fere para sempre, martiriza e destrói pessoas, como já escrevi ou tentei escrever sobre, sem sobra. Se não, acompanhem por favor no romance “A mais longa duração da juventude”, que evoco e invoco:

“O assassinato de Soledad não exibiu todo o seu horror no primeiro impacto. Entendam, houve traumatização extraordinária, mas em 11 de janeiro de 1973, data dos jornais com as manchetes das execuções, não se adivinhava tudo, no mesmo passo em que se recuava diante do mais fundo inferno que se ocultava. Eu sabia, antes das fotos dos seis ‘terroristas’ na imprensa, que Soledad estava grávida, pois tricotava sapatinhos de bebê em Jaboatão. Mas jamais poderia crer - e crer aqui possui o sentido de enfrentar na consciência o que não é desejável -,  jamais poderia crer nas condições da sua morte, do seu cadáver como descreveu a fala da advogada Mércia: ‘Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. A boca estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão que ela foi morta e ficou algum tempo deitada e a trouxeram, e o sangue quando coagulou ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. E o feto estava lá nos pés dela, não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror’.

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Esse açougue sobre uma pessoa não sabíamos, eu e todos companheiros subversivos. Para nós, se comparo mal, a morte vinha como um estado entre a vida e a notícia no jornal, imobilizada, ou se comparo pior, como uma morte de desenho animado, pow!, e a figura, o boneco morria feito bola de festa. Pow! Mas a crueldade real não era assim. Havia sangue de matadouro naquela morte. Só não chegava a ser feito rês, em razão da inutilidade para a venda da carne nos açougues. As minhas mãos tremem quando escrevo ‘rês’, carne sangrenta para o mercado público. Mas há que seguir.

Nós não podíamos imaginar. Primeiro, porque não fomos ao necrotério, segundo porque não víamos, e se alcançasse a vista negaceávamos, num movimento de boi puxado pela corda no abatedouro. Era ver e olhar para o outro lado, até voltar os olhos para o que não queríamos: Soledad e seu horror. Mais grave, tão egoístas éramos, Soledad e nosso horror. Não queríamos ver. No entanto, nos sentimos agora como oncologistas do tempo, olhando as imagens 43 anos depois: havia ramificações de câncer ao lado e em torno do foco ampliado. Havia traições ao redor de Soledad, graves e tão indignas quanto a sua destruição. Delas, a mais evidente era o Cabo Anselmo, a quem conhecíamos pelo nome de guerra Daniel. Sabíamos, melhor, suspeitávamos de uma infiltração, mas nada ainda que descobrisse a identidade do Cabo Anselmo, que a imprensa exagerava como o líder da Revolta dos Marinheiros em 1964. Um quadro assim não tínhamos. A nossa capacidade de imaginar não descia a tanto. Soledad era a mulher de quem eu havia furtado um beijo. Corrijo, a mulher guerreira, a suave flor em que tentei pousar os lábios. A mulher que em legítimo platonismo amei. Amo. Ela estava na foto como terrorista, sobre quem silenciei a verdade e o caráter no ambiente do trabalho. Isso era o que tínhamos. O que viemos a saber, nos mais recentes dias, tem sido uma longa revelação. Seria como uma novela, um thriller fatal de nos suspender a respiração, ainda que os capítulos tenham se passado há mais de 43 anos. Isto é, nas linhas seguintes...  

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É preciso força para escrever esta página. Agora compreendo que o apelo dos poetas às musas nada tinha de retórico. Agora mesmo eu me sinto abalado. Quero dizer, triste e mergulhado em reflexão. A realidade vista, que eu soube e sei, quanto mais reflito sobre ela, mais me sinto paralisado. Vontade que tenho é de parar tudo e sair sem rumo até a praia. Lá sozinho, em absoluto silêncio, quero ficar olhando o mar. Conhecer a última hora desses companheiros, desses irmãos da nossa mesma carne e espírito, me deixa desolado. E fico à semelhança de um menino que perdeu a sua mãe em 1958: ‘Por que Deus é tão sórdido?’, ele se perguntava. Por que o homem é tão miserável e brutal? me pergunto agora, enquanto caminho na mente até o terraço de um bar e fico olhando o oceano. As ondas resplandecem ao sol, atingem verdes e espumosas a calçada, jovens e crianças gritam de felicidade, é sábado, estão de férias. Mas a sua graça e alegria não me dizem respeito. Antes, a minha dor não é compreendida pelos jovens, mulheres, homens que passam a caminhar. Enquanto eu amargo aqui outro mar, o terror sofrido por irmãos que ninguém contou. Heróis com registros apenas burocráticos. De fotos pornográficas no necrotério, nos corpos e faces arrombados à bala. Essa é uma das razões pelas quais os ex-presos políticos às vezes se calam. Ou então contam o sofrido aos pulos, aos saltos na narrativa.

E nem tanto por essa razão. Eu me refiro a outra gravidade fundamental, ao horror puro que fez saltar os olhos das órbitas, em anéis que se apertavam em torno da cabeça como um garrote vil no crânio, a “coroa de cristo” como a chamavam. Me refiro a ossos quebrados, ferros socados no ânus. Fatos assim vistos e sofridos se calam. Com um sentimento de culpa, como se a vítima fosse a culpada, ou mesmo do terror não vencido, que continuaria num reflexo de Pavlov. Dessa vez, o condicionante é a memória, que não relata para não repetir a dor.  Entendemos os saltos ou o silêncio, porque nesta página agora sinto a tentação. É paralisante refletir sobre o que soubemos e vimos. Uma paralisação que é uma inércia aparente, porque pensamos no que não pensamos, refletimos no que não refletimos, falamos cá dentro do que não falamos fora. E para dizer o mínimo em uma linha: é deprimente primeiro. Segundo, é de nos mergulhar em uma ira louca. É de dar uma revolta ainda sem expressão, por último.

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Quero dizer. Eu vi nestes dias um homem em pânico. Foi rápido, mas me acompanha o que vi até agora, e penso que não me deixará mais. Eu estava no carro, por volta das oito da noite. Eu seguia para Olinda em uma rua de mão única. Súbito, um jovem surgiu como se viesse do nada, porque sem aviso, origem ou razão. Ele veio correndo por entre os carros, o corpo em fuga pela contramão. Alguns motoristas desviavam do seu vulto, outros, pelo contrário, da tribo e manada de justiceiros dirigiam o carro para cima do jovem. Ele estava sem camisa e corria, doido, daí a manobra dos senhores da ética para cima do mal. ‘Se corre, se está sem camisa, é ladrão. Vamos quebra-lo’. Quando ele passou por entre duas filas de carros, os faróis iluminaram o seu rosto. Cabelos crespos, assanhados, pele clara, ou melhor, lembrei depois, pele pálida, de onde o sangue havia fugido. Porém o mais marcante eram os olhos arregalados, graúdos, a boca aberta sem grito, e os olhos enormes que nada fitavam, a ninguém viam, apenas expressavam a sua última oportunidade. Passou por mim como um raio a lembrança do ‘terrorista’ caçado, na descrição da advogada Gardênia: ‘Ele estava na mesa, estava com uma zorba azul clara e tinha uma perfuração de bala na testa e uma no peito. E com os olhos muito abertos e a língua fora da boca’. Então atrás do jovem em Olinda correu uma moto com dois indivíduos de capacete, ziguezagueando pela contramão. Em menos de um minuto  houve o som de pancada no carro. Mas não, foi um estouro atrás de nós. E mais duas estrondos brutos, pá, pá. Então eu compreendi que o jovem perseguido fora alcançado com a justiça dos matadores: três tiros no ladrão safado. Mas como alcançar os seus olhos, esquecer o seu branco arregalado nas órbitas? O sofrimento do terror adivinhava e fugia do destino a menos de um metro adiante. O que pode um homem que corre contra a velocidade de uma moto?  - Saltar no balé louco do corpo magro, arremeter-se na fuga do último intento, como se mais vida houvesse. Para mim, me perseguem antes dos três tiros. Para mim, são os olhos de Vargas no maldito janeiro de 1973. A simples evocação dá um gosto amargo de fel e bílis na boca. Terei, ou devo ter o refrigério de uma pausa?

Eu quero ter paz e refletir em paz. Tento, porque me vêm as palavras Terror e Desespero. Muito além dos seus sentidos no dicionário, eu sei por que elas me ocorrem. Tenho Vargas diante de mim. No limite da decência e da dignidade, sei que ele está apavorado. Nos pequenos olhos de índio misturado ao negro, sei que ele está próximo do limite. E pior, ele tem consciência do que está próximo. Diferente dos olhos do rapaz que vi correndo no seu último minuto, louco, tonto, o jovem e o tempo, sem ter para onde ir no estranho bailado entre os carros, Vargas agora na sala da advogada Gardênia enxerga o abismo seguinte, hoje à noite ou amanhã logo cedo. O jovem brutalizado, que deixou poças de sangue na praça vizinha ao Bar Marola, para onde poderia ir? Se entrasse para a esquerda, caía no beco do Marola, se entrasse para a direita, como entrou, no largo da praça encontrava pessoas, testemunhas, quem sabe?, a salvação. Mas isso é injusto admitir, porque talvez ele não possuísse tantas opções, o seu corpo apenas tomava o lugar mais perto, uma vez que corria pela direita, a sua mão na contramão. Entrou na praça e levou o primeiro baque. Levantou pra correr e pegou mais dois, nas costas e na cabeça. E perdeu a fuga.

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Diferente de Vargas agora em 1973, neste contínuo mais próximo. Ele não tem o barulho da moto no encalço. Mas os claros sinais estão dados. Ele é o terrorista seguinte para o matadouro. Até o gado sabe quando chega o seu último instante. Que dirá um homem. O boi recalcitra, não quer ir para a frente, e por isso tem que ser puxado, enganado, até que receba o golpe traiçoeiro. Como é narrado nas linhas magistrais de Tolstói sobre um matadouro:

‘Cada vez que pegavam um novilho do cercado e o arrastavam para a frente com uma corda atada aos chifres, ele sentia o cheiro de sangue e resistia, às vezes mugindo e recuando. Arrastaram-no. Ele abaixou a cabeça e resistiu, decidido. Mas o açougueiro que ia por trás agarrou o rabo, retorceu-o, estalou a cartilagem e o boi saiu correndo para a frente, batendo nas pessoas que o puxavam pela corda, e de novo resistiu, olhando com o rabo do olho preto e a esclerótica injetada’.      

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Mas Vargas não é um boi” .

A gente bem que gostaria de nunca mais voltar a semelhante memória de crimes contra a humanidade. No entanto, o anti-humano faz com que a gente volte a escrever, denunciar nestes dias mais que nunca. Que a mais ampla fraternidade contra o fascismo avance.

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