Muricy Ramalho: o cientista, o técnico... o cara
Da beira do gramado ele olha para o time como quem olha para as engrenagens de uma máquina
Existe uma prática no futebol que podemos chamar de “recurso motivacional”. Ele não diz respeito diretamente aos treinamentos técnicos ou táticos. Talvez tenha algo mais a ver com psicologia e, no pior dos sentidos, mais acertadamente com a auto-ajuda. Grande parte dos treinadores de futebol utiliza esse “recurso” Brasil afora. Às vezes para fazer com que seus jogadores entrem em campo com mais ânimo, com espírito de superação; às vezes, mais tragicamente, com a intenção de fazer jogarem mais do que realmente sabem, e mais do que realmente podem. Apostam na motivação, no “você pode!”, “você consegue!”, “você é o melhor!” e por aí vai… E não só em times pequenos, nos grandes também. Tudo depende do treinador.
Diferente de tudo isso é Muricy Ramalho. O famoso jargão pelo qual é conhecido já sugere a ideologia desse treinador: “aqui é trabalho, meu filho!” E, sendo trabalho, o que se deve é trabalhar, ora pois. É a Muricy, mais do que a ninguém, que cabe bem o nome de “técnico”, como se costuma também chamar os treinadores. Isso não porque ele seja o maior treinador entre todos do Brasil (e talvez até seja, mas não entrarei nesse mérito), mas sim porque ele é verdadeiramente “um técnico”, no sentido estrito do termo, que se refere ao indivíduo que tem conhecimento prático em uma arte ou ciência, ou qualquer afazer.
─ "Eu sou contra esse negócio de vídeo com filho chorando, bilhetinho com recado debaixo do travesseiro do jogador. É tudo bobagem. Isso só atrapalha. O cara acaba entrando em campo chorando também. Ou então, fica tão pilhado, pensando no filhinho ou na vovozinha, que entra em campo dando pontapé. Eu faço o contrário. Eu tiro o peso do jogador. Antes do jogo, só falo sobre o que vamos enfrentar, sobre o adversário", explica Muricy.
Quando Muricy Ramalho saiu do Fluminense e chegou ao Santos, essa característica sua revelou-se como nunca: ele recebeu em suas mãos um grande time que, no entanto, não vinha ganhando e estava à beira da eliminação na Copa Libertadores. Um dia antes de assumir, viu de camarote, na Vila Belmiro, um time envolvente e agudo que fez 3 a 0 no Colo Colo e que, mesmo estando dentro de casa, ao invés de golear, se deixou desequilibrar, teve três jogadores expulsos e quase cedeu o empate. Muricy não teve dúvidas: o problema maior do time estava no excesso de “pilhagem”:
─ Achei que desde o começo o nosso time estava muito pilhado, nervoso. Temos de saber jogador futebol, usar a inteligência, ainda mais em Libertadores. Pois vamos enfrentar adversários que catimbam. Isso tem de ser falado o tempo todo. Tem de tomar cuidado com a palavra motivação”, alertou Muricy.
Que o elenco do Santos estava “pilhado”, como pensa Muricy, já podia ser verificado 3 dias antes do jogo contra o Colo Colo, no clássico contra o Palmeiras. Naquela tarde, os leves e habilidosos jogadores do Santos trocaram pancadas e provocações com Kléber e outros atletas do truculento time de Felipão. Na saída para o intervalo, ao ser questionado sobre o jogo violento, um maestro como Ganso respondeu que era porque “o time já estava no clima da Libertadores”. Logo ao assumir, então, a primeira tarefa de Muricy foi desfazer, para os jogadores, a idéia de ver o jogo como uma guerra:
─ “Não é guerra, é futebol. O Santos não sabe guerrear, não sabe catimbar, sabe jogar”, afirmou Muricy Ramalho em entrevista.
Nos nove jogos que se seguiram o Santos enfrentou uma maratona de jogos, quase todos decisivos. O primeiro deles foi o desafio de vencer o Cerro Porteño lá no Paraguai, com um time sem Elano, Zé Eduardo e Neymar. Como nunca se tinha visto, o time bailou sobre os paraguaios. Com tranqüilidade e segurança, dominou todo o jogo, que venceu por 2 a 1. Os jogos decisivos foram se seguindo e mesmo sem ter muito tempo para treinar, visto que jogava duas vezes por semana, sem falar nas viagens, e com o cansaço se acumulando e gerando contusões e desfalques, o time do Santos foi ouvindo e seguindo o que Muricy pedia. E foi passando… e ganhando.
Contra o São Paulo, na semifinal do Paulistão, o Santos foi inferior durante todo o primeiro tempo. O que o time precisava? Ora, atacar, responderia a maioria. O intervalo foi a oficina do técnico. Muricy analisou o jogo friamente, tirou um atacante e pôs um zagueiro, ficando com três. Deu mais liberdade aos laterais e liberou Ganso e Elano da marcação. Resultado: São Paulo 0 x 2 Santos.
Tudo isso indica o caráter propriamente “técnico” de Muricy. Da beira do gramado ele olha para o time como quem olha para as engrenagens de uma máquina. Sem se deixar tomar pela emoção, procura corrigir e fazer com que todas as peças cumpram o seu papel, e algumas dessas peças, diga-se de passagem, têm um papel fantástico.
Quase sem tempo para treinar, e com os jogadores “estourando” de desgaste, classificou o Santos para as oitavas da Libertadores. Nas oitavas todos os brasileiros caíram, inclusive o bom Cruzeiro. O Santos, sob uma viajem e um pressão infernal da torcida no México, foi o único que passou. No campeonato paulista superou o São Paulo e já fez o primeiro jogo da final, contra o descansado Corinthians, o mesmo que em 2009 foi campeão paulista em cima do Santos e venceu novamente o clássico em 2011, na fase classificatória. Nem bem a imprensa especulou, Muricy já barrou, de imediato, o clima de revanchismo. Repetiu o que já houvera dito: “não vou pilhar o jogador”. O jogo acabou empatado e a decisão final será na casa do Peixe.
Esse foi o último exemplo, dentre os recentes capítulos que se sucederam, em mais ou menos um mês, da atuação de Muricy: um treinador que estuda o adversário como um cientista, com profundidade, não se deixando levar pelas primeiras impressões; que não se deixa tomar e evita que seus jogadores sejam tomados pela euforia, provocação ou qualquer emoção desnecessária que atrapalhe o desempenho. Um cientista quando estuda o adversário, o jogo. Um técnico quando olha para o time em campo, como se fossem peças de uma máquina.
Tudo isso, com certeza, faz dele um dos melhores. Passando os dois próximos jogos, porém, pela Libertadores e pelo Paulistão, o Santos com seu desgaste e seus desfalques, é que saberemos se Muricy, além de cientista e técnico, é também o cara.
Kelson Oliveira é doutorando em antropologia, escritor e poeta.
www.twitter.com/kelsongok
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