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Ideias

Varoufakis alerta: poderosos preservarão interesses das oligarquias

Muitos da esquerda ainda se apegam à esperança de que a crise da COVID-19 se traduza no uso do poder do Estado em nome dos impotentes. Mas quem tem autoridade nunca hesitou em aproveitar a intervenção do governo para preservar a oligarquia e uma pandemia, por si só, não vai mudar isso

Varoufakis: Brasil se tornou o prenúncio de um futuro distópico (Foto: REUTERS/Francois Lenoir)
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Por Yanis Varoufakis, na Carta Maior – Para exorcizar meus piores medos da próxima década, escolhi escrever uma crônica sombria com esse tema. Se, em dezembro de 2030, os desenvolvimentos o invalidarem, espero que esses prognósticos sombrios tenham contribuído, incentivando-nos a tomar as medidas apropriadas.

Antes de nossos bloqueios induzidos pela pandemia, a política parecia um jogo. Os partidos políticos se comportavam como equipes esportivas tendo dias bons ou ruins, marcando pontos que os levariam para cima na tabela que, no final da temporada, determinaria quem formaria um governo e depois faria quase nada.

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Então, a pandemia da COVID-19 retirou o verniz da indiferença para revelar a realidade política: algumas pessoas têm, de fato, o poder de dizer ao resto de nós o que fazer. A descrição de Lenin da política como "quem faz o que para quem" parece mais adequada do que nunca.

Lá por junho de 2020, quando os bloqueios começaram a diminuir, o otimismo de esquerda de que a pandemia reviveria o poder do Estado em nome dos impotentes permaneceu, levando os amigos a fantasiarem sobre um renascimento dos bens comuns e uma definição abrangente de bens públicos. Margaret Thatcher, eu os lembraria, deixou o estado britânico maior, mais poderoso e mais concentrado do que o havia encontrado. Um estado autoritário era necessário para sustentar mercados controlados por empresas e bancos. Aqueles com autoridade nunca hesitaram em aproveitar uma intervenção maciça do governo para a preservação do poder oligárquico. Por que uma pandemia deveria mudar isso?

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Como resultado da COVID-19, o ceifador quase reivindicou o primeiro ministro britânico e o príncipe de Gales, e até a mais encantadora estrela de Hollywood. Mas foi o mais pobre e o mais marrom que o ceifador realmente levou. Eram escolhas fáceis. Não é difícil entender o porquê. O desempoderamento gera pobreza, que envelhece as pessoas mais rapidamente e, por fim, as prepara para o abate. À sombra da queda dos preços, salários e taxas de juros, nunca foi provável que o espírito de solidariedade, que acalmou nossas almas durante os bloqueios, se traduziria no uso do poder estatal para fortalecer os fracos e vulneráveis.

Pelo contrário, eram as megafirmas e os ultrarricos que agradeciam que o socialismo estava vivo e bem. Temendo que as massas, condenadas à arena selvagem de mercados sem restrições, em meio a um desastre da saúde pública, não pudessem mais comprar seus produtos, eles realocavam seus gastos em ações, iates e mansões. Graças ao dinheiro recém-impresso que os bancos centrais bombearam através dos financiadores habituais, as bolsas de valores floresceram quando as economias entraram em colapso. Os banqueiros de Wall Street aplacaram sua culpa, que persistia desde 2008, permitindo que os clientes da classe média brigassem pelos restos.

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Os planos para a transição verde, que jovens ativistas do clima haviam colocado na agenda antes de 2020, receberam apenas elogios quando os governos se dobraram sob enormes montanhas de dívidas. A poupança por precaução feita por muitos reforçou a depressão econômica, gerando descontentamento em escala industrial em um planeta que se torna marrom.

A desconexão entre o mundo financeiro e o mundo real, no qual bilhões de pessoas lutavam, inevitavelmente aumentou. E com isso cresceu o descontentamento que deu origem aos monstros políticos sobre os quais eu estava alertando meus amigos de esquerda.

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Como na década de 1930, nas almas de muitos, as vinhas da ira estavam ficando pesadas para uma nova e amarga safra. No lugar das caixas de sabão dos anos 30, a partir das quais os demagogos prometeram restaurar a dignidade das massas descontentes, as Big Tech [grandes empresas de tecnologia] forneceram aplicativos e redes sociais perfeitamente adequados para a tarefa.

Uma vez que as comunidades se renderam ao medo de infecção, os direitos humanos pareciam um luxo inacessível. As Big Tech desenvolveram pulseiras biométricas para monitorar nossos dados vitais o tempo todo. Em conversas com governos, eles combinaram a saída com dados de geolocalização, alimentaram tudo com algoritmos e garantiram que a população recebesse mensagens de texto úteis, informando-lhes o que fazer ou para onde ir para impedir novos surtos.

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Mas um sistema que monitora nossas tosses também pode monitorar nossas risadas. Poderia saber como nossa pressão arterial responde ao discurso do líder, à conversa animada do chefe, ao anúncio da polícia que proíbe uma manifestação. De repente, a KGB e a Cambridge Analytica pareciam neolíticas.

Com o poder estatal legitimado pela pandemia, agitadores cínicos se aproveitaram. Em vez de fortalecerem as vozes pedindo cooperação internacional, a China e os Estados Unidos reforçaram o nacionalismo. Em outros lugares, também os líderes nacionalistas alimentaram a xenofobia e ofereceram aos cidadãos desmoralizados um comércio simples: orgulho pessoal e grandeza nacional em troca de poderes autoritários para protegê-los de vírus letais, estrangeiros astutos e dissidentes conspiradores.

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Assim como as catedrais foram o legado arquitetônico da Idade Média, a década de 2020 nos deixou muros altos, cercas eletrificadas e bandos de drones de vigilância. O renascimento do Estado-nação tornou o mundo menos aberto, menos próspero e menos livre, precisamente para aqueles que sempre acharam difícil viajar, para sobreviver e para expressar suas opiniões. Para os oligarcas e funcionários da Big Tech, Big Pharma [grandes empresas farmacêuticas] e outras megafirmas, que se deram bem com os homens fortes no poder, a globalização prosseguiu em ritmo acelerado.

O mito da aldeia global deu lugar a um equilíbrio entre os blocos de grandes potências, cada qual jogando com expansão militar, cadeias de suprimentos separadas, autocracias idiossincráticas e divisões de classes reforçadas por novas formas de nativismo. As novas divisões socioeconômicas colocaram em relevo as características predominantes da política de cada país. Como pessoas que se tornam caricaturas de si mesmas numa crise, países inteiros se concentram em suas ilusões coletivas, exagerando e consolidando preconceitos preexistentes.

A grande força dos novos fascistas durante os anos 2020 foi que, diferentemente de seus antepassados políticos, eles nem precisaram entrar no governo para ganhar poder. Partidos liberais e social-democratas começaram a se envolver para abraçar a ‘xenofobia-leve’ [xenophobia-lite], depois o ‘autoritarismo-leve’ e o ‘totalitarismo-leve’. Então, aqui estamos, no final da década. Onde estamos?

Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, é líder do partido MeRA25 e professor de economia na Universidade de Atenas.

*Publicado originalmente em 'Project Syndicate' | Traduçao de César Locatelli

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