CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
Mundo

A fome foi convidada ao debate eleitoral na Argentina

A Universidad Católica Argentina (UCA), instituição de referência em estatísticas sociais do país, estima que, em dezembro deste ano, quando o novo mandato presidencial começará, a pobreza terá atingido quase 40% da população

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Sergio Ferrari, de Rosario, Argentina, especial para o 247 – A crise social e o debate político vão de mãos dadas nesse país sul-americano onde, no domingo, 27 de outubro, serão eleitos o presidente e o vice, 130 deputados, 24 senadores e executivos de várias províncias. Caso se confirmem os resultados das eleições primárias obrigatórias realizadas no dia 11 de agosto passado –onde a oposição saiu vitoriosa–, uma das causas principais da mudança política terá sido o aumento explosivo da miséria durante o governo de direita do atual presidente Mauricio Macri.

A Universidad Católica Argentina (UCA), instituição de referência em estatísticas sociais do país, estima que, em dezembro deste ano, quando o novo mandato presidencial começará, a pobreza terá atingido quase 40% da população. Em fins de setembro, o Instituto Nacional de Estadísticas y Censos (INDEC) confirmou que, no final do primeiro trimestre de 2019, 35,4% dos argentinos –16 milhões pessoas– são pobres e 7,7% –ou seja, 3,4 milhões– são indigentes; com o agravante que uma em cada duas crianças vive em estado de pobreza. A situação é de declínio acelerado da renda. Apenas no último ano, os 20% mais pobres da população perderam 20% do seu poder aquisitivo.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

É paradoxal que isso esteja acontecendo em uma das potências agrícolas planetárias, em um país produtor de alimentos, outrora considerado como um dos “celeiros do mundo”, e que ainda hoje, com suas exportações, garante alimentos para quase 400 milhões pessoas; ou seja, 10 vezes mais do que a sua população.

É uma realidade extremamente preocupante, que levou a oposição peronista a propor este ano uma lei de “emergência alimentar”, finalmente aprovada pelo Parlamento na terceira semana de setembro. Essa lei estabelece um aumento de 50% nas rubricas nacionais para a alimentação e a nutrição, privilegiando, em particular, crianças até aos 14 anos de idade, grávidas e pessoas idosas. A lei, que prevalecerá até 2022, estipula um ajuste trimestral automático desse orçamento, levando em conta a inflação e o custo da cesta básica de alimentos.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

De biblioteca a restaurante popular

Pelo menos três vezes por semana “à noite, nós garantimos uma refeição para pessoas carentes do bairro”, explica Daniel Macalusi, vice-presidente da Biblioteca Popular Empalme Norte, localizada em Empalme Graneros, zona periférica de Rosario duramente atingida pelo tráfico de drogas e pela violência dele advinda.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

“Estamos muito preocupados com a forma como, nos últimos três anos, aumentou o número de pessoas que vêm em busca de um prato de comida”, enfatiza o dirigente comunitário, eletricista independente de 52 anos de idade, que desde 2011 colabora nessa associação, uma das mais emblemáticas da cidade e que, atualmente, promove uma dezena de atividades educativas, culturais e desportivas.

Como resultado da crise social, a partir de 2016, a entidade, que nasceu como uma biblioteca de bairro, teve que agregar um restaurante popular para aliviar a situação de centenas de vizinhos, incluindo inúmerxs crianças e adolescentes. “No início, oferecíamos um lanche para cerca de 15. Hoje, há mais de 100 meninas e meninos que, diariamente, recebem um copo de leite e um pouco de pão”, explica.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Um estudo recente da Universidade de Rosario e da organização Barrios de Pie, lançado na segunda semana de outubro, indica que 4 em cada 10 crianças que recorrem a restaurantes populares na província de Santa Fe sofrem de desnutrição. O estudo baseia-se em uma amostra de 2.543 crianças de 42 bairros de Rosario e de outras três cidades da província.

"É paradoxal ver que nossa biblioteca, que nasceu como um espaço cultural, devido à fome crescente das pessoas, teve que se converter em um restaurante popular autogerido benevolamente pelos membros da comunidade”, salienta. Atualmente, assegura um prato de comida, três vezes por semana, para mais de 400 pessoas.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Este ano, "vi com meus próprios olhos a situação de miséria mais terrível dos últimos tempos. É muito angustiante ver como a perda do emprego afeta nossa comunidade. Eu mesmo a vivo essa realidade em minha própria carne. Atualmente, tenho trabalho apenas dois dias por semana”, conclui o líder do bairro.

Macri e uma crise anunciada

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Para o antropólogo rosarino e doutor em Sociologia Carlos Gómez, a pobreza e a miséria tomaram uma nova dimensão desde a chegada de Mauricio Macri ao governo, em 2015.

O primeiro fato decisivo que agiu como um gatilho, enfatiza, foram os aumentos excessivos e contra toda lógica dos preços dos combustíveis e dos serviços públicos essenciais (eletricidade, gás, água, etc.), que acumularam percentagens acima de 1000% em pouquíssimo tempo.

O professor de Ciências Políticas aponta que isso operou como uma “verdadeira deflagração sobre os rendimentos das classes médias e populares, inviabilizando qualquer economia doméstica e fazendo desaparecer as economias já precárias nos bairros, particularmente as pequenas empresas”.

Um efeito dessas políticas de ajuste do governo é o aumento do preço dos alimentos –6,2%, em setembro– e dos transportes públicos, alcançando 5,8% de impacto inflacionário no nono mês de 2019, podendo atingir 55% no acumulado anual. Nos 4 anos da gestão de Macri, os preços ao consumidor aumentaram 300%.

Gómez recorda que, apesar do atual governo ter mantido algumas das políticas sociais anteriores, “os diques de contenção que haviam sido consolidados durante a presidência de Cristina Kirchner entraram em colapso ante a dimensão do aumento do custo de vida”.

As classes médias empobreceram e as classes mais humildes entraram em subconsumo e fome, ressalta. Além disso, “ainda não foram medidos os impactos da catástrofe desse modelo na vida dos aposentados”. Apesar de estar sofrendo há anos com os baixos rendimentos, hoje, estes constituem um setor particularmente prejudicado pelas atuais políticas antissociais, pelos custos elevadíssimos dos medicamentos e pela redução constante dos seus direitos essenciais e pensões, conclui.

Dívida e pobreza

Dois flagelos principais –embora não sejam os únicos– ameaçam a governança atual na Argentina e se projetam como riscos que ameaçam o futuro governo que sairá da votação popular no próximo 27 de outubro: a miséria crescente e a dívida externa, particularmente a mais recente, contraída por Mauricio Macri com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Segundo estimativas coincidentes de parte de vários especialistas, no final do ano, a dívida externa superará 90% do PIB, que se reduzirá em, pelo menos, 4%. Estima-se uma queda da capacidade de compra dos salários de 20% e uma taxa de desemprego superior a 12%.

Caso ganhe a Frente de Todos, principal aliança da oposição –que saiu na frente nas eleições primárias realizadas no dia 11 de agosto com mais de 15 pontos de diferença contra a Todos por el Cambio, de Mauricio Macri–, todas as indicações são de que será necessária uma renegociação da dívida. Particularmente significativa a dívida de 57 bilhões de dólares, com a qual o FMI tentou, sem sucesso, enquadrar o governo atual, estabelecendo um recorde mundial do binômio crédito-endividamento.

Segundo o Resumen Latinoamericano, a fuga de capitais nos 4 anos do atual governo superará 72 bilhões de dólares, através de vários mecanismos que beneficiaram, em particular, o concentrado setor financeiro.

No caso de uma vitória eleitoral, as propostas da oposição para combater a fome têm sido claras e explícitas. Na primeira semana de outubro, Alberto Fernández, candidato a presidente pela Frente de Todos, apresentou publicamente seu projeto “Argentina sin hambre” (Argentina sem fome), onde define a alimentação e a nutrição como direitos humanos fundamentais, obrigando-os a serem convertidos em políticas de Estado e a serem atendidos como “a prioridade nacional número um de um novo contrato social”, que deverá ser respaldado por uma proposta de “unidade nacional”.

A gravidade da situação econômica argentina, que muitos comparam com a crise explosiva de 2001, antecipa as sérias dificuldades de gestão que deverão ser enfrentadas pelo próximo governo. Os sete eixos de Argentina sin Hambre incluem a melhoria da alimentação e da nutrição; a redução do preço dos alimentos; a geração de mais renda para as famílias, bem como romper o círculo de fome-exclusão-pobreza. A proposta também define a criação de empregos e a articulação dessa prioridade alimentar com os planos da saúde, da educação, do desenvolvimento local e de criação de emprego. E, finalmente, a promoção de um sistema alimentar sustentável ecológica e economicamente desde a fase de produção até a fase de consumo (melhorando as práticas, a produção e os preços).

Dado o imediatismo da aplicação desse Plano, em caso de vitória da oposição no dia 27 de outubro, são previstas medidas urgentes, ações locais e políticas estruturais para estabelecer, a partir de 10 de dezembro –data da mudança de governo– um Conselho Federal para a gestão em conjunto com os ministérios do Desenvolvimento Social, Educação, Saúde e Produção e Trabalho. O Conselho será integrado por universidades, sindicatos, câmaras de negócios, igrejas e organizações sociais. Também será criado um Observatório Interdisciplinar para acompanhar, monitorar e avaliar esse plano. (Sergio Ferrari).

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Carregando os comentários...
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Cortes 247

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO