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Guilherme Preger

Engenheiro eletricista de FURNAS e autor do livro Fábulas da Ciência (em lançamento, Editora Gramma, 2021). É autor dos blogues Semiopolítica e Fabulação Especulativa

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A boiada das boiadas

Notas sobre a privatização da ELETROBRÁS

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  1.  Como apontou o jonalista Luis Nassif em uma de suas recentes análises enxadrísticas da conjuntura (https://jornalggn.com.br/editoria/luisnassif/xadrez-do-momento-mais-decisivo-da-historia-por-luis-nassif/), o governo Bolsonaro logrou comprar três importantes blocos de poder: os militares com postos e sinecuras burocráticas; o dito “Centrão” com o tratoraço das emendas do suposto “orçamento paralelo”; e o “Mercado” com a promessa da venda barata de ativos públicos. Esses três decisivos apoios estão implicados na desestatização da ELETROBRÁS, objeto da Medida Provisória 1031/2021 que deverá ser votada em breve no Senado, após aprovação-relâmpago e sem discussão no Congresso. 
  2.  De fato, na desestatização da ELETROBRÁS estão implicados a iniciativa do Ministério das Minas e Energias (embora a MP tenha partido do Ministério da Economia), dirigido pelo almirante (da ativa) Bento Alburquerque, o servilismo do dito Centrão que aprovou a MP a toque de caixa, contornando todos os ritos parlamentares obrigatórios, e a voracidade de abutre do Mercado, faminto pela carniça dos ativos de um monopólio estatal bastante lucrativo. 
  3.  Não quero aqui me deter na flagrante inconstitucionalidade da Medida Provisória, que conta com o aparente beneplácito acovardado do “Supremo com Tudo” (onde está sendo questionada). Basta lembrar simplesmente que o argumento da Medida deveria ser necessariamente submetido a um Projeto de Lei e contar com audiências públicas, onde haveria discussão com a sociedade sobre seus custos e ganhos. Não houve isso, assim como não se seguiu sequer o rito habitual das medidas provisórias. No Congresso, o relatório foi votado menos de 24 horas após a conclusão do texto do relator. 
  4.  No Senado por sua vez, o relator escolhido foi o senador Marcos Rogério, do partido DEM, que integra a frente governista na afamada CPI da COVID. Acredita-se que o relator fará seu complexo trabalho de redação nas horas vagas de sua intensa participação na CPI, onde é um dos nomes governistas mais barulhentos. Pois a MP, que caduca no próximo dia 23/06, está para ser votada nas franjas obscuras dessa CPI que atualmente monopoliza a atenção da opinião pública. Mas isso também aparentemente faz parte do projeto. Como se diz no Mercado, esse fato já foi “precificado”. 
  5.  Trata-se, portanto, de uma grande “Boiada”, no dizer impagável do Ministro Ricardo Salles.  É um projeto que não tem qualquer sustentação jurídica, política ou econômica. Ele é simplesmente aquilo que o economista Eduardo Costa Pinto, da UFRJ, chama de “butim”. Faz parte de um grande “Pactão político”, e estava na conta desse apoio bolsonarista à campanha vitoriosa do deputado Arthur Lira pela presidência do Congresso. Foi a hora dos deputados da base governista, em torno de 300 deputados,  fazerem sua parte no Pactão. A privatização da ELETROBRÁS poderia ser chamada de a “Boiada das boiadas”. 
  6.  Uma conta simples pode provar isso. A Medida foi aprovada no Congresso sem a realização de sua avaliação financeira (“evaluation”), que seria absolutamente necessária. Pois trata-se de informar aos parlamentares qual será o valor da venda. Faz certamente diferença numa privatização o valor de venda do ativo, pois como os deputados e senadores saberiam se “vale a pena” vender um patrimônio do Povo Brasileiro? A última conta, sem muito rigor, feita ainda no governo Temer era que a privatização da ELETROBRÁS arrecadaria 12 bilhões de reais. Mas o projeto de Temer (que não conseguiu ser aprovado) era ligeiramente diferente, pois na Medida atual, embora mantenha basicamente a mesma ideia de “capitalização” em bolsa de valores,  foram inseridos os famosos “jabutis”, medidas impopulares que aumentam os seus riscos. Sem falar na própria crise dos mercados com a pandemia, pois estão todos em baixa (em relação aos valores da era pré-pandêmica). Assim, o valor final certamente será inferior ao previsto anteriormente. Mas mesmo tomando-se este valor como referência, percebe-se claramente o que significa de perda financeira para a União. O controle da empresa será vendido por, no máximo, 12 bilhões de reais, quando a ELETROBRÁS tem 15 bilhões em caixa segundo seu último balanço publicado recentemente,  e outros 45 bilhões de indenizações a serem recebidas da União. Some-se a isso o lucro de 6 bilhões do sistema ELETROBRÁS em 2020 em plena pandemia e em recessão, o que significa que a privatização será paga em menos de dois anos. E tudo isso num sistema que a maior parte do investimento já foi amortizado, o que levou a chamada cotização da energia (no governo Dilma) que reduziu a conta de energia. O projeto em questão defende a descotização, com inevitável aumento do custo residencial e industrial da conta de luz. É um verdadeiro “negócio da China” e provavelmente será mesmo adquirido por investidores chineses, que dispõem atualmente de largo capital e têm interesse em controlar nosso sistema nacional energético e hidrológico. 
  7.  No entanto, como engenheiro eletricista quero me deter aqui não sobre seus evidentes custos financeiros (ao Povo brasileiro) mas aos riscos tecnológicos envolvidos nessa Grande Boiada. A ELETROBRÁS é detentora da maior parte do Sistema Interligado Nacional (SIN), com 51 GW de capacidade instalada, 71 mil km de linhas de transmissão, e responsável pela energia elétrica de 70% da população brasileira. Trata-se do maior sistema de energia renovável do mundo e o segundo sistema global de energia hidrelétrica. Uma de suas principais virtudes, única em todo o planeta, é sua malha de interligação que une o Norte ao Sul do País, o Centro-Oeste ao Litoral. Além disso, as usinas hidrelétricas controlam o fluxo das principais bacias hidrográficas brasileiras, ou seja, o montante de vazão que garante o abastecimento de água de milhares de municípios brasileiros. O SIN permite o controle do nível dos reservatórios, de modo que nas regiões onde há seca, os reservatórios podem ser fechados parcialmente e liberar a energia das usinas cujos reservatórios estão onde o regime pluviométrico é maior. Isso significa que entre Norte e Sul do país, pelas linhas de transmissão, trafegam algo em torno de duas grandes usinas de energia de um lado para o outro. 
  8.  Este é um dos dados técnicos que escapa às discussões políticas e que poderia ser esclarecido se houvesse audiências. Pois o projeto de privatização, nomeadamente baseado no projeto de desestatização de 1997 (governo FHC), destina-se a uma mudança do regime estatal para um de mercado, onde toda a energia torna-se mercadoria. Assim, a decisão de manter reservatórios fechados diminui a receita da empresa (e portanto o lucro dos investidores privados). Basicamente, o SIN é um sistema de regulação técnica responsável pela segurança energética do país, incluindo residências, comércio e indústrias.  Desregular esse sistema de compensações energéticas e hidrológicas aumentará substancialmente o risco de falta de água em algumas regiões e falta de luz em outras. 
  9.  Várias regiões do planeta, dependentes da energia hidrelétrica, mas que não possuem um sistema de compensação interligado como nosso, passam por crises hídricas e de luz simultâneas, como aconteceu na Califórnia em 2000 e no Texas recentemente (2021). Se a luz é dependente da água, se falta água, faltará luz conjuntamente. Para amortizar o problema, além de nossa interligação, o sistema brasileiro possui sua “energia de reserva”, ou seja, a princípio mantém usinas térmicas a óleo como energia secundária para ser usada em caso de falta de energia hidrelétrica. A energia térmica a óleo é praticada a preços proibitivos, caríssimos, mas as usinas térmicas precisam ser acionadas quando o nível dos reservatórios fluviais chega a índices críticos. 
  10.  A energia térmica a óleo, além de cara, é uma energia fóssil. Nos últimos anos, o Brasil avançou em seu parque eólico, principalmente, e solar, com menos intensidade. Ainda há grande margem para crescer nesses setores renováveis e que não contribuem para o aquecimento global. Como parte dos compromissos realizados pelo país no acordo de Paris (2015), e dispostos na Agenda 2030,  o regime termelétrico deve ser gradualmente substituído pelos regimes de energia renovável, eólico, solar, hidrelétrico de pequena capacidade (PCH),  entre outros. Também se projeta a transformação tecnológica do parque automobilístico e do transporte urbano rodoviário elétrico. Tudo isso indica um crescimento potencial da participação da ELETROBRÁS no setor energético brasileiro (não apenas elétrico). No entanto, esses regimes alternativos de energia são conhecidos como intermitentes, pois dependem de fatores como o vento ou a incidência de luz. Esses sistemas só se tornam de fato viáveis tecnologicamente se forem acompanhados de um sistema de armazenamento de energia capaz de estabilizar e tornar contínuo o fluxo (ou seja, armazenar quando há excedente de geração de energia e ir liberando gradualmente a energia para o consumo quando a geração se torna menor). Ora, o custo do armazenamento também é muito caro, pois as baterias são elementos de custo produtivo alto, além de serem atualmente dependentes de materiais não abundantes, como o lítio. Além disso, a produção das baterias e seu dejeto após a vida útil têm custos e provocam danos ambientais. O Brasil, no entanto, tem as maiores baterias do mundo no conjunto de seu sistema interligado de reservatórios hídricos. Pois o reservatório de uma usina hidrelétrica é basicamente uma imensa bateria natural. 
  11.  Uma das grandes falhas do modelo brasileiro para seu complexo sistema elétrico, definido com vistas à mercantilização da energia nos anos 90, foi não ter corretamente precificado os reservatórios das usinas como reservas de energia. Naquela época se desconsiderava totalmente o possível crescimento das energias renováveis intermitentes. A verdade é que o Brasil tem um potencial único no mundo de permitir o crescimento das energias renováveis, associando seu regime intermitente com o fluxo controlado de seus reservatórios. Há neste caso um acoplamento virtuoso, pois a adoção das fontes alternativas renováveis permite reduzir o uso de energia térmica a óleo e gás natural,  e, ao mesmo tempo,  manter a segurança do suprimento. Permite também garantir um nível dos reservatórios adequado para o abastecimento de água.  Mas esta possibilidade tecnológica torna-se impraticável com um projeto de privatização onde a comercialização da energia num mercado livre (como está sendo proposto) remunera apenas a energia a ser comercializada e não aquela que deixará de ser consumida para garantir o suprimento. 
  12.  E mesmo que futuramente venha a ser precificado o valor de armazenamento da energia em reservatório, beneficiando os futuros acionistas privados da ELETROBRÁS, não deixa de ser lamentável que esse valor não vá para as populações que estão às margens dos reservatórios que são os verdadeiros zeladores desse patrimônio hídrico. Ou seja, a valoração dos reservatórios seria uma forma de indenizar todas aquelas regiões que foram impactadas ecologicamente pelos reservatórios; mas, com a privatização, esse valor, caso existente, deverá ficar com acionistas privados e não com as populações ribeirinhas. 
  13.  Este é um problema técnico que aponta para o futuro do país, para sua segurança hídrica e energética e para a justiça social. Devemos lembrar também que a ELETROBRÁS é a salvaguarda de projetos para atendimento às comunidades pobres remotas (Luz para Todos), pela pesquisa tecnológica em laboratórios avançados (CEPEL e os Parques Tecnológicos de Furnas, Itaipu e Tucuruí) e pelo programa de eficiência energética PROCEL. Nada disso está sendo levado em conta no atual projeto da Medida Provisória 1031/2021. Como se percebe, os agentes que estão perpetrando esse crime contra a economia pública parece que só enxergam a água e a energia do povo como fazendeiros de gado, de olho na abertura das porteiras da privatização e no estouro das oportunidades de lucro fácil.  

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