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Rogério Skylab

Músico e compositor

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A Constituição de 1988 e o STF

Em política, uma mudança aparentemente repentina é, na verdade, muita lenta. O furacão de 2016, o impeachment político de uma presidenta legitimamente eleita, vem sendo preparado, lentamente, desde os anos 90

A Constituição de 1988 e o STF (Foto: Dorivan Marinho/STF)
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Nessa época, 1975, eu tinha entrado para a Faculdade de Direito da UERJ. Guardo bem a imagem de dois professores: Paulino Jacques, já bem velhinho e muito respeitado na área jurídica, que dava o curso de Filosofia do Direito; e Fernando Whitaker da Cunha, professor de Direito Constitucional, sempre de terno, elegantérrimo. Seu livro "Democracia e Cultura - A teoria do Estado e os Pressupostos da Ação política" é um clássico da literatura jurídica. Nessa época, eu desconfiava que um bigodudo que sentava ao meu lado era do DOPS.

Encontrei recentemente um texto de Fernando Whitaker sobre a Constituição de 1988, escrito em 1989, que termina curiosamente assim em seu último parágrafo: "Uma síntese crítica da Constituição, apesar dos inocultáveis desníveis básicos, não pode deixar de reconhecer nela certos avanços significativos em segmentos diversos e de almejar que superando suas deficiências, abra caminho para um verdadeiro Estado Democrático".

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Por outro lado, conheci, alguns dias atrás, um importante texto sobre a referida Constituição, escrita recentemente, que traz como título "O fim das ilusões constitucionais de 1988?". Ainda que esteja em forma de pergunta, é como se o artigo, escrito por Enzo Bello, Martônio Montal'Verne Barreto Lima, e, Gilberto Bercovici, nos sugerisse, só pelo título, que a Constituição de 1988 não foi capaz de abrir caminho para o tal Estado Democrático. Pois a leitura do texto, que passamos agora em revista, não só nos confirma a sugestão como também indica que a Constituição de 1988 está morta.

E talvez esteja morta justamente porque se acreditou que tivesse força suficiente para desbravar o campo do real e transformá-lo. Era essa a equivocada expectativa não só de Fernando Whitaker, mas de todos aqueles que a promulgaram.

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A discussão que o texto promove, fazendo um paralelo com a Constituição de Weimar de 1919, é que, tal como Carl Schmidt entre 1919 e 1933, os críticos conservadores da nossa Constituição, ao mesmo tempo que criticam o seu dirigismo expresso nos dispositivos relativos a políticas públicas e direitos sociais, impõem, pela via da reforma constitucional e da legislação infraconstitucional, políticas ortodoxas de ajuste fiscal e de liberação da economia. Em outras palavras, esses críticos conservadores promoveriam uma constituição dirigente invertida. A grande ilusão seria justamente essa: transformar a realidade só com dispositivos constitucionais, fazendo da constituição uma teoria auto-suficiente. Afinal, qualquer constituição só pode ser concretizada por meio da política e do estado.

A Doutrina Brasileira da Efetividade, muito presente no campo jurídico brasileiro a partir da década de 90, que tem como origem uma tese escrita em 1968 por José Afonso da Silva, "Aplicabilidade das Normas Constitucionais", tese que estabelece uma diferença entre normas programáticas e normas jurídicas – as primeiras, revestidas de intenções políticas e ideológicas - , terá como agenda uma concepção isolada do direito, a perspectiva kantiana e a judicialização da política e das relações sociais. Sua proposta teórica é que diante do déficit de concretização das normas constitucionais, a interpretação, a argumentação, os atores do sistema jurídico (tribunais, defensoria...) seriam formas de aplicar as normas constitucionais, principalmente dos direitos humanos - a aplicabilidade do direito normativista seria o modo mais seguro de garantir esses direitos fundamentais, cujo princípio é a dignidade humana, conforme a matriz alemã da teoria dos direitos fundamentais. Ao invés das questões constitucionais serem abordadas pelo viés da ordem econômica (soberania, redução de desigualdades, pleno emprego, tratamento diferencial a pequena empresa), o viés kantiano do individualismo, da autonomia da vontade, do racionalismo, acaba por privilegiar, dentro da Constituição de 88, a propriedade privada, a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor. Esse elo entre a teoria dos direitos fundamentais, que torna abstrata a figura do sujeito de direito através da vontade de autonomia, e o novo direito constitucional pós guerra europeu, vai marcar profundamente a Doutrina Brasileira da Efetividade, que terá no ministro Luís Roberto Barroso um dos seus principais defensores.

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A conseqüência é a judicialização da política e das relações sociais. Ao invés das decisões de natureza política, econômica e social ficarem restritas ao Parlamento e ao Poder Executivo, passam a fazer parte das decisões do STF, que é um ambiente sem transparência, cujos agentes públicos, sem investidura do voto popular, estão livres do controle político e social. Com justificativas subjetivas, tais como, dignidade, proporcionalidade, razoabilidade, efetividade... a judicialização impõe: um controle difuso de constitucionalidade no cotidiano das relações sociais; um controle absoluto e abstrato de constitucionalidade quando, por exemplo, o STF cria a hipótese de perda de mandato parlamentar não previsto na Constituição de 88; e, por fim, um controle judicial de políticas públicas quando algumas decisões jurídicas tem feições de lei ou de medidas administrativas, substituindo assim legisladores eleitos e administradores públicos.

Alguns exemplos de decisões do STF, que tocam em cláusulas pétreas da Constituição como a "presunção de inocência", nos sugerem uma espécie de juristocracia, que é a supremacia das cortes constitucionais sobre a própria constituição. Em conseqüência, sobrepõe-se ao Poder Constituinte, o Poder Judiciário ou poder constituído, eliminando ao mesmo tempo o custo de demorados e normais processos políticos legislativos. A própria recusa da presidência do STF em retomar a discussão sobre a questão da presunção de inocência no momento eleitoral de 2018, quando duas ações declaratórias de constitucionalidade achavam-se prontas para o julgamento, torna o papel do STF ainda mais questionável relativamente a sua lealdade quanto à Constituição. O cumprimento da pena privativa de liberdade, logo após decisão de órgãos judiciais colegiados, antes do trânsito em julgado, como nos sugere os três juristas-autores desse importante texto que incorporamos, não é uma mutação constitucional. É antes uma ruptura, uma violação da constituição por parte da juristocracia, que passa a ter sobre aquela um poder de vida ou morte.

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A reforma gerencial ou regulatória na década de 90, à qual vai estar ligado Bresser Pereira, impunha à Administração Pública uma atividade diferente do que propunha a Constituição de 1988 – a inclusão em seu texto do programa nacional desenvolvimentista sugeria uma Administração Pública centralizada, que formula e planeja as políticas públicas, ou seja, detendo o controle de procedimentos e meios. Pois a reforma regulatória conferiria à Administração Pública a criação de órgãos independentes da estrutura administrativa tradicional, por critérios técnicos, para regularem e fiscalizarem a prestação dos serviços públicos. Com isso há um repasse de atividades estatais para a iniciativa privada, cabendo ao Estado, como sua principal tarefa, o controle do funcionamento do mercado. Com as agências reguladoras, conforme a Teoria da Captura, se regulariam as falhas do governo, provenientes da cooptação do Estado para fins privados. Tornar público o estado, em contraposição ao seu passado patrimonialista, é o que legitimaria a privatização das empresas estatais e a criação das agências regulatórias.

O que está em jogo nesse processo é claramente a idéia de um Estado neutro, técnico, de regulação e controle, ao invés de um estado que promova novas políticas, um estado ativo (não necessariamente dirigista), que atue na esfera econômica, por exemplo, corrigindo distorções. A neutralidade nesse caso sugere que as escolhas coletivas sejam a partir de cálculos de utilidade que os indivíduos fariam tendo em vista seus próprios interesses (o controle de resultados, visando a maior eficiência possível, subsume esses cálculos de utilidade, como se não existissem valores sociais e fazendo sempre os interesses de mercado prevalecerem sobre a política democrática).

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De qualquer maneira, o que os autores do texto "O Fim das ilusões contitucionais de 1988?" indicam, é que, não obstante a redução economicista da eficiência (a relação custo-benefício) a que foi submetido o Estado Brasileiro na década de 90, subtraindo-lhe o seu poder ativo de criação de mercados, as agências regulatórias, na verdade, apenas deram um ar de modernidade ao tradicional patrimonialismo do Estado Brasileiro. A nova forma de captura de fundo público, o novo patrimonialismo, além de subtrair das mãos do estado a iniciativa de criar mercados, tirava das mãos dos políticos as decisões jurídicas, políticas e econômicas.

A partir dos anos 2000 vão se estabelecer não só diferenças em relação à política econômica, mas também quanto a interpretação da constituição. Se a política industrial dos anos 90 era de importação, em 2000 reaparece a figura do extrativismo, nossa velha conhecida, com a exportação de produtos primários, as commodities. O Estado torna-se mais intervencionista e o regime regulatório mais forte em torno da mineração, petróleo e agronegócio, visando acordos melhores com agências financiadoras internacionais. A subordinação dos países latino-americanos ao fluxo do comércio internacional fica explícita a partir de então, com regras de controle às empresas para controlar impactos sociais e ambientais.

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Seguindo a tradição americana e alemã, os críticos da Constituição de 88, na década de 90, compreendiam a livre iniciativa como um instrumento para se alcançar os objetivos da constituição, ainda considerada muito detalhista,vinculando em excesso o sistema político, o que acabava por gerar, segundo eles, ingovernabilidade. Na década seguinte, porém, a livre iniciativa torna-se princípio inviolável e sua previsão na constituição seria, para esses intérpretes, uma clara opção por um modelo privatista. Há, portanto, uma captura ideologia do texto constitucional. O Estado só pode atuar na esfera econômica legitimado por toda uma série de dispositivos constitucionais, que acabam reforçando o seu papel secundário de fornecer subsídios ao setor privado, este compreendido como o principal ator na produção de riquezas e no desenvolvimento nacional.

Em política, uma mudança aparentemente repentina é, na verdade, muita lenta. O furacão de 2016, o impeachment político de uma presidenta legitimamente eleita, vem sendo preparado, lentamente, desde os anos 90. No próximo texto, penetramos na segunda década deste século enigmático, sob o olhar estarrecido do professor Fernando Whitaker e do bigodudo sinistro que continua sentado ao meu lado.

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