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Zacarias Gama

Professor Titular da UERJ/Faculdade de Educação. Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Teotonio do Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do LPP-UERJ

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A Covid-19, a pandemia e a educação brasileira: mudanças à vista?

Este momento de passagem histórica que estamos vivendo, talvez esteja também, como diria Hobsbawm, marcando o início real do século XXI

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Grandes eventos históricos foram determinantes para marcar o início das idades Média, Moderna e Contemporânea. A ruptura que impuseram levou à criação de novas civilizações. Todas as nossas atenções se voltam para eles desde quando somos ainda crianças de escola básica. Nem sempre, contudo, olhamos para eventos menores com os mesmos olhos e a mesma atenção. Sabemos, por exemplo, da importância da Revolução Industrial inglesa do século XVIII, mas pouco nos interessamos pelas transformações que imprimiu ao modo de viver e ser da contemporaneidade. Devemos ao êxodo rural inglês que provocou as primeiras ações de saneamento das cidades em consequência da superpopulação urbana e a escassez de produtos agrícolas que forçou a importação de proteína animal da Austrália e Nova Zelândia e o inevitável surgimento de navios frigoríficos. A partir da Revolução Francesa, para além da derrubada de tronos e altares, foram outras e melhores as relações entre os cidadãos, entre eles e o Estado e o respeito aos direitos dos cidadãos. Os grandes efeitos dos grandes acontecimentos, e até de alguns de menor envergadura, contudo, estão cantados em verso e prosa e não é muito difícil elencarmos muitos deles.

O grande Eric Hobsbawm que se dedicou a estudar as modificações que as Revoluções causaram em diversos lugares, reconheceu a importância de grandes eventos para marcar o início de um novo tempo e não pensou duas vezes em atribuir à Primeira Guerra Mundial o marco inicial do século XX. Muitos críticos já se insurgiram contra a demarcação de novas eras por grandes eventos, alegando, por exemplo, que ninguém se tornou moderno ou contemporâneo nos réveillons de 1543 e 1789 sem considerar a gestação do novo no próprio ventre do velho. As contradições que levam a novas civilizações, de fato, não nascem da noite para o dia, elas nem sempre são rápidas enquanto vão criando a superação do velho e as condições de sustentação do novo.

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Se é difícil perceber todos os elementos que conformam o novo quando temos em perspectiva grandes eventos, imagina se o nosso objetivo é apreendê-los em eventos de menor envergadura e profundidade. Ao pensar assim tenho em mira dois eventos com sérias repercussões na sociedade brasileira e, em especial, sobre a educação nacional. O primeiro foram os longos tempos de ditadura que vivemos (1964-1985) e o segundo a pandemia atual que nos afeta a todos provocada pela Covid-19. Que impactos tiveram e terão sobre a nossa educação escolar?

Os anos de ditadura despertaram em grande maioria da população o ardente desejo de vida democrática e liberdade. Ninguém mais suportava o tacão militar, o estado autoritário e o cerceamento às liberdades naturais dos cidadãos. A explosão de gente nos comícios pelas Diretas-Já permitia que fossemos para as ruas e exigíssemos de volta a nossa liberdade e o regime democrático. Não prestamos atenção, porém, nos impactos de tamanha mobilização sobre as estruturas escolares da época. E eles foram grandes. 

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Os anos 1980 nas escolas deixaram de ser de resistência aos cânones ditatoriais para serem de fustigação aos elementos simbólicos e físicos que teimavam em sobreviver nas dependências escolares. A sociedade política e progressista se levantaria para construir uma nova realidade educacional no Brasil. Diversos governadores e prefeitos assumiram grande protagonismo nesta construção. No campo da sociedade civil, além dos movimentos sindicais docentes e outros, os pais reagiram e se insurgiam enfáticos contra as disciplinas curriculares criadas durante o governo militar, as famosas Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e Educação Moral e Cívica (EMC). Exigiram que fossem banidas dos currículos escolares. Eles, nas reuniões bimestrais e Associações de Pais, tornaram-se os grandes arautos de um novo tempo e renegaram aquela escola autoritária, excludente, antidemocrática, hierarquizada e reprodutivista. Seus filhos não fizeram por menos, a ponto de traumatizar professores ao chamá-los de autoritários ou equivalentes. A violência simbólica e física não demorou a ceder lugar a uma escola mais humanizada, acolhedora e capaz de compreender as crianças e jovens. E foi esta mesma geração de jovens que saiu às ruas, com as caras-pintadas, gritando a plenos pulmões “Fora Collor” e “Cadeia para os Anões do Orçamento”. 

Claro que a escola de qualidade e referência social tão sonhada e inscrita na LDB de 1996 está longe de ter saído do papel. Mas justiça seja feita, chegamos ao final dos anos 1990 com uma expansão da rede de escolas públicas jamais vista no país, quase completa universalização do ensino fundamental, eleição de diretores, fundo nacional da educação básica (FUNDEB), distribuição gratuita de livros didáticos etc.

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Agora vivemos estes tempos de Covid-19 em pleno isolamento social com as aulas suspensas sine die e a filharada em casa, poucos recebendo atividades à distância nos computadores, laptops, tablets e smartphones. Que impactos já podem ser percebidos nas nossas relações pedagógicas, que envolvem pais, professores, alunos e escolas? Posso elencar alguns, observados em reações postadas em plataformas das redes sociais e publicadas nas grandes mídias.

Recentemente chamou a minha atenção a resposta de uma criança, talvez de 9 anos, respondendo à seguinte questão: “Estamos em um momento de pandemia e alguns serviços deixaram de ser prestados para conter o avanço do coronavírus. Desenhe e escreva qual é o serviço que mais tem feito falta para a sua família e o porquê”. A resposta foi a escola e o porquê chega a ser hilariante: “não é fácil ser aluno da minha mãe”.

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O que poderia ser uma simples piada infantil muito engraçada tem elementos muito sérios. Primeiro porque distingue as diferentes naturezas das mães e das professoras. As mães são preparadas para uma vida em família com os seus filhos e círculo de amigos, não se preparam profissionalmente como as professoras, não tem aulas de Pedagogia, Psicologia Geral, Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem, Didática e Literatura Infantil etc. Nem tampouco são obedientes aos mesmos padrões éticos que devem caracterizar o magistério e, muitas sequer já abriram o Estatuto da Criança e do Adolescente, o famoso ECA. Certas mães podem ser e são excelentes professoras e vice-versa, mas o critério que define as duas concepções e competências são diferentes e irredutíveis.

Um segundo elemento, tem a ver com a atual campanha de desmoralização e xingamentos aos docentes em favor do ensino doméstico a ser realizado pelas famílias em suas próprias casas (“homeschooling”). A pandemia o impôs compulsoriamente às famílias de todas as classes sociais e gêneros. E a grande maioria está com os cabelos em pé sem saber como realizar uma tarefa nada fácil. Recentemente o professor universitário Rodrigo Ratier publicou em sua coluna no UOL Notícias um texto no qual chamou a atenção para o impacto negativo da quarentena na campanha do homeschooling (Ratier, 2020). Nela, ele se coloca como pai incapaz de fazer sua filha de cinco anos realizar uma tarefa escolar simples. Sente-sedesesperado e despreparado para realizar “uma missão que de longe parecia tão trivial, mas que de perto é um mistério insondável: como diabos se faz para uma criança estudar? ”. Acolher, dar bronca, deixar quieto, começar de novo? Sua conclusão revela a medida do seu despreparo e falta de estudos pedagógicos. Não é fácil nem qualquer um tem condições de ser professor. Ele termina a sua coluna exortando a sociedade brasileira a valorizar os educadores e educadoras e chama a atenção para as armadilhas contidas na campanha pró- homeschooling. 

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Um terceiro elemento: pela primeira vez as crianças e adolescentes poderão optar entre os pais e os professores. Terão claramente a distinção entre explicadores de final de tarde ou de semana que ajudam nas lições de casa e os seus professores de segunda a sexta, dos quais costumam sentir falta em grandes interrupções escolares. Claro que há professores dos quais querem distância, mas sentem falta daqueles que são respondedores e, sobretudo, dos que parecem irmãos mais velhos que compreendem e aplacam as suas angústias, como Bachelard descreveu os professores. Claro que as diferenças entre casa e escola também emergem e se consolidam como profundas, as escolas são espaços de trocas, cumplicidades, novas amizades, aventuras e das últimas notícias de interesse. As nossas crianças e jovens ao terem capacidade de comparar tendem a valorizar mais os seus professores e perceber as diferenças entre o céu e a terra. Também não ficarão ilesas as relações entre as escolas e os núcleos centrais e professores e alunos. A exigência de atender o alunado por meio digital, apoio a distância, traz como novidade a possibilidade de trocas e demais formas de interação a distância, a qual dificilmente será deletada ao final da pandemia. Pela primeira vez há um canal para dúvidas, instruções e aquisição de novos conhecimentos de forma mais imediata e confiável, sem as inúmeras horas de navegação a esmo no ciberespaço e as imprecisões do Google e da Wikipedia. Os tutoriais e fóruns haverão de adquirir outras dimensões. Os professores também estão aprendendo a se organizar e a debater online questões pertinentes à categoria, livres das repressões de gestores, autoridades educacionais e até policiais. Esta nova forma de organização conseguiu criar consenso para deter a determinação do Núcleo Central – Secretaria de Educação – de oferecer educação a distância obrigatória, computando-se normalmente os dias letivos e realizando práticas avaliativas obrigatórias. 

O fato é que estamos em um período de transição e muitas contradições estão sendo expurgadas e colocadas a olhos nus. O desmonte da saúde, por exemplo, é uma contradição que sobressai e mostra que o seu sucateamento já deu com os burros n’água, a despeito de toda a literatura do liberalismo clássico e do neoliberalismo de origem hayeckiana. O estado mínimo, tão decantado por ambos, em literatura interminável, mostrou a sua incapacidade de socorrer as pessoas de forma humanitária. Diante da pandemia, até o poderoso império americano teve os seus pés de barro descobertos e colocados à vista, a Covid-19 devasta a sua população em um trimestre, em quantidade proporcionalmente superior à guerra do Vietnã que durou 10 anos e ceifou mais de 55 mil jovens americanos. 

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Este momento de passagem histórica que estamos vivendo, talvez esteja também, como diria Hobsbawm, marcando o início real do século XXI. Não é impossível que esta pandemia esteja como a Primeira Guerra Mundial assinalando o fim da civilização ocidental, individualista, movida por cálculos utilitaristas e capaz de cultivar práticas e ações inumanas que foi hegemônica até o presente. A saúde e a educação brasileira certamente terão muito a ganhar.

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