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Sylvio da Costa Junior

Doutor pela UFRGS; Conselheiro Nacional de Saúde – Entidade FIO; Conselheiro Municipal de Saúde de Florianópolis – Entidade CUT

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A lista de pacientes e o acesso avançado na atenção básica

Vamos transformando um padrão de organização de serviço em uma outra coisa que pode ser tudo, mas não uma equipe de Saúde da Família

SUS - Sistema Único de Saúde (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
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O Sistema Único de Saúde (SUS) tem a ambição de ofertar saúde a todos dentro de um princípio fundamental, a equidade. Ofertar a todos, porém com mais brevidade a quem mais precisa. É uma pedagogia, uma lógica de oferta de acesso organizando a porta de entrada e dando racionalidade ao sistema de saúde. A oferta sem organização do acesso não oferece saúde na lógica da equidade, mas sim de seu oposto, a iniquidade.

O SUS tem suas bases montadas em um tripé baseado na universalidade de acesso, na integralidade do cuidado e na equidade da oferta assistencial. Ou seja, o SUS assegura saúde a todos, em toda a sua complexidade de cuidados e, primeiramente, a quem mais necessita. Esse tripé, a tríade do SUS, pode ser também comparado à representação que os católicos fazem da Santíssima Trindade, na qual o Pai, o Filho e o Espírito não podem ser entendidos separadamente, mas somente como uma entidade única, a Trindade. Não se entende o Filho sem entender o Pai e o Espírito, e assim sucessivamente. Como dito por católicos, um Deus Uno e Trino ao mesmo tempo.

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Assim, no planejamento do SUS, a vigilância do território é uma questão fundamental, pois somente com o mapeamento do território é possível se pensar em planejar a oferta de cuidados na perspectiva da equidade. A vigilância abarca outras ações e demandas fundamentais que vão desde a detecção precoce de casos suspeitos de doenças infectocontagiosas importantes, como dengue, leishmaniose ou covid19, até o planejamento propriamente dito para oferta regular de vagas para consultas eletivas. É a vigilância do território que permite que seja feita busca ativa da gestante para consultas de pré-natal. Nessa perspectiva o Brasil organizou sua atenção básica no modelo do Programa de Saúde da Família, com equipes compostas por médicos, enfermeiros, odontólogos, técnicos de enfermagem e de saúde bucal e agentes comunitários de saúde. Nesse modelo, cada equipe tem a responsabilidade sanitária por um território que abriga de 2.000 a 4.500 pessoas Brasil a fora. Esse modelo foi se consolidando e se expandindo de forma importante e com resultados alvissareiros, em um trabalho de formiguinha, no dia a dia, que ao longo dos anos produziu resultados relevantes — como, por exemplo, a robusta diminuição da mortalidade infantil ou o aumento da cobertura vacinal de todo um calendário complexo de imunizantes. 

Esse modelo capilarizado de cuidados a saúde é financiado majoritariamente pelos municípios e co-financiado pela União, leia-se Ministério da Saúde. Importante ressaltar que, quando se olha o percentual de “gastos em saúde” das três esferas, cada dia mais os municípios se encontram aumentando seu gasto com recursos próprios em saúde, a União cada vez menos financiando a saúde, e os Estados... olhando pela janela o financiamento do SUS. Nesse cenário um conjunto de gestores municipais estão encampando modelos de acesso como a ‘lista de pacientes’ ou o chamado ‘acesso avançado’. O que seria isso? Não há mais território, os agentes comunitários de saúde podem ir para a recepção ou trabalhar como auxiliares administrativos, em claro desvio de função, e abandonamos o território. As equipes de saúde da família se organizam na lógica de lista de pacientes na seguinte perspectiva: como dito anteriormente, o território vai para as calendas gregas, e a equipe passa a ser médico referenciada em uma lista de 2 mil a 4 mil pacientes que podem morar onde for, com olhar focado na realização de procedimentos clínicos. Já no chamado acesso avançado, não há agendamento prévio das consultas, salvo gestantes ou o que a rotina permitir. O acesso é livre, sem planejamento, na lógica de uma UPA ou de um pronto-socorro. Importante observar que o acesso avançado poderia ser efetivamente um avanço, caso o dimensionamento das áreas ou pessoas atendidas fosse compatível com a força de trabalho disponível pelas equipes de saúde, coisa que raramente é. A virtude do acesso avançado, que é o atendimento do paciente em no máximo 48 horas após a busca por serviços de saúde, se transformou em uma busca por atendimento sem planejamento do acesso, levando a iniqüidade.

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Na lista de pacientes não se trabalha com a ideia de universalização de acesso, mas de universalização de cobertura. Trocando em miúdos: exclui-se da conta do SUS os usuários que não usam o SUS para consultas na atenção básica. Verdade que eles podem não usar o SUS por diversos motivos, como por exemplo dificuldade de acessibilidade (desde unidades sem rampa até  unidades de difícil localização) ou por milhares de outros motivos. Mas de qualquer forma esse usuário é excluído de um conjunto de cuidados e diminui-se o público a se alcançar pelas equipes, claro, pois nesse modelo caso não excluísse muita gente do SUS você teria que ter 100% de cobertura de saúde da família. No acesso avançado, não há planejamento da oferta de serviços, com os usuários tratando a necessidade do dia, sem agendamento. O usuário é avisado que deve voltar para nova consulta, visando à continuidade do cuidado, mas não há agendamento, ele volta para nova consulta quando quiser ou puder e é atendido de imediato a qualquer hora do dia, muitas vezes não pelo seu médico de referência, mas pelo médico disponível, perdendo assim gradativamente o vínculo com as equipes. Mas, para quem já perdeu território, perder o vinculo é como se fosse, usando um dito popular, mais uma flechada em São Sebastião. 

Tanto na lista de pacientes como no acesso avançado, o truque por trás é que as prefeituras estão com a corda no pescoço, gastando em orçamento próprio algo em torno de 25% a 30% de recursos próprios em saúde e não conseguindo mais fazer expansão da atenção básica; o Ministério tem diminuído sua participação transferências aos municípios. Esse jeitinho brasileiro dado pelos municípios foi a forma encontrada de fazer a saúde na atenção básica. Diante da necessidade de expandir saúde para população, em particular o acesso, já que desde o golpe de 2016 a vida tem piorado bastante para o conjunto da população, somado ao aumento populacional, diversos gestores têm encontrado nessas formulas mágicas uma maneira de expandir acesso sem que acha aumento de gastos, a priori. Uma das variáveis mais sensíveis para avaliar a saúde é o acesso; ou seja, o “não acesso” é uma variável que impacta diretamente na avaliação dos serviços de saúde. Com o teto de gastos aprovado, congelando gastos em saúde por 20 anos, com os municípios enforcados financeiramente, foi-se modificando o modelo de saúde para ou atender só quem já usa o posto de saúde mesmo ou atender todo mundo a qualquer hora, sem planejamento, uma vez que aumento de recurso na saúde está fora de cogitação. Já citei em diversos artigos anteriores as intenções perversas por de trás do Previne Brasil, que se somam a esse cenário de escassez de financiamento.

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Como escrito no artigo anterior, o sanitarismo do pior dos mundos defende a lista de pacientes e cita o NHS, o SUS da Inglaterra, afirmando que na Inglaterra é assim. Não! Na Inglaterra todo médico é um PJ (pessoa jurídica, o médico abre um CNPJ, como se fosse uma empresa) e é contratualizada uma lista de pacientes com um determinado quantitativo de pacientes por meio do qual o pagamento ao profissional se dá por produção. No Brasil, transferências intergovernamentais não se dão dessa forma, por pagamento via produção na atenção básica. Isso faz toda diferença tanto no financiamento do sistema quanto no processo de trabalho. Recomendo para quem tiver interesse o artigo do professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Adriano Massuda, intitulado “Mudanças no financiamento da Atenção Primária à Saúde no Sistema de Saúde Brasileiro: avanço ou retrocesso?”, publicado pela revista Ciência & Saúde Coletiva, ou o artigo “Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos?”, da professora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) Ligia Giovanella, publicado também pela revista Ciência & Saúde Coletiva.

De concessões em concessões, do modelo de saúde que apresenta resultados positivos claros vamos caminhando a modelos duvidosos, tropicalizando uma ideia aqui, fazendo um aggiornamento acolá, vamos fazendo pequenas concessões que desvirtuam a origem do Programa Saúde da Família. O Saúde da Família nasce a partir da lógica do cuidado com pacientes crônicos, do diabético, do hipertenso, por isso a importância do território e da vigilância do cuidado, da busca ativa da gestante. Um Centro de Saúde não é um botequim, aonde, quando aberto, vai quem quer ou “não foi porque não quis, já que ele está aberto o dia inteiro”. Um Centro de Saúde, se a equidade ainda é importante, deve trabalhar com território e fazer buscas ativas de pacientes que por diversos motivos não o acessam.

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De concessões em concessões do modelo de saúde, vamos transformando um padrão de organização de serviço em uma outra coisa que pode ser tudo, mas não uma equipe de Saúde da Família. Uma modelo que não sabemos ao certo o que é e quais resultados práticos ele apresenta. Dessas duas novas formas de organização do processo de trabalho na atenção básica, lista de pacientes e acesso avançado, não falo como doutor em Saúde Coletiva, mas como um profissional de saúde que tem mais de 20 anos de trabalho dentro de um posto de saúde e que vê essas alterações começarem a acontecer no próprio município em que trabalho diariamente. O tal lugar de fala, tão na moda hoje em dia, é o de quem vê, de quem sente e de quem percebe sobre o chão do posto de saúde uma outra atenção básica se organizar. As dificuldades de acesso aos pacientes classificados como “não crônicos” (quem não é diabético, quem não é hipertenso etc) não serão superadas indo ao outro extremo, principalmente sem planejamento e dimensionamento, tão fundamentais no campo a saúde. 

Rememoro aqui o conceito do filósofo e cientista político italiano Antônio Gramci. Em Gramsci, para um momento especifico da Itália da década de 1920, de profunda crise política do sistema burguês da época, caracterizou a conflito vivido quando dois projetos antagônicos, no caso do Partido Socialista e o Partido Liberal, duas perspectivas políticas, duas forças sociais claras e distintas, com pretensões de poder, não conseguem se sobrepor diante da paralisia do estado, não conseguem ter hegemonia sobre o outro, há uma situação que o autor intitulou de empate catastrófico ou equilíbrio catastrófico. Uma situação de impasse político que pode levar a um desempate ou ao bizarro. 

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Voltando para o campo da saúde, e fazendo uma analogia com o parágrafo anterior, quando nem se substituiu o modelo com as concepções originarias do Programa de Saúde da Família nem se aboliu por completo o PSF minguando seu financiamento, mas ficamos no meio do caminho com a lista de pacientes e o acesso avançado.

Saúde pública não se faz na base do voluntarismo ou do improviso, mas com planejamento, evidências, investimentos e objetivos claros, pelo menos se equidade ainda é importante no SUS.

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