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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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A literatura não deve olhar apenas para seu umbigo, mas ser uma ponte entre os homens

O papel e a importância da literatura está bem além da literatura

(Foto: Marcello Casal/ Ag. Brasil)
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No artigo Que é a escrita – inserto na coletânea de Barthes, traduzida e publicada no Brasil, com o título, O grau zero da escrita – Roland Barthes esmiúça seu conceito sobre a morte do autor, operando sobre a diferença dos registros da língua e do signo literário. A morte do autor é um conceito central na obra de Barthes, que é um dos principais ideólogos da literatura da França na década de 60.

A filosofia estava em ebulição, estava se saindo de uma visão imanentista marxista do mundo (na qual se o sujeito não ocupava uma posição central, ele não era dissolvido), para outras formas de ontologia, nas quais o Homem perdia sua centralidade. Esta revolução foi tão visceral que Levy Strauss pôde afirmar que “o objetivo das ciências humanas não é constituir o homem, mas dissolvê-lo”. Um aforismo tão radical quanto o de Marx, na tese XI sobre Feuerbach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é revolucioná-lo”. A mescla entre fenomenologia e estruturalismo, que se convencionou chamar de pós-estruturalismo, ia muito além disto. Ele adquire a forma de um movimento que deseja atuar sobre a renovação estruturalista da linguagem, em direção à eventual dissolução seja da noção de subjetividade, seja das categorias estruturais universais.

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Não é mais o homem como sujeito consciente que pensa, age e fala, mas sim a linguística inconsciente que determina todo o pensamento social, ação e discurso. Com os três autores retromencionados cria-se um antissubjetivismo visceral. Há uma relação do conceito da morte do autor com a morte do homem em geral (não física, nem literal, é óbvio), a partir da ideia de perda de centralidade da subjetividade. Se antes todas as noções literárias partiam da ideia da centralidade do autor, com a morte do autor toda a nova crítica tem que se basear nos anticonceitos da centralidade desta ausência.

Isto leva uma separação entre os registros de língua e de signo, a literatura não seria uma função da língua, mas do registro do signo, que é um outro, que tenta não desvendar o mundo mas ser uma fotografia, uma alegoria, mesmo um mito de um mundo cuja função desta estrutura não é defini-lo, mas enunciá-lo:

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(…) sabe-se que a língua é um corpo de prescrições, de hábitos, comum a todos os escritores de uma época. Isto quer dizer que a língua é como uma Natureza, que passa inteiramente através da palavra do escritor, sem no entanto dar-lhe nenhuma forma, fora da qual somente começa a se depositar a densidade de um verbo solitário. (Barthes , 2004, p. 9).

Barthes, que não é imanentista, muito menos vê uma função formadora da natureza, desmitifica a função da língua. Língua seria um substrato no qual a literatura está imersa, mas no qual ela não se realiza. Ela é um lugar-comum que não pode explicar o teorizar o fazer literário. O signo literário é um outro e uma outra função, que não se encontra no mundo dos significantes linguísticos, mas do uso do signo como um outro, como uma outra natureza não verbal e não ligada a uma mimese da natureza.

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Barthes explica:

É muito menos uma provisão de materiais do que um horizonte, isto é, ao mesmo tempo um limite e uma estação; numa palavra, a extensão tranquilizadora de uma economia. O escritor nada retira dela, literalmente: a língua é antes para ele como uma linha cuja transgressão designará uma sobrenatureza da linguagem: é a área de uma ação, a definição e a espera de um possível. Não é lugar de um engajamento social, mas apenas um reflexo sem escolha, a propriedade indivisa dos homens e não dos escritores. (Barthes, 2004, p. 9-10).

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Assim, de uma só vez ele retira a literatura do registro de um fenômeno social interativo linguístico e a insere numa fazer não natural, como o predicado do signo e não da língua, que deve ser estudada à parte. A língua é um processo social inato do qual nenhum homem pode escapar. A literatura é um outro, que não é seu reflexo ou espelhamento. A literatura é uma transgressão da linguagem, um fazer constituído à parte, que parte do signo, desviado do seu leito de Procusto. O escritor é um outro, não apenas um homem. Se o pós-estruturalismo propõe a morte do autor, é uma contradição mantém o escritor como o operador desta transgressão e deste outro fazer, ofício à parte, que não está relacionado ao mundo da natureza e que já se contrapõe então a qualquer teoria mimética do texto. O texto é uma outra operação, não natural.

Assim, precisamos voltar para o conceito de morte do autor para fazer a costura da crítica deste texto. O conceito de morte do autor confunde-se o autor biográfico ou sociológico, o que marca um novo cânon histórico para a literatura, no sentido hermenêutico da intenção ou intencionalidade. Se o autor morreu, não pode ser sua intencionalidade o marco interpretativo. Para Barthes não se encontra nada no texto senão aquilo que ele nos diz, não existe nenhum critério prévio de validade de interpretação (embora isto se choque com a própria crítica de Barthes de diferenciação entre língua x signo, que em si já é um critério de crítica e validação da crítica).

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Para Barthes não é pertinente analisar a relação entre intenção do autor e resultado (aquilo que o autor quis dizer numa sequência de sentenças não é necessariamente o sentido depreendido da obra). Não existiria assim uma lógica necessária entre o sentido da obra e a intenção do autor. A obra tem sua vida própria, assim a significação total de sua obra não pode ser definida pela primeira recepção, mas sim, depois que escapa do seu contexto de origem, o que ela acumulará no seu percurso de recepção e crítica.

Esta nova hermenêutica tem pontos novos e importantes para a crítica, mas tem aporias. Efetivamente, não se pode confundir a obra com o autor, nem reduzi-la a um processo sociológico que deva ser analisado como o 18 Brumário de Luis Bonaparte de Marx, ou o Príncipe de Maquiavel, que, antes de serem obras estéticas, literárias, são obras cujo significado principal tem que ser buscado no conceitual filosófico e sociológico. Sim, a obra de arte é um outro, com seu campo semântico próprio, e não pode ser reduzida somente a intenção do autor, a sua complexa teia de relações sociais, ao seu psiquismo, ou mesmo à primeira recepção da crítica.De outro lado, a obra é sempre a marca de suas ausências, se ela não pode ser reduzida a uma análise biografista ou psíquica, ou a uma sociologia da obra literária, é impossível fazer crítica literária olhando só para a obra. A crítica que se pretende autônoma, na verdade, perfaz seu percurso necessariamente pegando de empréstimo conhecimentos de outros campos. Não se pode reduzir a obra de Kafka a sua psiquê, mas conhecê-la joga mais luz sobre O processo, A metamorfose ou O castelo. É simplesmente impossível fazer um estudo de um bom romance psicológico sem conhecer minimamente o beabá das obras de Freud, não há como entender O alienista de Machado de Assis, sem saber sobre os pesados debates sobre o inconsciente, travados no final do século XIX e início do século XX.

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A ideia da autonomia da obra literária não pode transformar o livro num objeto mágico e fetichizado que não tem ligação com o mundo. A principal teoria da teoria pós estruturalista é que, ao cortar todos os laços imanentistas sobre os quais o livro é criado, ele se transforma realmente num objeto mitológico, nascido como Atena da cabeça de Zeus.

Voltando ao texto em digressão, vemos estas contradições na própria aplicação de Barthes de seus conceitos quando quer delimitar o espaço do fazer literária em confronto com a língua natural e inata.

A língua está aquém da literatura. O estilo está quase além: imagens, um fluir, um léxico nascem do corpo e do passado do escritor e se tornam, pouco a pouco, os automatismos mesmos da sua arte. Assim, sob o nome de estilo, forma-se uma linguagem autárquica que mergulha apenas na mitologia pessoal e secreta do autor, nesta hipofísica da palavra, onde se forma o primeiro par das palavras e das coisas, onde se instalam, de uma vez por todas os grandes temas verbais de sua existência. Seja qual for seu refinamento, o estilo tem sempre algo de bruto, ele é uma forma sem destino, é o produto de um surto, não de uma intenção, é como uma dimensão vertical e solitária do pensamento. Suas referências estão no nível de uma biologia ou de um passado, não de uma História: ele é “coisa” do escritor. Seu esplendor e sua prisão, é a sua solidão. (Barthes, 2004, p. 9-10).

Este trecho de Barthes é significativo porque, se reparamos bem, Barthes cai em algumas aporias aqui. Se seguirmos seu fio de pensamento, primeiro ele retira a literatura e o signo do registro natural da língua. Depois ele estrutura o escritor como um outro. A questão é que se o escritor é o outro que se alça acima da língua, estruturando o signo no fazer literário, e acima do acidental da natureza humana, como chegar a não intencionalidade na morte do escritor? Para isto ele vai proceder a alguns malabarismos lógicos. Primeiro ele separa a literatura da língua com o conceito de estilo, que seria uma espécie de autarquia, um automatismo, um fluir que vem do passado e do corpo do escritor. Óbvio que ao colocar o termo passado, o imanetismo e o subjetivismo que foram expulsos pela porta da frente da teoria, voltam calados, sub-repticiamente pela janela entreaberta ou pela porta dos fundos. Não é possível um passado sem história ou sem subjetividade. Barthes pretende superar isto com a palavra mitologia, que seria uma relação secreta e única, um par das palavras e das coisas do escritor (autor), que parece um morto bem-vivo, talvez um defunto-autor como o de Machado de Assis.

Para não retomar o imanetismo e a intencionalidade, para que o autor sujeito não retorne, Barthes diz que a literatura é produto de um estilo, não de uma intenção, é que estilo é um bruto, que está no nível de um passado, mas não de uma História, que está quase no nível da biologia.

Este pedaço é extremamente importante, porque a aporia aqui é bem expressa. Como retirar um passado de uma “não-História”?

Existiria um passado a-histórico impossível de ser conceituado ou perscrutado de maneira não imanentista? Esta ilogicidade aproxima, na sua irracionalidade a crítica literária à crítica irracional fascista de todo materialismo e de todo práxis. Antes que alguém leia o que não está escrito, o texto não diz em lugar nenhum que Barthes seja ou dialogue com o fascismo, apenas deixo explícito que o ahistoricismo dialoga com uma construção antipráxis e anti-iluminista da qual o fascismo foi o exemplo extremo, vendo qualquer forma de historicização, de práxis, de engajamento histórico como “materialismo judeu”, dissolvendo a história na mitologia do sangue e da raça. Não é a intenção de Barthes, mas vale realçar aqui que a crítica anti-historicista, mesmo na sua gênese francesa, tem no irracionalismo um nascimento controverso e reacionário, não progressista. Heidegger não serve ao Führer só como reitor de uma universidade alemã, serve antes e depois como inimigo aberto da dialética e das lógicas imanentistas e da práxis.

Não é uma aporia qualquer e Barthes se incomoda e trata dela, e resolve vencê-la com a palavra mitologia, o que faz basicamente ir para o reino da irracionalidade a análise de um passado mitológico sem História (a grafia maiúscula copia a intenção de Barthes).

A segunda grande aporia é que, ao retirar a escrita literária do reino da língua, que estaria absorto numa natureza indivisa subjacente a todos, e alçar o escritor (autor) num nível acima dos meros falantes, para manter a ideia da não subjetividade da morte do autor, Barthes não pensa duas vezes para remeter este estilo numa confusa “biologia” do autor, de uma coisa, que nos remete à coisa em si incognoscível de Kant, que existe, mas não pode ser definida.

O texto continua neste mesmo sentido:

(…) Indiferente e transparente à sociedade, andamento fechado da pessoa, não é de forma alguma o produto de uma escolha, de uma reflexão sobre a Literatura. É a parte privada do ritual, ergue-se a partir das profundezas míticas do escritor, e se expande para fora de sua responsabilidade. É a voz decorativa de uma carne desconhecida e secreta: funciona à maneira de uma Necessidade, como se nessa espécie de surto floral, o estilo não fosse senão o termo de uma metamorfose cega e obstinada, provinda de uma metamorfose da carne e do mundo. O estilo não é propriamente um fenômeno de ordem germinativa, é a transmutação de um Humor. (Barthes, 2004, p. 9-10).

Neste parágrafo temos a chave para discutir algumas contradições insolúveis da teoria barthesiana. Uma leitura descuidada, ou que tivesse como intenção apenas fazer profissão de fé do pós-estruturalismo e da morte do autor, a única coisa que poderia fazer é reforçar como críveis estas aporias. Mas, ignorando-as ou não, elas continuaram aí. Dizer que o texto não é uma escolha ou uma reflexão, mas a parte privada de um ritual, segue no cortejo da ideia de uma mitologia do signo, mas não retira de forma nenhuma a presença ou até a onipresença do autor morto, nosso defunto autor.

Não há rito privado de mitologia sem sujeito, se é privado, obviamente, se refere ao rito de alguém, que deve permanecer uma ausência (às vezes a fórmula se mantém como um ritual, como se dita uma palavra mágica, como ausência). Basta neste ritual sacro mitológico privado dizer a palavra ausente que o sacerdote do ritual desaparece. Depois, num estilo bem metafórico e estético, mais próximo da poesia que da crítica, se firma a ideia a partir de algumas alegorias belas, sem dúvida, mas que pecam pela plausibilidade.

Não é possível pensar numa metamorfose da carne e do mundo se tanto a subjetiva (o autor, a carne) quanto o mundo (imanentismo) estão ausentes. A palavra Humor (com maiúscula), como se fora uma predisposição, um estado de espírito, mais ressalta a presença e até a onipresença deste autor que sua morte. Se é o Humor que vai salvar o estilo e remetê-lo ao grau de literatura, sob a condição de elevação do signo, como se salva este Humor sem subjetividade? Há algo mais subjetivo e humano que o Humor?

Usamos um trecho do artigo de Roland Barthes, O que é a escrita, da coletânea O grau zero da escrita, para problematizarmos algumas das aporias no conceito de morte do autor. Obviamente que é apenas uma resenha crítica que não tem a pretensão de fazer uma mergulho profundo numa teoria tão complexa, mas que pretende pinçar algumas aporias e discuti-las, usando trechos do próprio Roland Barthes.

Ressaltamos que a palavra ou a ideia de Mitologia, colocada como um trampolim para escudar a ideia de morte do autor, tem contradições insanáveis. A mitologia do signo e seus ritos, embora objetive realocar a crítica da intenção do autor (o que é louvável no sentido de nos retirar de um psiquismo ou uma sociologia stricto sensu da literatura) no texto, peca no sentido de tentar apagar todo imanentismo e subjetividade, porque seria a crítica de uma literatura de ninguém, de um sujeito amorfo, que de fato não existe.

Sim, o texto é um em si, mas seus significados só podem ser entendidos com vários enlaces, entre eles está, de forma não determinista, a própria personalidade do autor que tem uma história, e esta história que recoloca a obra no mundo. É uma tarefa, como a que Marx fez com a ideologia alemã, de reassentar o mundo sobre os pés, e não sobre a cabeça, senão vira a crítica da crítica crítica, e gira em falso, já que as ferramentas para sua cognoscibilidade não seriam deste mundo.

Não há como reduzir a crítica literária a um psiquismo, ou a uma crítica sociológica determinista, que inclusive confunde fazer literário com discurso político, ou realidade e alegoria. Obviamente, o texto de Barthes tem a qualidade de ser uma espada contra estas formas caricaturais de crítica literária. De outro lado, se o objeto literário tem seu campo autônomo de crítica, sua episteme e suas formas próprias para ser dissecado e analisando, obviamente ele não vive num mundo à parte, fetichizado, num ritual de mitologias nos quais, ao tentarmos entender duas dimensões, não tenhamos que buscar o auxílio de conhecimentos de História, Filosofia, Psicanálise, dentre outras ciências, sem as quais basicamente nossa crítica teria poucos instrumentos, nenhum bisturi para perfurar a carne do texto e operar seu dimensionamento, recolocando-o no mundo real.

A contribuição de Barthes, ao defender a autonomia do texto literário e uma episteme própria de literatura, é fundamental para a renovação dos estudos literários. Efetivamente, o texto literário tem uma autonomia e um funcionamento próprio, cuja episteme não deve ser absorvida por outras áreas de conhecimento. Todavia, ao retirar da práxis a determinação de epifenômenos da literatura o texto literário vira um em si quase incognoscível, cujas regras de interpretação seriam tão próprias que constituiriam um mundo à parte, e não uma superestrutura rica, mas superestrutura do mundo real, condicionada completamente pela história e pela práxis das estruturas e cujas validações estariam sempre ligadas a uma crítica que se fecha em sua própria realidade, não estando fundando numa interconexão com o mundo.

A validade e a permanência do Quixote não está somente nas estritas linhas de sua estrutura literária, está na imensa riqueza humana de sua crítica, que, 400 anos depois, continuam a apontar para tipos humanos que não estão somente na Mancha, mas podem ser encontrados em Paris, em Montevidéu, nas universidades, na Favela da Maré ou em Belford, Roxo. A complexidade dos seus tipos humanos fundaram paradigmas de comportamento que se espraiam para áreas de conhecimento com a Ciência Social, a Psicanálise ou a Psicologia. A mesma coisa se pode dizer dos tipos humanos de Shakespeare ou do romance psicológico de Kafka. O papel e a importância da literatura está bem além da literatura. Dostoievski é tão fundador da psicanálise quanto Freud ou Nietzsche. Seus Notas do subsolo, Crime e castigo, e seu Irmãos Karamazov vão influenciar o “homem do ressentimento” de Nietzche, que será a inspiração do Freud para o Id, o Ego, a pulsão que fundam a psicanálise.

A ideia da morte do escritor segue na trilha do questionamento do humanismo em voga no pós-estruturalismo. O homem perde sua função na estrutura, já que as grandes narrativas não dão mais conta de criticar a realidade. O escritor, inserido nesta escrita mitológica, suspeitamos, não morre, porque se eleva a um grau de escrita que se insere num ato quase mitológico, e perde sua função de ator social interconectado e subsumido a seu tempo. Barthes é fundamental para a renovação e o entendimento da escrita, mas a literatura não pode ser restrita a este ato mitológico que é um outro quase incognoscível, com sua autonomia e sua episteme, ela se insere numa práxis social que só pode ser entendida e criticada num contexto que vai muito além da compreensão dos cânones literários.

A literatura não é um fim em si. Um jogo de palavras entre iniciados de uma seita obscura que fala para dentro e exclui aqueles que não discutem seus cânones, os antigos, da chamada literatura clássica, ou os novos, que ao trocar regras antigas e caducas, por novas, que pareceriam assim transcender o antigo fazer literário, acabam por sua vez em refundar a literatura como cânon, só mudando seus sacerdotes. A literatura tem que comunicar para além da discussão de seus fins metalinguísticos. Fundada no mundo dos homens, ela tem que seguir a metáfora destas palavras poéticas de Pablo Neruda:

Vivi na desordem de pátrias não nascidas,

em colônias que ainda não sabiam nascer,

com bandeiras inéditas que se ensanguentariam.

Vivi na fogueira de povos malferidos

comendo o pão estranho em meu padecimento. (Pablo Neruda in Canto Geral.)

A poesia, o romance, a crônica, a literatura em geral tem que ser uma elo entre os homens, este sujeito que é uma ponte, uma corda suspensa entre dois abismos, o nascer, o morrer rumo à aniquilação ou ao desconhecido. Sua função não deve ser relegada a uma crítica misantropa, que trocou os salões literários pelas academias universitárias ou pelos clubes fechados em que a poesia e o texto literário é algo vertido para poucos.

A literatura – que é um fazer que tem uma relativa autonomia e seu fazer próprio, sua episteme – tem que permanecer nesta torção de um fazer entre homens, de uma práxis social que não deve se bastar a si mesma, mas cumprir a função revolucionária de construir o Übermensch nietzschiano, o ser construído para além da moral de um tempo de castrações e dicotomias, de tempo fraturado alienado ao trabalho compulsório, deve permanecer uma fogueira que retém o calor disperso na sociedade fluida do imperialismo capitalista, um fazer que em lugar da frieza de analisar um pôs cânon seja o caudal crítico revolucionário do desconstruir os grilhões para a revolução permanente da dialética, em que Marx observava de que tudo que é sólido, desmancha no ar.

Se a literatura perde a função engajada de comunicar a revolta dos homens e mulheres de seu tempo, de plasmar e dizer, quando se ergue um silêncio obsequioso ao poder constituído, que se reduz a um jogo entre iniciados dos que se auto-elogiam por seus pseudodotes, que só podem ser descobertos por seus iguais, e excluem a crítica e a participação popular, ela volta a se isolar numa fétida torre de cristal, na qual todos aqueles que não compreendem o tolo jogo de enigmas estão condenados a estar de fora.

Na verdade, o que fica de fora é a literatura, de fora da vida, da história, da práxis.

Referências bibliográficas

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______________, 2015; Notas de Literatura I; Tradução Jorge de Almeida, Editora 34, São Paulo, titulo original Noten zur Literatur, 176 pp.

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ADORNO, Thedor e HORKHEIMER, Max; 1995; Dialética do Esclarecimento; Tradução Guido Antônio de Almeida; Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro,352 pp.

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BARTHES, Roland, O grau zero da escrita, 2004, Mario Laranjeiras, (Trad.), Martins Fontes Editora, São Paulo, 226 pp.

BENJAMIN, Walter; SCHÖTER, Detlev; BUCK-MORSS, Susan; HANSE, Miriam; 2012; Benjamin e a obra de arte, técnica, imagem, percepção; tradução de Marijane Lisboa e Vera Ribeiro; Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 256 pp.

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GILLOT-ASSAYAG, Laure. Art militant, art engagé, art de propagande : Un même combat?, 2016. Disponível em: < http://www.implications-philosophiques.org/langage-et-esthetique/implications-esthetiques/ art-militant-art-engage-art-de-propagande-un-meme-combat/>. Acesso em 19/10/2021.

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