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Diana Johnstone

Escritora norte-americana e analista internacional em Paris.

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A política externa dos EUA é um esporte cruel

A lista de países alvos do bear baiting é longa, mas a Rússia destaca-se como o principal exemplo de constante assédio. E isso não é um acidente

Joe Biden e Guerra na Ucrânia (Foto: Reuters)
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Traduzido por Éric Graciano Gaúna, formado em Letras-Alemão pela USP e pós-graduando em Filosofia pela UNICAMP. Escritor, tradutor e professor de alemão e inglês

Nos tempos da primeira rainha Elizabeth, os círculos reais britânicos apreciavam assistir cães ferozes lançados a atormentar um urso cativo como forma de entretenimento. O urso não fizera mal algum a ninguém, mas os cães eram treinados para provocar a besta aprisionada e incitá-la a reagir. O sangue correndo dos animais eriçados deleitava os espectadores. 

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A prática cruel foi banida há tempos como desumana.

Hoje, mesmo assim, uma versão de bear baiting está sendo praticada diariamente em gigantesca escala internacional contra nações inteiras. Essa prática leva o nome de política externa dos Estados Unidos. Tornou-se prática regular do absurdo clube esportivo internacional chamado OTAN.

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Líderes dos EUA, seguros de sua arrogância como “nação indispensável”, não têm mais respeito por outros países do que os elisabetanos tinham pelos animais que atormentavam. A lista de países alvos do bear baiting é longa, mas a Rússia destaca-se como o principal exemplo de constante assédio. E isso não é um acidente. Este baiting é deliberadamente e elaboradamente planejado. 

Como evidência, chamo a atenção para um relatório de 2019 da RAND Corporation ao Chefe de Estado Maior do Exército dos EUA, intitulado “Estender a Rússia”. Na verdade, o estudo da RAND Corporation é, em si, razoavelmente cauteloso em suas recomendações e alertas de que muitos de seus truques pérfidos poderiam não funcionar. No entanto, considero a mera existência desse relatório escandalosa por si só, não tanto pelo seu conteúdo, mas pelo fato de que é para isso que o Pentágono paga seus mais altos intelectuais: para descobrir maneiras de conduzir outras nações a distúrbios que os líderes dos EUA esperam explorar.

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A linha oficial dos EUA é a de que o Kremlin ameaça a Europa com seu expansionismo agressivo, mas quando estrategistas falam entre si, a história é muito diferente. O objetivo é valer-se de sanções, propaganda e outras medidas para provocar a Rússia a tomar exatamente o tipo de medidas negativas (“superextensão”) que os EUA podem explorar em detrimento da Rússia.

O estudo da RAND explica suas metas: 

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“Nós examinamos um vasto leque de medidas não violentas que poderiam explorar as vulnerabilidades e ansiedades reais da Rússia como modo de pressionar o fator militar, econômico e a postura política do regime dentro e fora do país. Os passos que examinamos não têm nem a defesa nem a dissuasão como propósito principal, ainda que possam contribuir para ambas. Pelo contrário, estes passos são concebidos como elementos em uma campanha planejada para desbalancear o adversário, conduzindo a Rússia a competir em domínios ou regiões nos quais os EUA detém vantagem competitiva, levando a Rússia a superestender a si mesma militarmente ou economicamente, ou ainda causando uma perda de prestígio doméstico e/ou internacional do regime”. 

Claramente, nos círculos de poder dos EUA, isso é considerado comportamento “normal”, assim como o assédio é o comportamento normal para o valentão da escola, e operações secretas são normais para agentes corruptos do FBI.

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A descrição cabe perfeitamente às operações dos EUA na Ucrânia, cujas intenções são as de “explorar as vulnerabilidades e ansiedades da Rússia", avançando uma aliança militar hostil até sua soleira, ao mesmo tempo em que descrevem as ações totalmente previsíveis da Rússia como agressão gratuita. Diplomacia envolve o entendimento da posição da outra parte. Contudo, o bear baiting verbal requer total recusa de entender o outro, assim como a constante e deliberada interpretação falsa de qualquer coisa que a outra parte diga ou faça.

O que é verdadeiramente diabólico é que, enquanto acusam constantemente o “urso” russo de conspirar uma expansão, a política toda é direcionada a forçá-lo a expandir! Porque aí poderemos emitir sanções, aumentar o orçamento do Pentágono em alguns números para cima e apertar o nó na coleira do Consórcio de Proteção da OTAN ao redor de nossos preciosos “aliados” europeus.

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Por toda uma geração, líderes russos fizeram esforços extraordinários para construir uma parceria pacífica com o “ocidente”, institucionalizado enquanto União Europeia e, acima de tudo, como OTAN. Eles verdadeiramente acreditaram que o fim de uma Guerra Fria artificial poderia produzir uma vizinhança europeia pacífica. Mas os líderes arrogantes dos EUA, apesar do conselho oposto de seus melhores experts, recusaram-se a tratar a Rússia como a grande nação que é, preferindo tratá-la como um urso moribundo em um circo. 

A expansão da OTAN foi uma forma de bear baiting, a maneira clara de transformar um amigo potencial em um inimigo. Esse foi o caminho escolhido pelo ex-presidente norte-americano Bill Clinton e as administrações que seguiram nos EUA. Moscou havia aceitado a independência dos anteriores membros da União Soviética. O bear baiting envolveu acusar Moscou constantemente de conspirar para tentar tomá-las de volta. 

A fronteira da Rússia

“Ucrânia” é uma palavra que significa “fronteiras”, essencialmente fronteiras entre a Rússia e territórios ocidentais, que foram por vezes terras da Polônia, da Lituânia ou da dinastia dos Habsburgo. Como parte da URSS, a Ucrânia foi expandida para incluir largas parcelas de ambos os lados. A história criou identidades muito contrastantes em ambas as extremidades, com o resultado de que a nação independente da Ucrânia, que veio à existência apenas em 1991, foi profundamente dividida desde o início. E desde o início, as estratégias de Washington — em conluio com uma vasta diáspora para os EUA e para o Canadá, hiperativamente anticomunista e anti-Rússia — maquinaram para usar a amargura das divisões ucranianas no sentido de enfraquecer primeiramente a URSS e depois a Rússia. Bilhões de dólares foram investidos para “fortalecer a democracia”, ou seja: o lado pró-ocidente da Ucrânia posto contra o leste semi-russo.

O golpe de 2014, apoiado pelos EUA e que derrubou o presidente Viktor Yanukovych, solidamente apoiado pelo lado ocidental do país, trouxe ao poder forças pró-Ocidente determinadas a inserir a Ucrânia na OTAN. Por parte de tais forças, a designação da Rússia como inimigo central tornara-se ainda mais flagrante.

Como a população da Crimeia nunca quis fazer parte da Ucrânia, o perigo foi revertido com a organização de um referendo, no qual uma maioria acachapante na Crimeia votou por retornar à Rússia, da qual a região fora apartada por um autocrático Khrushchov em 1954. Propagandistas ocidentais denunciaram incansavelmente este ato de autodeterminação como uma “invasão russa”, prenunciando um programa de conquista militar russa de seus vizinhos — uma fantasia sem suporte algum em fatos ou motivações.

Abismados com o golpe que derrubava o presidente que elegeram e com os nacionalistas que ameaçavam tornar ilegal a língua russa por eles falada, as pessoas das províncias orientais de Donetsk e Lugansk declararam sua independência.

A Rússia não apoiou essa movimentação, mas sim o acordo de Minsk, assinado em fevereiro de 2015, endossado pela resolução do Conselho de Segurança da ONU. A essência do acordo era preservar a integridade territorial da Ucrânia pela via de um processo de federalização, que garantiria novamente a autonomia local às repúblicas separatistas.

O acordo de Minsk iniciou alguns passos para tentar acabar com a crise interna da Ucrânia. Primeiro, a Ucrânia deveria adotar imediatamente uma lei garantindo autogoverno às regiões do leste (em março de 2015). Em seguida, Kiev negociaria com os territórios orientais acerca dos termos para as eleições locais a serem asseguradas naquele ano, sob a supervisão da OSCE (Organização para Segurança e Cooperação na Europa). Por último, Kiev implementaria uma reforma constitucional para garantir o direito das áreas orientais. Após as eleições, Kiev tomaria o controle total de Donetsk e Lugansk, incluindo as fronteiras com a Rússia. Uma anistia geral se estenderia a soldados de ambos os lados.

Contudo, ainda que tenha assinado o acordo, Kiev jamais implementou qualquer um desses pontos e recusou-se a negociar com os rebeldes do leste. Sob o chamado Acordo da Normandia, era esperado que a França e a Alemanha colocassem pressão sobre Kiev para aceitar tais termos pacíficos, mas nada aconteceu. Ao invés disso, o Ocidente acusou a Rússia de fracasso na implementação do acordo, o que não faz sentido algum, visto que as obrigações recaiam sobre Kiev, e não sobre Moscou. Os oficiais de Kiev reiteraram vez após vez a sua recusa em negociar com os rebeldes, enquanto exigiam mais e mais armamentos dos poderes da OTAN para lidar com os problemas de suas próprias maneiras.

Neste decurso, grandes parcelas da Duma russa e da opinião pública expressaram repetidamente suas preocupações pela população falante do russo nas províncias do leste, que vêm sofrendo privações e ataques militares do governo central ucraniano por oito anos. E essa preocupação é naturalmente interpretada no Ocidente como uma retomada do ímpeto de Hitler por conquistar países vizinhos. Entretanto, como é frequente, a inevitável analogia com Hitler é sem fundamento algum. Em primeiro lugar, a Rússia é grande demais para que precise conquistar Lebensraum.

Vocês querem um inimigo? Agora vocês o têm.

A Alemanha encontrou a fórmula perfeita para as relações ocidentais com a Rússia: você é ou não um “Putinversteher”, alguém que “entende Putin” [a Putin understander]? Com “Putin”, eles querem dizer “Rússia”, já que o estratagema padrão da propaganda ocidental trata de personificar o país alvo com o nome de seu presidente, Vladimir Putin, necessariamente um autocrata ditatorial. Se você “tem entendimento com Putin”, ou com a Rússia, então você está sob profunda suspeita de deslealdade com o Ocidente. Então, vamos ter certeza de que nós, todos agora unidos, NÃO TEMOS ENTENDIMENTO com a Rússia!

Os líderes russos alegam sentirem-se inseguros por conta de membros de uma imensa aliança hostil, conduzindo manobras militares regulares à sua soleira? Eles sentem-se incomodados com mísseis nucleares apontados para seu território por Estados adjacentes, membros da OTAN? Por quê? Isso é só paranoia, ou sinal de artimanha, intenções de agressão. Não há nada a entender.

Assim, o Ocidente tratou a Rússia como um urso aprisionado. E o que ele recebe de volta é um adversário militarmente poderoso, armado nuclearmente e conduzido por pessoas vastamente mais cuidadosas e inteligentes do que os políticos medíocres em seus cargos em Washington, Londres e em alguns outros lugares.

O presidente Joe Biden e seu deep state nunca quiseram uma resolução pacífica na Ucrânia, porque uma Ucrânia turbulenta age como permanente barreira entre a Rússia e a Europa Oriental, garantindo aos EUA o controle sobre esta última. Eles passaram anos tratando a Rússia como adversário, e a Rússia está agora tirando a inevitável conclusão de que o Ocidente irá aceitá-la apenas como adversário. A paciência chegou ao fim. E isso é uma virada.

Primeira reação: o Ocidente irá punir o urso com sanções! A Alemanha está barrando as certificações do gasoduto Nord Stream 2. A Alemanha, assim, recusa-se a comprar o gás russo que ela necessita agora para tentar assegurar que a Rússia não poderá cortar o gás que ela precisará em algum momento futuro. Que belo truque, não? Enquanto isso, com a carência crescente do gás e seus preços em escalada, a Rússia não terá problema algum em vender seu gás em algum lugar na Ásia. 

Quando “nossos valores” incluem a recusa em entender, não há limite para quanto podemos fracassar em entender.

To be continued.

[1] Diana Johnstone, nascida em 1934 nos EUA e residente atualmente na França, é bacharel em Estudos Russos e Ph.D. em Literatura Francesa pela Universidade de Minnesota, EUA. Foi editora do semanário americano In These Times de 1979 a 1990, e oficial de imprensa do Grupo dos Verdes no Parlamento Europeu de 1989 a 1996. Em seu último livro, Circle in the Darkness: Memoirs of a World Watcher (Clarity Press, 2020), ela reconta episódios da transformação do Partido Verde da Alemanha em um partido de guerra. Algumas outras de suas contribuições disponíveis são From MAD to Madness: Inside Pentagon Nuclear War Planning (Clarity Press, 2017) e ainda dois livro traduzido ao português, Cruzada de Cegos (Lisboa: Caminho, 2006) e Hillary Clinton, Rainha do Caos (Lisboa: Página a Página, 2016).

[2] [N.T.] Bear baiting, como explicará a autora adiante, seria uma “rinha de urso”, valendo-se de cães e de um urso cativo. Contudo, é necessário indicar que o termo verbal baiting é originalmente da caça e da pesca, remetendo ao ato de lançar uma isca ou a um ato engenhoso empregado para forçar a presa a agir conforme o esperado. O urso é ainda o animal emblemático da Rússia, da mesma maneira que a águia o é para os EUA, o touro para a Espanha, a onça para o Brasil, ou o cão para Israel

[3] [N.T.] A RAND Corporation é um dos principais Think Tanks norte-americanos envolvidos na interferência direta ou indireta dos EUA em governos e golpes de Estado na atualidade. Foi criado em 1948 e tem, até hoje, vinculação imediata com o complexo industrial militar norte-americano e o Departamento de Estado dos EUA. Dentre tais Think Tanks do imperialismo — como a National Endowment for Democracy (NED) e a United States Agency for International Development (USAID) — este é o mais influente e o que recebe o maior financiamento (tendo recebido mais de US$1 bilhão apenas entre 2014 e 2019).

[4] [N.T.] Em inglês, “Extending Russia”. O artigo pode ser acessado em <https://bit.ly/3vG8nqR>.

[5] [N.T.] Realizando um jogo de palavras, a autora utiliza aqui o termo “Protection Racket”. Racket geralmente designa um esquema criminoso, um grande scheme — um “esquema” extorsivo, um “consórcio” ilegal e organizado que também frequentemente oferece formas de “proteção” aos extorquidos; é como se passou a designar, por exemplo, certos modos e organizações mafiosas norte-americanas.

[6] [N.T] O mencionado referendo teve 95% de votos a favor.

[7] [N.T.] Segundo a revista Reuters, os EUA já forneceram o equivalente a US$2,5 bilhões em armamentos ao governo ucraniano desde 2014. Também na mesma revista, verifica-se que, em 26/02, três dias após a data de publicação original deste artigo e dois após o início da operação russa na Ucrânia, o chanceler alemão Scholz elevou o orçamento militar de seu país (a €100 bilhões, o dobro de 2021) como resposta à Rússia. No Al Jazeera, por exemplo, constata-se ainda que Scholz decidiu romper com a política alemã de não enviar armas à Ucrânia (e a nenhum outro país sob conflito) e determinou o envio de 1000 peças de artilharia antitanque e 500 mísseis stinger a Zelensky em Kiev. Em suas palavras, para “proteger a liberdade e a democracia”.  Até o início de fevereiro, verificávamos na Deutsche Welle que o governo ucraniano declarava ter recebido US$1,5 bilhão em armamentos de “parceiros do ocidente”.

[8] [N.T.] Lebensraum é um termo alemão que ganha força ampla com a política de guerra de Hitler, ainda que já se encontrasse presente no imperialismo alemão anterior à sua ascensão. Significando a necessidade da conquista de espaço vital, tratava-se do coração da política externa alemã do período e representava o expansionismo colonial da Alemanha voltado para a própria Europa, em especial por sobre o leste e o povo eslavo.

* Tradução, notas e revisão de Éric G. Gaúna. Publicado originalmente na revista Consortium News em 23/02/2022.

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