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Ramon Brandão

Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

23 artigos

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A reflexão pertence apenas aos intelectuais?

O discurso do intelectual surge como alternativa à incapacidade indisfarçável e já crônica do desinteresse por tudo aquilo que é dito por autoridades do Estado ou por burocratas da política. São pessoas que, cada um à sua maneira, se perguntam: "o que se passa no nosso presente?" ou mesmo: "que diagnóstico poderíamos fazer a partir de nossa perspectiva?

O discurso do intelectual surge como alternativa à incapacidade indisfarçável e já crônica do desinteresse por tudo aquilo que é dito por autoridades do Estado ou por burocratas da política. São pessoas que, cada um à sua maneira, se perguntam: "o que se passa no nosso presente?" ou mesmo: "que diagnóstico poderíamos fazer a partir de nossa perspectiva? (Foto: Ramon Brandão)
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Alguns exageros caricaturais são irresistíveis quando pensamos na relação dos intelectuais com a mídia. Eu apontaria, sobretudo, dois polos: de um lado, estão aqueles – mais vaidosos – que são atraídos pelos holofotes. São como répteis que buscam e necessitam do sol para se aquecerem. Em alguma medida, eles são como os camaleões: se adaptam rapidamente ao ambiente, disparando incansáveis sentenças prontas e frases de efeito relativamente bem construídas sobre diferentes assuntos e acontecimentos. Eles abocanham o espectador sem que ele o perceba. No outro polo estão aqueles que fogem dessa luz, como se a exposição fosse capaz de tornar vulgar o trabalho de toda uma vida.
Entre esses dois polos, no entanto, está nascendo uma terceira figura, menos vaidosa e/ou egoísta e mais preocupada com uma exposição altruísta. São intelectuais que, inconformados com a forma de pensar contemporânea – forma bastante limitada e notavelmente superficial –, se esforçam em tornar públicas algumas perspectivas outras; mais éticas, mais complexas e mais questionadoras sem, para tanto, serem cansativos.

São eles como quaisquer outras pessoas. Não estão acima de ninguém e nem são uma espécie de oráculo (não sei bem o motivo, mas me parece que os intelectuais são vistos dessa maneira pela maioria das pessoas). E enquanto o médico trata das enfermidades e patologias do corpo, o intelectual, por sua vez, trata de questões – também, em muitos casos, patológicas e enfermas – da subjetividade, do pensamento e da moral. O discurso do intelectual surge como alternativa à incapacidade indisfarçável e já crônica do desinteresse por tudo aquilo que é dito por autoridades do Estado ou por burocratas da política. São pessoas que, cada um à sua maneira, se perguntam: "o que se passa no nosso presente?" ou mesmo: "que diagnóstico poderíamos fazer a partir de nossa perspectiva?"; "Quais são os pontos possíveis de transbordamento ou ultrapassagem desses limites atuais?"

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Michel Foucault, filósofo francês, formulou aquilo que chamou de diagnóstico do presente. Tal conceito-tarefa é uma tentativa de fugir, de ultrapassar ou de simplesmente transbordar o circuito de informação que nos bombardeia a todo momento. É a tentativa de combater a propagação de palavras de ordem que, dentre outras coisas, alimentam o mesmo sistema de controle que nos sufoca. Gilles Deleuze, outro filósofo francês, dizia que "informar é fazer circular uma palavra de ordem", e é exatamente isso, portanto, que esse "novo" intelectual busca combater. A informação, na atualidade, não é dotada de nada além dela mesma e a informação que não proporciona algum fragmento de experiência e/ou afeto é, no mínimo, neutralizante. É propagadora de algo que não sabemos ou não conseguimos explicar, mas que reforça o mundo – em seu pior aspecto – tal como ele é.

Saltar, portanto, deste circuito de informação neutralizante para o campo da reflexão que envolve afeto e experiência implica, dentre outras coisas, em fazer perguntas, em questionar e em construir vínculos com o universo que nos rodeia. O diagnóstico do presente consiste, mais claramente, em inventar um outro modo de perceber as relações que construímos com a nossa realidade.

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Aos intelectuais é relativamente fácil elaborar a descrição do que somos e do tempo em que vivemos. Existem os intelectuais que dissecam a crise das instituições e das representações políticas. Outros, porém, falam com desenvoltura, desconstruindo as verdades herdadas por nós ao longo da história, da nossa subjetividade propositalmente empobrecida e do papel da mídia e do consumo na constituição daquilo que somos e pensamos atualmente. Basicamente, provam que nós, que nos achamos livres e dotados de uma individualidade única, somos nada menos que indivíduos "construídos" historicamente para termos gostos, valores e pensamentos específicos (e que todas essas características, que achamos intocáveis, mudam de tempos em tempos). Existem os intelectuais que localizam as estratégias sutis de controle que se instalam na relação que construímos com as instituições, com o Estado, com as pessoas e com nós mesmos. Existem aqueles que, por sua vez, percebem os efeitos perversos do imediatismo nas relações que estabelecemos com o meio ambiente, com a sociedade e, mais uma vez, com o outro e com nós mesmos. Enfim, mesmo com as diferentes perspectivas – promovidas pelas diferentes áreas do conhecimento –, conseguimos, hoje, elaborar minimamente a descrição desse "homem caricatural" que somos na atualidade.

No entanto, me parece, a maioria dos intelectuais pouco – ou nada – fazem para transformar essas linhas de vulnerabilidade do presente. Talvez, quem sabe, não seja a sua função. Assim como um engenheiro não pode exercer a função de um biólogo, o intelectual, talvez, não possa exercer o papel de um militante. Me soa estranho e um tanto reacionário pensar assim, confesso, mas o fato é que realmente pode ser que seja assim. E isso não porque os intelectuais não queiram ou sejam covardes, mas porque não podem, porque lhes falta aptidão ou saúde para encarar a violência de uma "linha de frente". Quem já esteve ali sabe bem do que estou falando.

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Aqui retomo o que coloquei no início. Este intelectual ocupa, hoje, um espaço que antes não existia. Começa a habitar um território até então inabitável e dissemina ideias para um número de pessoas inimaginável, até poucos anos atrás. Ele habita espaços que o militante não consegue ocupar – também por falta de aptidão ou simplesmente por falta de tempo (os militantes são mais ocupados do que a maioria das pessoas imaginam). Esse intelectual não é o "intelectual camaleão", mas também não é o intelectual egoísta; é, antes, aquele que busca disseminar uma ideia para – e nada além disso – motivar a reflexão. Eles mostram que a reflexão e o pensamento podem ser acessados por qualquer pessoa, desde que ela queira. Eles são aqueles que provocam, que questionam, mas que vivem e experimentam suas provocações e seus questionamentos. Jamais falam por falar, e mesmo que não concordemos com a linha de raciocínio por ele elaborada, nós nos dobramos, somos capturados pelo engajamento dessas pessoas em suas próprias ideias. Neste sentido, esse intelectual é, também, um militante. Existe algo de belo e arrebatador nessa forma de pensar, nesse estilo de pensamento que, dentre outras coisas, busca estar próximo da própria vida. São pensamentos claros, orgânicos e com um fundo de vitalidade que exala destemor. É nessa ousadia que o intelectual exerce a sua liberdade.

Outro ponto importante: numa relação de comunicação entre esses livres pensadores, o consenso não é uma prioridade. Eles escapam dessa maneira superficial de que algo só é algo quando se chega a uma conclusão. O dualismo sim/não é uma questão menor, e nesse diálogo não consensual os esforços são bem mais trabalhosos (aliás, talvez seja exatamente por isso, por ser trabalhoso, que o dualismo sim/não seja tão popular em nossa sociedade). Nos diálogos entre esses livres pensadores, a reflexão jamais se encerra devido à falta de consenso. Entre eles não existem os julgamentos categóricos e absolutos.

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Em outras palavras, entre eles é exatamente a falta de consenso que alimenta o pensamento. O pensamento é um trabalho de elucidação recíproco que perpassa um princípio ético. Esse princípio reconhece o outro como um sujeito igualmente livre e pensante, dotado de experiências distintas. Assim, a desqualificação do outro como forma de afirmar a si mesmo é desprezada por este tipo de intelectual que não pretende impor, coagir, determinar ou qualquer coisa que o valha; antes, pretende afetar os sentidos do outro; pretende colaborar com suas investigações – mesmo que apontando contradições, erros de raciocínio ou mesmo contra argumentando.

O intelectual que age a partir de tal princípio ético jamais construirá uma teoria ou uma reflexão baseada no "tu deves", no "assim deve ser pensado, visto e feito". Ele sabe que o valor de um pensamento precisa ser provado, testado e experimentado a partir do exame das repercussões desse pensamento em sua própria existência. E assim o faz.

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Esse intelectual é o maior exemplo daquilo que propaga. Aliás, é justamente essa característica, é justamente este movimento de aproximação entre o que se diz e o que se faz (e isso é mais difícil do que se imagina) que diferencia o livre pensador da figura menor e hipócrita dos chamados técnicos ou especialistas do saber. O exercício do livre pensamento, da livre reflexão é, na maioria dos casos, o exercício de se confrontar consigo mesmo. Como diria Michel Foucault: "É preciso a cada instante, passo a passo, confrontar o que se pensa e o que se diz com o que se faz e o que se é".

Como, então, se inserir em uma realidade que possibilite o livre-pensar – sem que este exercício fique restrito ao intelectual profissional? Foucault, mais uma vez, diz que o segredo reside não em descobrir o que somos, mas em recusar o que somos. Recusar o que somos é o mesmo que mudar a estratégia que nos insere no mundo. É interpelar outras pessoas, é mergulhar em outras experiências de vida, é se relacionar com figuras anônimas, é ler os textos de autores desconhecidos, é contemplar a obra de um artista sem reconhecimento público, é buscar reflexões que habitam o "entre", e não o dualismo. É, sobretudo, buscar algo que tenha vida, que provoque reações físicas em nosso corpo. É aprender a ouvir com leveza sem que, para tanto, sejamos levianos. É pensar e refletir ao mesmo tempo em que se age, que se transforma a si mesmo, que se questiona o que até agora é, para nós, inquestionável. É se transformar no decorrer do conflito e do sofrimento – e não resistir ao conflito e ao sofrimento.

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Diz o filósofo alemão Friedrich Nietzsche: "O intelecto é, na grande maioria das pessoas, uma máquina pesada, escura e rangente, difícil de pôr em movimento; chamam de 'levar a coisa a sério', quando trabalham e querem pensar bem com essa máquina – oh, como lhe deve ser incômodo o pensar bem! A graciosa besta humana perde o bom humor, ao que parece, toda vez que pensa bem; ela fica 'séria'! E 'onde há riso e alegria, o pensamento, [para essas pessoas], de nada vale' Muito bem! Mostremos que é um preconceito!"

Em nossa vida, permanentemente estimulada, zanzamos como moscas de feira, atraídas pelos odores. E é essa busca que, paradoxalmente, nos mantém acomodados e anestesiados. A busca pelo sabor do sucesso, do triunfo, da riqueza, da felicidade infinita, do amor incondicional. Zanzamos sempre em busca de maiores quantidades sem perceber que é precisamente longe dessa lógica que se passa tudo o que é realmente engrandecedor. É longe dessa lógica de permanente sucesso que viveram, desde sempre, os inventores de novos valores. Vejam, não estou defendendo aqui a condição de fracasso ao questionar a busca incessante pelo sucesso. O que estou defendendo é a lucidez, habitante do "entre". E é preciso fazer saber, a todos, que o pensamento e a reflexão são os únicos territórios que devem ser buscados e aperfeiçoados incansavelmente. Eles não pertencem somente "aos intelectuais" e o seu objeto está tão profundamente inserido em nossas vidas – em todas as vidas – que seria estranho que pertencesse somente aos intelectuais. É preciso fundar – ou resgatar, partindo de novos pressupostos éticos – uma sociedade baseada não no consumo, mas na inteligência e na sabedoria.

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