CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
Flávio Barbosa avatar

Flávio Barbosa

Cronista, psicanalista

28 artigos

blog

A terceira margem do rio e o dedo do meio

"Essas duas histórias com suas narrativas próprias diz muito de nosso tempo e de nossa sociedade, e mais além, de nossa civilização. Elas falam, em posições e sentidos diversos, de coisas muito sensíveis, que, as relações que travamos com nossas margens, com nossas bordas, por um lado em buscarmos um canto qualquer que aloje a nossa subjetividade"

Marcelo Queiroga (Foto: Reuters/U. Marcelino)
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Duas histórias: uma delas trata-se de um conto do genial João Guimarães Rosa que em uma ficção nos diz de coisas a meditar sobre nossa realidade; outra, um acontecimento real, mas que parece se desenvolver como uma ficção da chamada realidade paralela.

Começo por uma pequena resenha do conto de Guimarães Rosa: A terceira margem do rio... neste, um homem, chefe de uma família formada por ele, sua esposa e três filhos (dois rapazes e uma moça) resolveu, num dia qualquer, construir uma canoa e para o espanto dos demais membros da família ele entrou na canoa com poucos víveres e pertences e se lançou ao rio que corria ao fundo de seu sítio; e sem tocar na outra margem, simplesmente atracou sua canoa em uma margem por ele delimitada no meio do rio e por lá permaneceu em silêncio resoluto.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

O seu barco, o seu corpo, fixado naquele ponto do rio donde podia ser visto e observado constituiu uma terceira margem, que, nem do lado de cá, nem do lado de lá, ele saltava, apenas se fixara a um ponto pra não mais desembarcar e fazer dali, doravante, o seu domicílio.

Dias se passaram, meses e anos, e todos de sua família, amigos e viventes daquela comunidade se perguntavam do porquê disso. Nenhuma resposta saltava à cabeça das pessoas. A família, atônita, envidava esforços para que aquele homem desistisse daquele ato, mas ele permanecia ali decidido.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Um filho o aguardava sempre na beira do rio da margem de sua casa, apelava pela volta do pai, e nada! Vez em quando navegava próximo ao pai e levava víveres, roupas e mantas para o velho se cobrir. Contudo, não demovia a vontade do pai. E não mais ouvia dele senão silêncio. A esposa se desesperava, sem entender tal intento, porque seu marido fizera aquilo. Mas não havia resposta alguma. A filha cansou, arrumou um casamento e foi embora. O outro filho não tendo mais esperança em uma mudança de cenário, também foi embora. A senhora mãe um dia também cansou de vez, fez as trouxas e foi viver com a filha casada.

Apenas um filho permaneceu ali, também fixado de seu lado na margem do rio ao fundo de sua casa a contemplar o pai numa esperança desesperançada, mas a acudi-lo vez ou outra com víveres à sustentação física do velho pai, cujas barbas, os cabelos e as unhas cresciam, e o corpo emagrecia naquela permanência calada.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Um dia este filho resolveu ir até ao pai, não apenas a levar víveres, mas para propor uma troca: que o velho retornasse à casa que ele o substituiria naquele ponto do rio habitado na canoa. Que o filho cumpriria o desígnio do pai na terceira margem. Que o velho cansado e sofrido não permanecesse mais naquele lugar, pois o filho, aquele filho, cuidaria que o lugar permanecesse tal a vontade do pai.

O velho ouviu atento a proposta do filho, e pela primeira vez acenou positivo a algo que se lhe pediam, contudo, no momento da troca, no momento de permutarem pai e filho a consecução da permanência daquela outra margem do sei lá o quê, eis que o filho foge exasperado desistindo daquele martírio, desistindo de cumprir o desígnio do pai. E deixando de lado a esperança, fiozinho dela, que por anos cultivara de um dia ter o pai de volta, seguiu, portanto, como os demais, o seu próprio destino, e foi embora, deixando para trás o velho pai na terceira margem do rio.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Ninguém mais soube o que aconteceu ao velho, aos filhos e à senhora, todos se perderam (ou se lançaram) em suas próprias margens.

A segunda história é de quem e/ou do que em um gesto pantomímico supõe talvez não constituir para si uma terceira margem, mas desfazer as margens que temos a partir de um paralelismo sem a menor grandeza em face à realidade. O símbolo disso, enfim, nos veio na forma do apontamento, para todos nós, de um dedo do meio.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Um homem atormentado de sua própria estupidez na corrosão que fizera de sua vida imersa em terraplanismos, acomete-se de temperamento intempestivo quando se ver provocado em sua irrealidade, e reage! Reage com uma ferocidade antes escondida em algum recanto de si mesmo, pois apresentando-se até então num recato, mal disfarçava, como já escrevi nessas páginas, o Eichmann que tinha contido em si mesmo. Guardado fundo e escondido na brancura de seu jaleco.

Uma hora isso se revelaria, e finalmente se revelou. Primeiro, em sendo autoridade-mor da saúde pública de um país, ao conspirar contra a vacinação de adolescentes em prevenção e proteção ao vírus da covid-19 que não escolhe idades. Depois, atormentado pelo dilema de, por um lado, agradar ao chefe, o Mito, um charlatão de carteirinha, e por outro, ver e ouvir a repercussão negativa daquela ignomínia, resolve ir à forra. E essa se deu quando em um passeio de Disney quando deveria estar na labuta, se toma de desagrado ao ver e ouvir os protesto justos, justíssimos, de populares numa terra distante, New York, contra a abundância de canalhice e estupidez daquela horrorosa comitiva a seguir do nada a lugar algum. Foi o limite.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

De repente, a aparente sobriedade que vendera meses a fio aos desavisados mostrou-se transtornada em uma fera ferida pronta ao ataque (o médico-monstro), e levantando-se de seu assento, na vã canoa furada que navegara, aponta aos que protestavam a sua face escondida na exposição do dedo do meio. Ah, um símbolo de sua autoimagem. Claro, e dos que se lhes servem como espelho.

Essas duas histórias com suas narrativas próprias diz muito de nosso tempo e de nossa sociedade, e mais além, de nossa civilização. Elas falam, em posições e sentidos diversos, de coisas muito sensíveis, que, as relações que travamos com nossas margens, com nossas bordas, por um lado em buscarmos um canto qualquer que aloje a nossa subjetividade em face as nossas angústias e silêncios, em face a algo que esmaga o nosso desejo como ponto determinante à nossa existência, por outro, a sinalização gestual de um movimento em curso sobre nós, a saber, aquele que de todo modo tenta nos empurrar a um mundo sem bordas, sem sujeitos, um mundo de atopia e anomia, esse mundo que se explicita em desafio (no sentido da transgressão) a partir do dedo do meio em riste dirigido a todos nós.

É isso...

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Carregando os comentários...
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Cortes 247

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO