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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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A vida em tempos de guerra: na estrada no Donbass

Pepe Escobar relata o cotidiano dos habitantes do Donbass

(Foto: Angelina Latypova/Russia Today)
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A Guerra dá a você um nome / que é um sinal de chamada, não um apelido – muito mais que isso / Aqui faltam carros caros e i-pads/ Mas há APC e MANPADS. / As mídias sociais há muito ficaram para trás / Desenhos de crianças com o "Z" vêm à mente / "Likes" e "joinhas" valem tanto quanto pó / Mas há orações de gente em quem você confia / Aguenta firme, Soldado, meu irmão e amigo / As hostilidades chegarão ao fim / A Guerra não consegue evitar seu próprio fim, / Tristeza e sofrimento se transformarão em paz / A vida retorna a sua forma plácida / Com seu sinal de chamada gravado em seu coração / como uma pequena lembrança da guerra: /Tão longe, mas eternamente perto.

Inna Kucherova, Call Sign, em A Letter to a Soldier, publicado em dezembro de 2022.

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É uma manhã fria, úmida e chuvosa nas profundezas do Donbass rural, em um local secreto próximo à direção de Urozhaynoye, em uma casa de campo comum, providencialmente coberta pelo nevoeiro, o que evita o trabalho dos drones inimigos.

O Padre Igor, sacerdote militar, abençoa um grupo de voluntários locais contratados para o Batalhão Arcanjo Gabriel, prontos para partirem para as linhas de frente da guerra por procuração EUA-Rússia. O homem responsável pelo batalhão é um dos oficiais de mais alta patente das unidades cristãs-ortodoxas da República Popular de Donetsk.

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Um pequeno santuário foi montado em um canto de um cômodo pequeno e apertado, decorado com ícones. Velas são acesas, e três soldados seguram a bandeira vermelha com um ícone de Jesus ao centro. Após as orações e uma breve homilia, Padre Igor abençoa cada um dos soldados.

Esta foi mais uma parada em uma espécie de turnê itinerante de ícones, que começou em Kherson, seguiu para Zaporozhye e continuou até uma miríade de linhas de frente na República Popular de Donetsk, liderada pelo meu gentilíssimo anfitrião Andrey Afanasiev, correspondente militar para o canal Spas, à qual mais tarde se juntou, em Donetsk, um combatente condecorado do batalhão Arcanjo Miguel, um jovem extremamente inteligente e simpático, de codinome Piloto.

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Há entre 28 e 30 batalhões cristãos lutando no Donbass. Esse é o poder da Cristandade Ortodoxa. Vê-los em ação é compreender o essencial: como a alma russa é capaz de qualquer sacrifício para proteger os valores centrais de sua civilização. Ao longo de toda a história russa, foram indivíduos que sacrificaram suas vidas para proteger a comunidade, e não vice-versa. Os que sobreviveram – ou pereceram – no cerco de Leningrado são apenas um dos incontáveis exemplos.

O batalhão Cristão Ortodoxo, portanto, foram meus anjos da guarda enquanto eu retornava à Novorossiya para revisitar o rico solo negro para onde o velho mundo da "ordem baseada em regras" veio morrer.

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As contradições vivas da "Estrada da Vida" - A primeira coisa que choca ao chegarmos em Donetsk, quase 10 anos depois do Maidan em Kiev, são incessantes e altos estrondos. De fora para dentro, mas em sua maioria de dentro para fora. Depois de um tempo tão longo e sinistro de intermináveis bombardeios de civis (invisíveis ao Ocidente Coletivo), e quase dois anos após o início da Operação Militar Especial (OME), esta ainda é uma cidade em guerra, ainda vulnerável ao longo das três linhas de defesa por trás do front.

A "Estrada da Vida" deve ser um dos nomes mais equivocados da épica guerra de Donetsk. "Estrada" é um eufemismo para um charco escuro e lamacento percorrido quase que continuamente por veículos militares. "Vida" é um termo que e aplica, uma vez que os militares de Donetsk de fato doam alimentos e ajuda humanitária para a população local nos arredores de Gornyak todas as semanas.

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O coração da Estrada da Vida é o templo Svyato Blagoveschensky, cuidado pelo Padre Viktor – que, à época de minha visita, estava afastado para tratamento, porque diversas partes de seu corpo foram atingidas por estilhaços. Sou conduzido por Yelena, que me mostra o templo impecavelmente limpo, contendo ícones sublimes, incluindo um do Príncipe Alexander Nevsky, do século XIII que, em 1259, tornou-se o governante supremo da Rússia, Soberano de Kiev, Vladimir e Novgorod. Gornyak é um dilúvio de lama preta sob chuva incessante, sem água corrente nem eletricidade. Os moradores são forçados a caminhar pelo menos dois quilômetros a cada dia para comprar comida: não há serviço de ônibus.

Em um dos cômodos de trás, Svetlana prepara cuidadosamente pequenos pacotes de gêneros de primeira necessidade a serem distribuídos todos os domingos após a liturgia. Conheci Mãe Pelageya, de 86 anos de idade, que vem ao templo todos os domingos e sequer sonharia em abandonar seu bairro.

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Gornyak é a terceira linha de defesa. Os fortes estrondos – como em todo o Donetsk – são praticamente incessantes, de fora para dentro e de dentro para fora. Se seguirmos a estrada por mais ou menos 500 metros e virarmos à direita, estaremos a apenas cinco quilômetros de Avdeyevka – que talvez esteja prestes a cair nos próximos dias, ou semanas, no máximo.

Na entrada de Gornyak fica a lendária fábrica de produtos químicos DonbassActiv – hoje inativa – que produzia as estrelas vermelhas que brilham no topo do Kremlin, usando uma tecnologia de gás especial que jamais foi reproduzida. Em uma rua lateral à Estrada da Vida, moradores do local construíram um santuário improvisado para homenagear as crianças vítimas dos bombardeios ucranianos. Um dia isso vai terminar: o dia em que as forças armadas da RPD controlarem Avdeyevka por completo.

'Mariupol é Rússia' - O clero itinerante sai dos alojamentos do Batalhão Arcanjo Gabriel e segue para uma reunião em uma garagem com o batalhão ortodoxo Dmitry Donskoy, que combate na direção de Ugledar. É lá que encontro a notável Troya, a médica do batalhão, uma jovem que tinha um emprego confortável em uma administração municipal russa antes de decidir se apresentar como voluntária.

Seguimos até um dormitório militar congestionado, onde uma gata e seus filhotes reinam como mascotes, escolhendo o melhor lugar do aposento, perto do fogão de ferro. Hora de abençoar os combatentes do batalhão Dimitri Zalunsky, batizado em homenagem a São Dimitri de Tessalônica, que combatem na direção de Nikolskoye.

Em cada cerimônia, não podemos deixar de nos impressionar com a pureza do ritual, com a beleza dos cânticos e a expressão grave nos rostos dos voluntários de todas as idades, de adolescentes a sexagenários. Profundamente tocante. Temos aqui, em muitos aspectos, a contraparte eslava do Eixo de Resistência Islâmica que combate do Oeste Asiático. Trata-se de uma forma de asabiyya – "espírito comunitário", como usei em contexto diferente para me referir aos huthis do Yemen que apoiam "nosso povo" de Gaza.

Sim, nas profundezas do Donbass rural, em comunhão com aqueles que vivem suas vidas em tempo de guerra, sentimos a enormidade de algo vasto e inexplicável, pleno de infindável assombro, como se tocando o Tao ao silenciar as incessantes e fortes explosões. Em russo, é claro, há uma palavra para isso: "загадка", livremente traduzida por "enigma" ou "mistério".

Deixei o Donetsk rural para ir a Mariupol – e ser atingido pelo proverbial choque de ser lembrado da destruição perpetrada pelo batalhão neo-nazista Azov * na primavera de 2022, do centro da cidade até a costa ao longo do porto até a colossal Usina Siderúrgica de Azovstal.

O teatro – ou melhor, o Teatro Regional Acadêmico de Donetsk – praticamente destruído pelo batalhão Azov, está agora sendo meticulosamente restaurado, o que também ocorrerá com dezenas de prédios clássicos do centro da cidade. Em alguns bairros, o contraste é chocante: à esquerda da estrada, um prédio destruído, do lado direito, um outro novo em folha.

No porto, uma faixa vermelha, azul e branca dita a lei: "Mariupol é Rússia". Fiz questão de ir à antiga entrada do Azovstal, onde os remanescentes do batalhão Azov, cerca de 1.700 deles, se renderam aos soldados russos em maio de 2022. Tanto quanto Berdyansk talvez venha a se tornar uma espécie de Mônaco do Mar de Azov, Mariupol, também, pode ter um futuro brilhante como um centro de turismo, lazer e cultura e, por último mas não menos importante, um importante entreposto marítimo da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) e da União Econômica Eurasiana.

O mistério do ícone - Na volta de Mariupol, fui confrontado com uma das histórias mais extraordinárias já tecidas na trama da mágica dos tempos de guerra. Em um estacionamento de veículos como qualquer outro, me vejo frente ao Ícone.

O ícone – de Maria Mãe de Deus – foi presenteado a todo o Donbass por veteranos do Zsloha Spetsnaz, quando eles vieram, no verão de 2014. Conta a lenda que o ícone começou a espontaneamente gerar mirra e, como se sentisse a dor sofrida pelo povo do lugar, começou a chorar. Durante o ataque a Azovstal, o ícone, de repente, apareceu do nada, trazido por uma alma piedosa. Duas horas mais tarde, conta a lenda, a RPD e forças russas e chechenas alcançaram sua grande vitória.

O ícone está sempre circulando entre os pontos cruciais da OME no Donbass. As pessoas encarregadas desse revezamento se conhecem, mas nunca sabem para onde o ícone irá a seguir. Tudo se desenrola como uma espécie de tour mágica e misteriosa. Não é de admirar que Kiev ofereceu uma grande recompensa a qualquer pessoa – principalmente quinta-colunistas – que consiga capturar o ícone, que em seguida seria destruído.

Em uma reunião noturna em instalações localizadas na periferia oeste de Donetsk – com luzes totalmente apagadas em todas as direções – tive a honra de me encontrar com um dos oficiais de mais alta patente das unidades ortodoxas da RPD, um sujeito duro como aço, embora jovial e fã do Barcelona com Messi, e também com o comandante do batalhão Arcanjo Miguel, de codinome Alfabeto. Estamos na primeira linha de defesa, a apenas dois quilômetros da linha de frente. As incessantes e fortes explosões – em especial as dirigidas para fora – eram realmente fortes.

A conversa foi desde táticas militares no campo de batalha, principalmente no cerco a Avdeyevka, que se completará em questão de dias, agora com a ajuda das Forças Especiais, paraquedistas e um grande número de veículos armados, até impressões sobre a entrevista de Tucker Carlson com Putin (eles não ouviram nada de novo). Os comandantes observaram o absurdo de Kiev não reconhecer seu ataque ao Il-76 que levava 65 prisioneiros de guerra ucranianos – totalmente indiferentes ao sofrimento de seus próprios soldados. Perguntei a eles por que razão a Rússia não opta por simplesmente arrasar Avdeyevka com bombardeios : "Humanismo", foi sua resposta.

O infernal Rover de fabricação caseira - Em uma manhã fria e enevoada, em um local secreto no centro de Donetsk – mais uma vez, sem drones passando no céu – conheci dois especialistas em drones kamikazes, um de codinome Letchik. Eles montaram uma demonstração kamikaze de operação de drones – desarmados, é claro – enquanto, a alguns metros de distância, o engenheiro mecânico especialista O "Advogado", fez sua própria demonstração de um rover de entrega de minas de fabricação caseira.

Essa é uma versão letal certificada do drone Yandex de entrega de comida, hoje bastante popular em Moscou. O "Advogado" exibe a facilidade de manobra e a capacidade de seu brinquedinho de enfrentar qualquer terreno. A missão: cada rover é equipado com duas minas a serem colocadas bem embaixo dos tanques inimigos. O sucesso, até agora, vem sendo extraordinário – e o rover será aperfeiçoado.

Seria difícil encontrar em Donetsk um personagem mais ousado que Artyom Gavrilenko, que construiu um escola nova em folha acoplada a um museu bem no centro da primeira linha de defesa – repetindo, distante apenas dois quilômetros da linha de frente. Ele me mostra o museu, que desempenha a invejável tarefa de ressaltar a continuidade entre a Grande Guerra Patriótica, a aventura da URSS no Afeganistão contra a jihad financiada e armada pelos Estados Unidos e a guerra por procuração no Donbass.

Essa é uma versão paralela, "faça você mesmo", do Museu da Guerra oficial situado na zona central de Donetsk, próximo ao estádio de futebol Shaktar Donetsk. O museu exibe uma impressionante memorabilia da Grande Guerra Patriótica, bem como fabulosas imagens tiradas por fotógrafos de guerra russos.

Os estudantes de Donetsk, portanto – ênfase em matemática, história, geografia, línguas – irão crescer profundamente imersos na história daquilo que, para todos os fins práticos, é uma heroica cidade mineradora, que extrai riquezas do solo negro enquanto seus sonhos são sempre inexoravelmente ensombrecidos pela guerra.

Entramos na RPD usando estradas secundárias que nos levaram à fronteira com a República Popular de Lugansk, não muito distante da cidade de Lugansk. Essa é uma área de fronteira atrasada e desolada, que me faz lembrar dos Pamirs, no Tajiquistão, usada basicamente pelos moradores do lugar. Na entrada e na saída, fui polidamente interrogado por um funcionário de controle de passaportes nativo do Dagestão e por seu segundo na linha de comando. Os dois ficaram fascinados com minhas viagens no Donbass, no Afeganistão e no Oeste Asiático – e me convidaram para visitar o Cáucaso. Quando partimos pela noite gelada para a longa viagem de volta a Moscou, nossas despedidas foram extremamente simpáticas: "Você é sempre bem-vindo aqui". "Voltarei". "Como o Terminator!"

* O Batalhão Azov é uma organização terrorista banida na Rússia.e

Tradução de Patricia Zimbres

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