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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Ao amigo José Antonio Spinelli

Para todos nós na adolescência, Spinelli sempre foi uma promessa de luminoso destino

José Antonio Spinelli (Foto: Reprodução/YouTube)
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Nestes dias, andei refletindo sobre obituários e elogios póstumos. E me disse; “chega de elogiar pessoas fundamentais depois de suas mortes”. Por que não se fala dos ilustres enquanto vivos? É claro, muitas vezes não temos outra opção, quando somos surpreendidos por um súbito desaparecimento. (E penso no justo elogio ao escritor e pensador José Carlos Ruy, autor de um fecundo Dicionário Machado de Assis, até hoje inédito).

Portanto, chega de obituários. Quero inaugurar aqui uma galeria de amigos essenciais em nossa jornada. Começo por José Antonio Spinelli.

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As pesquisas no Google sobre Spinelli têm resultados muito superficiais. Para José Antonio Spinelli Lindozo encontramos:

“Professor Titular de Teorias Sociológicas do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bacharel em Sociologia/UFRN (1974), bacharel em Sociologia e Política/Fundação José Augusto-Natal (1974), mestre em Sociologia/Universidade Estadual de Campinas (1989) e doutor em Educação/Universidade de São Paulo (1997)”.

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Mas nesse breve currículo não está a sua genialidade.

Na sua vasta produção intelectual temos mais de 42 resultados, como, por exemplo, Ditadura e memória: Soledad no Recife e a reconstituição literária da História, Gilberto Freyre: embates teóricos, Gramsci: o Estado como lócus de hegemonia...,. E apesar dos muito bons textos, a sua genialidade ainda não está aí.

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E onde, então, encontrá-lo além da produção acadêmica, artigos e entrevistas? José Antonio Spinelli foi militante de Ação Popular, no tempo da ditadura. E para falar sobre o seu gênio, eu o recolhi para modelo do personagem Anunciado Zacarelli no romance “A mais longa duração da juventude”. Adianto que ele foi inspirador da recriação, mas é bem mais complexo em sua vida. Posta essa ressalva, aqui vão algumas linhas do personagem:

“Zacarelli era dono de uma brilhante força intelectual, eu poderia dizer. Em Zacarelli se cruzavam o cômico e o dramático. Ele foi o matador de mortos na juventude..”.

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Isso mesmo; na vida real de José Antonio Spinelli e no romance, na pele de Zacarell, ele matou defuntos em desastrado acidente. Como aqui:

“Zacarelli pediu a direção do carro. Então Alberto cedeu-lhe o volante. Esclareço, para quem não conhece, que se tratava de um DKW-Vemag, Vemaguete, cujas marchas eram o que chamávamos de “royal”, ou seja, o câmbio era no próprio volante. Se para iniciantes é complicado passar a marcha em um fusca, imagine-se em um sistema da realeza do câmbio para quem nunca dirigiu um carro. “Nada, é até mais fácil”, respondia Alberto, e fazia movimentos na mão que mais pareciam truques de mágico. Como obra de um prestidigitador, do nada o carro mudava a velocidade.

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Estávamos nessa altura do espetáculo, Alberto com rápidos ensinamentos a Zacarelli, e eu sob os efeitos da cerveja na companhia, quando o novo motorista, o maduro Zacarelli, assumiu a direção. Na reta, no asfalto da avenida o carro deslizava na segunda marcha. Zacarelli gargalhava pela facilidade do passeio no tapete:

- Genial, bicho. Genial!

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Súbito e de repente, surge um grupo de pessoas no asfalto. Grupo caído do céu, diria. Mas em vez de uma “visão do último trem subindo ao céu”, descia. O farol do carro, que Zacarelli não sabia como ou por que era aceso, ilumina as pessoas caídas à vista de repente. Alberto lhe grita:

- Buzina, Zacarelli!

Como não sabe ou não tem tempo, reflexo e agilidade para tanto, Zacarelli grita a pleno pulmões:

- Ei, ei, ei! Cuida...do!

E Zacarelli e Alberto viram. Eu não pude ver porque fechei os olhos. Mas eles viram: um objeto coberto por um lençol branco, tendo ao lado algumas velas no chão. No entanto, os meus olhos fechados puderam ouvir: cróquite, cróquite, cróquite de ossos machucados. Alberto gritou:

- Era um defunto, Zacarelli!.

- Cara, como é que botam um defunto na frente do carro?

- Corre, corre, Zacarelli.

E de fato, o quadro moveu-se: os populares corriam para alcançar o carro, que mal recuperado do susto, do choque, não conseguia correr. Com força não ia além dos 20 quilômetros por hora. Zacarelli diria depois que aquilo era uma cena do filme Os Boas Vidas quando o carro quebrou, e os operários queriam espancar os playboys. Mas isso foi observado dias depois. Ali, na avenida presidente kennedy, não. Alberto grita, ao ver populares reais correndo para cima do carro:

- Marcha na royal, Zacarelli! Muda a marcha.

- Eu não sei!

- Tira a mão que eu pego. Enfia o pé no acelerador.

- Onde fica o acelerador?

- Deixa!

E com efeito, Zacarelli. obediente e desesperado, levantou os braços. O carro bate na calçada. Então Alberto, o melhor motorista do Recife, faz a vemaguete retornar à pista, e muda a royal e mete o pé esquerdo no acelerador. Por cima do pé de Zacarelli, que nem reclama do pisão.

- Será que ele estava morto? – perguntei.

- Morto morto – respondeu Zacarelli. .– Ninguém acende vela para um morto vivo”.

Mas aqui o personagem fala em um dia de galanteio infeliz na praia de Porto de Galinhas:

“- Quem fala bem sobre o amor, fala bem da revolução. É claro, mesmo que não queira, todo poeta é comunista. Mas quando expressa bem o amor, ele é um revolucionário em essência. Vinícus de Moraes tem uma composição que é sublime. Aquela que fala ‘ó minha amada de olhos ateus, teus olhos são cais noturnos cheios de adeus’. Todo grande poeta socialista assinaria. Você não acha?

As estudantes de medicina assentem, mudas aprovativas. Ah, para quê? Não vá o artista acreditar no sucesso, nem vá o toureiro acreditar no olé do público da arena. Volta Zacarelli:

- Todos nós somos poetas. Quando estamos sob o fogo da paixão... – e ousado olha intenso para Iza - Todos nós no amor somos poetas. Por exemplo, – o louco avança mais – eu próprio seria capaz de escrever poesia agora. – E olha de novo somente para Iza, à beira do suicídio completo: - Você não acha?

- Eu não entendo de poesia – Iza responde. – Os meus poetas podem cantar em vão.

E sorri, desta vez em outro tom, num prenúncio de gargalhada. Zacarelli me falou, muitos anos depois, que ela sorriu como as vilãs de telenovelas gargalham. Que sorriso estúpido para uma imersão poética.

- Ali, ela mostrou o próprio nível – ele me falou, 30 anos depois”

Em outros pontos do livro, ele atinge uma lírica utopia, à sua maneira e feição:

“Estávamos no carnaval, em um domingo onde tudo era sol, frevos, bebida, promessa de amor rebelado em corpos de mulheres cheias de cores, miçangas, fantasias, que pareciam clamar ‘fales o que desejas’. De repente deve ter ocorrido a Zacarelli que toda festa ia acabar, mais cedo ou mais tarde, quem sabe se mais cedo, como um fim inesperado, um final inesperado de gozo. Maldito, não importa se ao fim de um padecimento, em que a morte chega com data de calendário. Zacarelli, sem palavras, olhou a rua, viu as moças que passavam aos gritos, aos risos, e sorriu um sorriso triste, que caberia no frevo-regresso que canta ‘adeus, ó minha gente, o bloco vai embora....’.

- Sabe, rapaz? Os cientistas vão descobrir a imortalidade. A história da medicina é não só a luta contra a dor, é a luta para vencer a morte. E olhe que os limites da vida têm recebido uma dilatação. Entende? Em nossa infância, homens com a nossa idade seriam velhos. Olhe para nós. Somos velhos? Não! Nós somos jovens. Mais jovens que antes, quando tínhamos 20 anos. Por quê? Porque agora temos a consciência, o sabor experiente que não era possível naquele tempo”.

Recriei essa comovente fala de outro carnaval em Olinda. Mas fora das páginas do romance, escrevo que ele foi o primeiro leitor da filosofia marxista entre nós. O primeiro a comprar livros de Lukács e números da Revista Civilização Brasileira. E com tal ambição, que era sempre uma referência em nossas discussões sobre arte e literatura. Esse humanista, quatro meses mais velho que eu, sob protesto dele (“tenho a tua idade!”), é o analista maduro hoje nas suas intervenções de ciência política. Ou seja, além da pura reflexão política destes dias, ele abarca uma compreensão do pensamento, do leitor de Marx, do amante da literatura e do pensamento filosófico. Escreve seus textos com sabedoria e sensibilidade literária.

Para todos nós na adolescência, Spinelli sempre foi uma promessa de luminoso destino. Escrevo isso e sei que desse futuro nós nem falávamos em voz alta, mas queríamos acompanhá-lo na sua jornada que viria. Jornada nas estrelas? Não. Jornada de humanidade na Terra. E não nos frustramos: José Antonio Spinelli, à sua maneira, tem realizado o que esperávamos. O filho de Dona Nicinha, daquela casa do Arruda, no Recife, que para nós era uma festa, pois ali comíamos, jogávamos torneios de xadrez e batalhas de significados de palavras, tem sido um amigo fraterno de longa data.

Mas o tempo urge e ruge nestes dias. Portanto, peço aos editores que publiquem logo esta homenagem.

Salve a tua vida e genialidade, José Antonio Spinelli!

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