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Letícia Chahaira

Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana - UERJ (bolsista CAPES). Graduada em Serviço Social - UFRJ

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As pessoas privadas de liberdade sem documentação civil no estado do Rio de Janeiro

Pretendo, com a construção deste texto e socialização do artigo, tornar visível uma realidade de um subgrupo que sobrevive sem nenhuma documentação civil, não enxergado como cidadão pelo Estado

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Pretendo, com a construção deste texto e socialização do artigo, tornar visível uma realidade de um subgrupo que sobrevive sem nenhuma documentação civil, não enxergado como cidadão pelo Estado, por não ter uma ligação institucional que “comprove” sua existência, sem a possibilidade de exercer sua cidadania (mesmo que, apenas formalmente) e, paradoxalmente, visto, numerado, por órgãos punitivos, quando é preso, por esse mesmo sistema de justiça que não lhe garantiu, sequer, o seu direito ao nome. Faço o acréscimo necessário e urgente do atual contexto de pandemia do novo coronavírus, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e suas refrações, que perpassam integralmente o tema tratado.

À luz da legislação vigente, o registro civil é um direito humano de toda pessoa que nasce no Brasil. É um direito, pois, ter o seu nome, a sua filiação, seu pertencimento a um território, a sua data de nascimento e sua genealogia registradas. Levando-se em conta que a certidão de nascimento é um “passaporte” para a cidadania, é ela que possibilita o acesso aos direitos. É, portanto, um direito subjetivo e, assim sendo, um dever do Estado proporcionar condições para documentar cada sujeito, dada a “obrigatoriedade” de comprovação da relação formal/institucional com o poder público para usufruir de sua cidadania. É direito da pessoa, se tornar pertencente, partícipe de uma política, programa, projeto e/ou benefício. 

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Cabe lembrar que essa apresentação de documentação é exigida para quase todos os atos da vida civil baseada em usos e costumes, como forma de controle, e também, no intuito de evitar fraudes (parafraseando atores do atual governo federal), na direção de uma reflexão de que, não há previsão legal que assinale essa obrigatoriedade de apresentar uma documentação civil como pré-requisito para o acesso aos direitos sociais. Inclusive, na legislação vigente, os direitos sociais são preconizados como universais, o que torna o “pseudo” cidadão (para o Estado), o sujeitado não documentado, privado, por tal razão, de usufruir dos direitos humanos fundamentais, que deveriam se sobrepor a qualquer tipo de elegibilidade/comprovação.

“Eu quero é que se exploda a periferia toda.

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Toda tragédia só me importa quando bate em minha porta”.

Sou classe média – Max Gonzaga

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Em 2015, segundo dados do IBGE, no Brasil, o número de pessoas sem registro civil de nascimento (RCN) era de, aproximadamente, 3 milhões. Vale ainda destacar a informação de Cláudio Crespo, ex-coordenador geral de Populações e Indicadores Sociais do IBGE, ao apontar que a estimativa de sub-registro obedece a cálculos de probabilidades, afirmando que “ela nunca será 100% efetiva, pois são estimativas, com uma meta de cobertura de 95%” (ARPEN-SP, 2013, p. 39).  

Conclui-se que esse número de pessoas que não possuem, minimamente, uma certidão de nascimento, tende a ser subnotificado, levando em consideração, por exemplo, grupos mais isolados, como população ribeirinha, indígenas e pessoas em situação de rua, por exemplo. Fato este, confirmado e explicitado na conjuntura atual de pandemia.De acordo com pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aproximadamente 10,9 milhões de trabalhadores elegíveis ao Auxílio Emergencial, não constam no CadÚnico, o cadastro único, que funciona como base de dados para programas sociais do Governo Federal. Até o ministro da economia, Paulo Guedes, durante reunião ministerial, que ocorreu no dia 9 de junho de 2020, foi obrigado a admitir a dimensão do sub-registro, tamanha a repercussão do problema dos desassistidos. O ministro do (des) governo Bolsonaro disse que aprendeu “durante toda essa crise que havia 38 milhões de brasileiros invisíveis”.

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Estes não inscritos, compõem parte da população sobre a qual o governo não tem informações suficientes para verificar a elegibilidade para o auxílio.  Quer dizer, certamente, eles não estão inclusos em nenhum sistema de proteção social e não são visíveis para o poder público, tendo como um dos motivos, a falta de documentação civil. É justamente essa ausência de registro civil, que inviabiliza o acesso aos programas, benefícios e serviços oferecidos pelo Estado, como o Bolsa Família, por exemplo.

Apesar da Câmara ter aprovado uma alteração no texto-base da ampliação do auxílio emergencial, permitindo que o beneficiário busque o pagamento, na ausência ou irregularidade de CPF e título de eleitor, ainda assim, é exigido alguma documentação civil, como carteira de identidade, ou a certidão de nascimento, para a realização do cadastro.

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A certidão de nascimento permite à criança e ao adulto poder existir. Já que sem ela não há existência, não se existe perante a lei, não se é ninguém, não se é nada, não se é gente, não se é cidadão, [...] “para ser reconhecido”; “para ser conhecido”[...] A certidão de nascimento como pré-requisito para a cidadania, para existir como cidadão aparece de forma explícita [...]. Ser reconhecido perante a lei, ser igual a todo mundo, sentir-se filiado a uma nação, ser brasileiro, ter acesso aos serviços, ter seus documentos são símbolos de cidadania. (BRASILEIRO, 2005, p.13-14, grifo da autora)

Porque é mais fácil condenar quem já cumpre pena de vida”.

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Sou classe média – Max Gonzaga

Frequentei por, aproximadamente, 2 anos, as reuniões de Grupos de Trabalho (GT) do Comitê Gestor Estadual de Políticas de Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica do Rio de Janeiro que se reúnem para discutir o problema da falta de documentação civil em distintas frentes, que atualmente, são as seguintes: Educação; Saúde; Pessoas Idosas, Pessoas com Transtorno Mental e Pessoas com Deficiência; Óbitos; População de Rua; Sistema Penitenciário; Documentação; Municípios e Capacitação.

E foi a partir das discussões apresentadas na reunião do referido GT, que uma indagação pairou sobre minhas reflexões construídas, até então, diante do meu acompanhamento feito somente em grupos como, por exemplo, o da Educação e o da Saúde, quando a problemática exposta era: o não ingresso do sujeito sem identificação civil, a não existência para o sistema, daquele tratado como “sub” cidadão, invisível por não ter como provar uma ligação formal com o Estado, no caso, a documentação civil, tendo “portas” fechadas para serviços em hospitais, matrículas escolares e tantos outros direitos.

Por um período, precipitadamente, tendi para o outro extremo, de quem desconhecia a existência desse grupo de pessoas subregistradas, esta expressão da “questão social”, e ainda na aparência do problema, uma percepção de que esses sujeitos, sobreviviam à margem completa do acesso ao sistema de justiça integralmente. Com isso, quero dizer que, não haveria possibilidade de adentrar instituição pública alguma, lembrando que, a falta de documentação civil é o “argumento” principal para a não inserção do subregistrado nos serviços, programas e políticas sociais, para a não participação no, ausente e desconhecido para aquela pessoa, “Estado social”.No entanto, qual não foi meu questionamento quando, no grupo de trabalho (GT) do sistema prisional, a pauta era sobre pessoas não identificadas civilmente que, mesmo na condição de não documentadas, romperam a, neste caso, “mera formalidade” da justificativa do predicado da identificação para o não acesso, e já se encontravam ingressas no sistema, agora, visíveis, para um conhecido e presente “Estado penal”. 

Ou seja, num primeiro momento, pensei que essa pessoa, sem registro civil não poderia adentrar o sistema de justiça, mesmo que na condição de réu, ou apenado, afinal, não consistiria em grave violação, manter alguém sob tutela, sem ao menos, ter certificado sua identidade?

Se o Estado exige documentação civil (Certidão de Nascimento, RG, CPF, Título de Eleitor, Certificado de Reservista, Carteira de Trabalho), para o pretenso acesso à Justiça, por que, quando na entrada no sistema prisional, esse mesmo Estado desconsidera a obrigatoriedade da documentação?

Por meio de um relatório de 2014, da SEAP-RJ para o GT do Sistema Penitenciário, revelou-se que, 1/3 (um terço) da população total carcerária do estado do Rio de Janeiro estava sem a premissa de identificação civil adequada. Entende-se por esse universo de identificação civil inadequada: presos certificados e ainda não identificados civilmente no banco de dados; e presos ainda não certificados, que estão somente com seus dados declarados, podendo ser acusados, inclusive, com a utilização de seus apelidos – “vulgo fulano de tal”, ambos, com seu comando (ou RG) criminal.

Apesar de o estado do Rio de Janeiro ser um dos mais avançados no modelo de biometrização de presos, com um número de não certificados reduzido, se comparado com o de outros estados, em decorrência de ações e providências construídas no grupo de trabalho do sistema prisional por atores de distintos órgãos, é essencial apontar o retrocesso durante a pandemia, com um aumento expressivo de ingressos no SIPEN (Sistema de Identificação Penitenciária)  que não tiveram a GRP (Guia de Recolhimento do Preso) certificada. Relatos de membros do grupo de trabalho indicam uma diminuição de funcionários nas Delegacias e redução no próprio serviço de identificação realizado pelo DETRAN por conta da pandemia, como possíveis causas.

Para se ter uma noção da dimensão, de acordo com dados fornecidos pelo GT supracitado, no dia 03 de março de 2020, o número de pessoas privadas de liberdade no estado do Rio de Janeiro, que não tiveram suas impressões digitais coletadas (não certificados), era de 299.  No dia 26 de junho de 2020, o quantitativo aumentou para 1.923 detentos, sem qualquer tipo de informação biométrica sobre sua identidade.

Uma síntese da realidade da ausência da política de documentação são os dados que foram contabilizados do formulário de preenchimento, aplicado pelo DEPEN - 2019, para todas as unidades prisionais. Foi mantido o recorte do trabalho, utilizando somente as respostas das 50 unidades do estado do Rio de Janeiro.

Dados DEPEN – Unidades do Sistema Prisional do estado do Rio de Janeiro – 2019

Fonte: própria, realizado com dados do DEPEN, de 2019.

A pergunta do questionário respondida pelas unidades prisionais é para saber se a documentação física das pessoas que estão sob tutela do Estado se encontra em seus respectivos prontuários. Como podemos concluir, é expressivo o número de unidades que responderam negativamente, especificamente, 44 (quarenta e quatro), do total de 50 (cinquenta). Somente 6 (seis) estabelecimentos indicaram que possuem a documentação de parte das pessoas privadas de liberdade no local.

Uma informação relevante do dado supracitado é que, o questionamento sobre a documentação civil dos presos não foi encontrado no relatório consolidado e no analítico do DEPEN, assim como não consta no INFOPEN do ano de 2019, foi necessário adentrar a tabela do programa excel com quantitativo bruto, sem análise ou recortes estatísticos e buscar a pergunta sobre documentação civil. Esta é mais uma evidência do descaso ao tema, ou receio de expor informações quantitativas tão significativas de ausência de dados que seriam fundamentais para o Estado reter no ato de punir, privar e tutelar pessoas, que é: ter, minimante, a confirmação, a certificação da identidade civil de quem sofrerá tais danos.

Não há no Estado do Rio de Janeiro uma política de armazenamento de documentação civil de apenados. Há relatos de internos que tiveram sua documentação extraviada entre o momento da apreensão até a chegada a uma unidade prisional. Caso tenha sido preso sem portar documentação, pode ser realizada a busca através da leitura biométrica da impressão digital. Todavia, o simples fato de a identidade civil ter sido emitida em outro estado da Federação pode se tornar um obstáculo para a certificação da pessoa detida. Esse é um dos exemplos da complexidade da questão da identificação civil no sistema prisional.

É a contradição dessa burocratização ora controladora, ora omissa do Estado, que se mostra e pede uma reflexão crítica, pois, nesse sentido, a documentação é posta como controle de suspeitos e não de sujeitos (de direito). 

Sendo, a pessoa não documentada civilmente, colocada como “não humano”, tendo acesso restrito à Justiça, reduzida a um “não sujeito” no código civil, apenas sendo reconhecida como “sujeito” (sujeitado) no código penal, Malaguti Batista (2002, p. 13, grifo nosso) nos indica que a ambiguidade assinalada é uma reprodução histórica quando aponta que “o escravo era coisa perante a totalidade do ordenamento jurídico (seu sequestro correspondia a um furto), mas era pessoa perante o direito penal”.

“Minha vida não tem tanto valor

Quanto seu celular, seu computador”.

Diário de um detento – Racionais MC´s

Nesta direção, faço uma analogia dessa “invisibilidade cidadã” de pessoas sem documentação civil com a chamada “Pena de Morte Civil” , um tipo de penalidade criminal aplicada desde a Antiguidade, passando pela Idade Média e continuando na Idade Moderna, até o século XVIII na Europa (FARAH, 2009).

O indivíduo apenado com a morte civil perdia todos os direitos civis e políticos, sendo considerado civilmente morto. Em consequência, o condenado tornava-se um morto-vivo. Ele não era condenado à morte física nem mantido preso, mas para todos os efeitos jurídicos, era tido como morto, cessando por completo sua participação na vida política e civil da comunidade. A morte civil não acarretava só a perda de direitos políticos como os de votar e de exercer funções públicas, mas também a perda de direitos civis básicos. Por exemplo, fazia desaparecer todos os laços de família: o condenado perdia o pátrio poder sobre os filhos e tinha seu casamento desfeito, podendo sua esposa contrair novo matrimônio como se solteira ou viúva fosse. O infeliz também perdia todos os direitos patrimoniais, abrindo-se sua sucessão em favor dos herdeiros. Ele tampouco podia adquirir qualquer bem ou recebê-lo por doação entre vivos ou por herança. O condenado ficava ainda proibido de manter qualquer emprego, público ou privado, e de exercer qualquer ofício em sua comunidade. Ninguém podia dar-lhe comida, abrigo, dinheiro ou qualquer tipo de apoio. Quem o fizesse também seria processado criminalmente, correndo o risco de receber a mesma pena. (FARAH, 2009, p.1).

Farah (2009) explica que, “embora o condenado mantivesse formalmente o direito à vida e à liberdade, ele não podia contar com o Estado para garantir esses direitos, isto é, não podia recorrer às autoridades em busca de proteção” (idem, p.1).  Qualquer semelhança com o grupo sub-registrado, é de se pensar, não é mera coincidência. Punição máxima versus (Des) Proteção do Estado.

É pertinente pensar que essa teoria clássica da soberania, na qual, a vida e a morte não são tratadas como naturais e só se tornam direitos pela vontade soberana, que detém o direito de “fazer morrer” e “deixar viver” (direta ou indiretamente, como no caso da pena acima elucidada), tornando o súdito neutro, e com isso, à mercê do poder do soberano, que só exerce seu direito sobre a vida porque pode matar, como nos indica Foucault (2002).

Situações de sujeitos subregistrados no Brasil, ainda hoje, podem ser consideradas um resquício dessa “pena de morte civil” -  considerado civilmente morto, sem direito civil ou político, com uma importante distinção: uma pessoa que nunca foi registrada, nunca teve uma vida civil, jamais usufruiu de sua cidadania.

A morte civil, não raras vezes, acabava levando à morte de fato, segundo Farah (2009), pois qualquer pessoa ficava autorizada a matar impunemente o indivíduo civilmente morto. Neste ponto, já é cabível uma comparação com a segurança pública do Estado brasileiro, tal como está posta, e da atuação de seus agentes, que em nome do “bem comum”, têm certa legitimidade da sociedade e do governo para atirar de maneira inescrupulosa (também chamado de auto de resistência), quem dirá prender - isolar (aquele subgrupo específico historicamente alvo de punição – os sujeitados).

“Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio

O ser humano é descartável no Brasil”.

Diário de um detento – Racionais MC´s

Quando, no biopoder, há um novo direito, agora de “fazer viver” e “deixar morrer” do Estado, que trata de proteger a vida de uma população através do controle da massa, através da segurança do conjunto em relação aos seus perigos, uma estratégia como argumento para usufruírem do choque de dois sistemas de poder (da soberania sobre a morte e da regulamentação sobre a vida) é determinado (FOUCAULT, 2002).

É utilizado um corte entre o que (quem) deve viver, e o que deve morrer, chamado por Foucault (2002), no curso Em Defesa da Sociedade, de “racismo”, que serve para exercer poder de morte num sistema político e econômico centrado no biopoder, para que, mesmo de maneira paradoxal, seja uma justificativa (ao menos na narrativa) que não iria de encontro e sim ao encontro com o tal “fazer viver”.

Batista, corrobora, explicitando que “a alçada criminal abrangia a pena de morte natural, inclusive em escravos, gentios e peões homens livres, sem apelação nem agravo, salvo quanto às pessoas de mor qualidade” (Batista, 2003).

São “não cidadãos”, tendo em vista todas as consequências subjetivas e objetivas desse “não status” diante dessa aparente “cidadania regulada” pela documentação. Condenados primeiramente à “pena de morte civil”, não bastasse isso, ao adentrar o sistema prisional, o documento que lhe é destinado para identificação, é de caráter criminal e numérico - o RG ou comando criminal, que duplica sua condenação e estigma. 

Para embasar a análise da problemática, discorro, durante minha dissertação, sobre distintos casos de pessoas que nunca tiveram documentação civil alguma e as refrações dessa ausência em suas sobrevidas – a primeira marginalidade.

No intuito de exemplificar a extensão do tema, me utilizo de um caso emblemático de registro tardio, para demonstrar o quão perto podemos estar do tema. O presidente com maior índice de aprovação popular do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que nasceu em Vargem Comprida, no interior de Pernambuco, foi registrado somente aos 7 anos de idade, conforme explicita a matéria jornalística, contada com mais detalhes pelo irmão mais velho do ex-presidente, José Ferreira de Melo para o Frei Chico.
Segundo ele, a dificuldade de mobilidade, a precariedade da localidade no interior de Pernambuco e da família na época faziam com que as crianças nascidas só fossem registradas de tempos em tempos. Com a falta do documento oficial, eles usavam o que se chamava de batistério, documento que comprovava a execução do sacramento do batismo católico, onde constava data de nascimento e local. (Reportagem brasil de fato, 2019, grifo nosso)

Frei Chico complementa, relatando que “havia muita dificuldade no Nordeste para registro de nascimento. As pessoas que nasciam na roça dificilmente iam à cidade tirar registro. E quando muito, quando ia batizar, tirava um tal de batistério”. O irmão de Lula conta que a mãe deles foi ao cartório em Santos – SP, quando foram ao encontro do pai, para registrar os filhos, levando anotado todas as datas e os nomes.

Na sequência, exponho o não acesso aos direitos, sofrido por pessoas que formam o subgrupo. O “pré-cidadão”, me apropriando de um termo utilizado por Wanderley Guilherme dos Santos, se depara a impossibilidade de acessar um hospital (saúde), já que a primeira solicitação para o cartão SUS é o CPF. O “não sujeito” tem a porta da escola fechada, quando, na maioria das vezes, é impedido de realizar sua matrícula (educação), por não possuir, minimamente, uma certidão de nascimento. E o trabalho que lhe é oferecido, quando existente, sem carteira de trabalho, se limita ao informal. Sua história, sua ancestralidade, deixa de ser registrada. Não formalizar sua existência perante o Estado é, literalmente, não pertencer, não ter acesso, e, quando morto, ainda ser enterrado como indigente. 

Outra consequência, que alguns atores sociais do GT denominam de “sub-registro hereditário”, é quando gerações que são consecutivamente subregistradas sobrevivem à margem de todo sistema de garantias, dificultando, ainda mais, o registro dos possíveis futuros membros da família, dada a burocracia do processo de registro tardio.  

É importante pontuar a relação do sub-registro com o tráfico humano, comentado durante reuniões de GT sobre documentação, a maior suscetibilidade do subgrupo, também associado a problemática de tráfico de órgãos e adoções ilegais, na certeza de merecimento de uma discussão mais profunda, entretanto, esbarrando nos limites temporais, de acúmulo e recorte do trabalho.

Para tais análises foram estudados processos de sub-registro do Serviço de Promoção à Erradicação do Sub-registro de Nascimento e Busca de Certidões (SEPEC). Acompanhadas audiências de presos que solicitam seu registro civil de nascimento, realizadas por videoconferência. Aliada ao conjunto de ações/mutirões de documentação civil, que busquei participar como voluntária, dentro e fora das unidades prisionais.

“Cadeia? Guarda o que o sistema não quis”.

Diário de um detento – Racionais MC´s

Desde sua apreensão, o primeiro equívoco pode ser a prisão da pessoa errada, a denúncia e o mandado de prisão poderão ser oferecida/expedido em face de pessoa que efetivamente não cometeu o crime, possibilitando prisões indevidas. O erro na dosimetria da pena, e neste momento afirmo que a maioria dos entrevistados na ação de documentação que estive partícipe como voluntária, em duas unidades do sistema prisional, já tinha cumprido o tempo determinado em sentença, de acordo com relatos e ainda não tinha tido contato com assistente social ou defensor público. É relevante pontuar que, para 50 unidades do estado do Rio de Janeiro, efetivamente, existe um quadro de somente 36 assistentes sociais, de acordo com INFOPEN – Sistema de Informações Estatísticas do Sistema Penitenciário de 2019.

A dupla marginalidade, são as privações, além da liberdade, as quais o apenado subregistrado é submetido. Elas se reproduzem e ampliam, dentro do sistema prisional. O direito ao chamamento nominal é violado; não há acesso aos seus direitos previdenciários (mesmo prestando serviço); o auxílio-reclusão, que poderia ser prestado à sua família também não acontece (pela informalidade do trabalhador preso e do preso trabalhador); o acesso a medicamentos controlados pode esbarrar em  dificuldades burocráticas para se efetivar (como por exemplo, a entrega do coquetel anti-HIV pelo poder público, que somente é feita mediante apresentação do CPF); educação e trabalho, perduram inacessíveis; e o direito à visita de seus próprios familiares lhe é negado.

“Nada deixa um homem mais doente

Que o abandono dos parentes”.

Diário de um detento – Racionais MC´s

Evidenciando a problemática, destaco um trecho de transcrição da oitiva de uma audiência por videoconferência de um sujeito privado de liberdade com 27 anos de idade, requerente de sua certidão de nascimento. Mais uma demonstração de grave violação do Estado, ao restringir a visitação da pessoa presa, família e amigos (as) da mesma, sem documentação.

Preso: Eu sempre tive pessoas que quiseram vir me visitar nesse lugar aqui, mas sem documentação, fica difícil, entendeu, vossa excelência?

Pelo amor de Deus, vossa excelência, só a senhora pode me dar essa oportunidade...pelo menos minha certidão. Seis anos, poxa, um tempo muito difícil nesse lugar onde eu ‘tô’, entendeu? Eu sei que eu fiz por onde, mas...só preciso dos meus documentos mesmo.

Outro caso que não posso me furtar de retratar, é de um processo do SEPEC, que expõe a situação de uma mãe que não estava conseguindo visitar o próprio filho, por não poder comprovar, legalmente, através de documentos, tal maternidade.

Casos semelhantes são tão absurdos quanto frequentes, tendo em vista que, para efetuar o cadastro de visitante, o grau de parentesco deverá ser comprovado por meio de documentos. É uma violação de direito para ambas as partes, para o filho, que não pode ver sua mãe, e para mãe, que tem seu direito de visitar seu filho negado, fragilizando assim, um dos únicos vínculos afetivos que possui e agravando, com isso, o risco de vulnerabilidade social em que o privado de liberdade se encontra.

Também é sabido, por exemplo, que todos os cursos do sistema S e também o Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM - exigem CPF, indicando que, a falta de documentação civil, impede a pessoa com restrição de liberdade de participar de cursos profissionalizantes e qualquer outro tipo de curso, concurso e/ou vestibular quando instituídos dentro das unidades.

Raras são essas oportunidades e, quando existe alguma chance, o direito de participar lhe é negado, o que invalida ainda mais qualquer tipo da chamada (e reconhecidamente falida desde seu princípio) “reintegração social”, a doutrina “re” - a ideia de que a pena serve para reformular moralmente um delinquente.

Primeiramente porque, para um sujeito sem registro civil, nunca houve uma real socialização, pois esteve sempre à margem da sociedade. A falácia se completa, quando sabe-se que, por exemplo, no ano de 2015, de acordo com relatório extraído do SIPEN (Sistema de Identificação Penitenciária), pelo menos, 929 pessoas que foram acusadas, condenadas, cumpriram suas penas, e foram liberadas, ficaram sem certificação, sem que o Estado tivesse confirmado qualquer tipo de identificação, ou seja, egressos sem qualquer documentação civil, que retornam ao marginal, ilegal, informal, invisível para a sociedade, somado ao estigma de sua ficha criminal de ex-detento. 

Seria crível pensar numa “reinserção social” para quem nunca foi de fato inserido como cidadão (nem formalmente), e retoma sua “liberdade” com chance nula de formalizar qualquer ato civil, por não ter sua documentação, acrescida ao peso de ter sido fichado criminalmente?

Uma distinção entre igualdade e equidade deve ser um ponto a ser discutido nessa sociedade neoliberal (liberdade negativa- formal versus liberdade positiva - real), também levando em consideração a particularidade brasileira de capitalismo periférico e dependente. Por exemplo, todo mundo tem direito de ir ao cartório providenciar sua certidão de nascimento (liberdade formal), mas nem todos têm condições materiais para a realização desse direito.Nesse ponto, é de suma relevância expor que foi somente a partir da lei 9.534, de 10 de dezembro de 1997 que o registro de nascimento passou a ser gratuito. Porém, ainda é necessário destacar que, no caso de perdas do documento físico, para tirar a segunda via, somente pagando ou com uma declaração de hipossuficiência, que deveria estar disponível nos cartórios, mas ainda não é uma realidade em sua integridade. Precisamente, um ponto que precisa ser flexibilizado, visando a garantia de acessibilidade para grupos que sobrevivem tendo que lidar com os mais profundos níveis de vulnerabilidades, material e social.

Característica ideológica essa, própria do direito burguês, segundo Alessandro Baratta (2011, p, 164), é a de abstrair a real desigualdade dos sujeitos, contribuindo, com a igualdade formal, para reproduzir e legitimar o sistema de desigualdade substancial.

Malaguti, discorrendo sobre a década de 30 do século XIX, no Brasil, cita Antonio Edmilson Batista Rodrigues, quando aponta que “para a unidade nacional, requer-se uma unidade de ordem que clama por instituições de controle que delimitem ‘o espaço possível da cidadania nesta sociedade’” (RODRIGUES apud MALAGUTI, 2003, p. 138).A identificação no Brasil sempre foi muito marcada pela experiência da polícia civil, de uma forma geral, como se fosse um domínio restrito de especialistas na polícia. Explicitamente em territórios vulneráveis, nesse caso, quando um morador da favela foi impedido de sair de seu território para trabalhar por não estar portando seu documento de identidade e ainda é fichado por militares do exército. Em nome da segurança de quem, acontece a intervenção federal? Essa “sensação de segurança” para alguns acontece em detrimento de um subgrupo bem específico e historicamente criminalizado, aquele corte, aquela fragmentação necessária se utilizando do “racismo” para justificar o poder do direito de matar. Quer dizer, quando maquiavelicamente há uma suspensão da lei para alguns, em nome da garantia de um suposto direito, para outros.Uma reportagem da Folha do dia 23 de fevereiro de 2018 explana a situação do pedreiro Edvan Silva de 47 anos, que reclamou da abordagem policial ao relatar que foi proibido de sair da favela Vila Kennedy, onde reside, por não estar portando seus documentos. Relata que estava somente com sua marmita para o dia de trabalho, que conseguiu como pedreiro, e como teve que voltar para casa para buscar sua documentação, caso contrário seria impedido de sair da comunidade, atrasou-se e acabou sendo demitido.Para tanto, é necessário esclarecer um indicativo que tende a reafirmar a hipótese de a principal função da documentação ainda ser o controle de sujeitos (sujeitados - suspeitos), dada a reprodução, ainda recorrente, na maioria dos estados brasileiros, em utilizar como Órgão emissor da Carteira de Identidade Civil, a Secretaria de Segurança Pública (SSP). Fato importante a ser destacado nesse contexto, mas que escapa do recorte do presente trabalho, já que não é o caso do Rio de Janeiro, que tem como emissora o DETRAN (Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro).

O senador Barata Ribeiro apontava preocupações e tinha o intuito de “provar que as práticas de identificação se prestavam a estigmatizar e desclassificar socialmente aqueles sobre os quais a justiça ainda não tinha culpa formada. ” 

As práticas de identificação criminal, embora já existentes sob a forma de Identificação Judiciária, têm seu nascimento legal no bojo do regulamento que implanta a polícia. É justamente esse conjunto de leis que normaliza as condições de funcionamento de seus serviços, reservando espaços e tratamento distintos aos cidadãos – requerentes voluntários de carteiras de identidade e outros documentos probatórios de conduta- e aos criminosos e suspeitos de sê-lo -, obrigados a terem seu corpo descrito e sua identidade revelada. (CUNHA, 2002, p. 47).

Malaguti (2003) aponta que, um ano antes da Independência, 1821, entrou em voga um decreto que regulamentava as práticas policiais e judiciais, expondo que, 

[...] prisão só com mandado judicial, acusações formais 48 horas após a prisão, não poderia haver prisão sem condenação por tribunal aberto, não se usariam mais grilhões e correntes. Apenas um detalhe: as mudanças seriam só para os cidadãos, ou seja, homens/brancos/proprietários. É o nascimento da cidadania no Brasil. (Malaguti, 2003, p.143)

Ou, uma “sociedade de “castas”, como exemplifica o jurista Busato (2003). Um judiciário seletivo, e um “direito burguês” que serve para o controle social, se pensarmos, mais ainda, essencialmente, em características da legislação penal, que explicita tal seletividade, com a fiança, com a liberdade dependente do poder aquisitivo, e os privilégios e condicionalidades, de acordo com grau de instrução do apenado.Quer dizer, o direito burguês é descontextualizado do modo como produzimos e reproduzimos nossa existência, descontextualizado da sociabilidade capitalista. Baratta afirma que “o processo de criminalização representa um conflito entre detentores do poder e submetidos ao poder” (BARATTA, 2011, p 13).O encarceramento em massa da força de trabalho excedente, por exemplo, utilizando a economia política da pena no desemprego pós-fordista, sugere a hipótese do movimento de criminalização da pobreza, gerado pelo processo de acumulação de capital ao longo dos séculos. 

O chamado “exército industrial de reserva” na sociedade capitalista tardia, segundo Baratta (2011), cumpre não só funções específicas dentro da dinâmica do mercado de trabalho, mas também fora daquela dinâmica, pensando no emprego da “população criminal” nos mecanismos de circulação ilegal do capital, como no circuito de drogas consideradas ilícitas, por exemplo. 

Ainda de acordo com Baratta,

Na perspectiva da criminologia crítica a criminalidade não é mais uma qualidade ontológica de determinados comportamentos e de determinados indivíduos, mas se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos, mediante uma dupla seleção: em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais, em segundo lugar, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penais sancionadas. A criminalidade é [...] um “bem negativo”, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema socioeconômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos (2011, p. 161).  

Para levantar a complexidade que perpassa a discussão da documentação é necessário apontar que ela esbarra em formas de controle, como aparato das tecnologias de regulamentação da população. Controle de suspeitos - sujeitados versus sujeitos de direitos – quer dizer, cidadão, que não deixa de ser sujeitado, refém do poder soberano pela normalização de atos, comportamentos e sobre as novas tecnologias de informação de dados.  

Por exemplo, é sabido que estamos sendo vigiados até quando informamos o nosso número de CPF numa farmácia para ganhar algum desconto, ingenuamente. Não desconfiamos que, por essa razão, os remédios que compramos ficam vinculados ao nosso documento, atendendo, com isso, a interesses da indústria farmacêutica, planos privados de saúde e afins. Rendendo, inclusive, uma investigação, segundo reportagem, do Ministério Público do Distrito Federal para apurar se redes de farmácias do país estão repassando ou vendendo dados sigilosos de clientes, apontando aqui, somente um, dos diversos casos de usos indiscriminados de dados pessoais que estamos sujeitos com nossos números de controle de documentações.

Ou seja, o acesso às políticas públicas só acontece mediante comprovação de toda burocracia documental da pessoa-cidadã usuária, e através da mesma, se realiza a normalização da sociedade (FOUCAULT, 2002), como forma de controle estatístico dos programas sociais, de indicadores de público-alvo etc., instrumento essencial para o biopoder em uma de suas formas de dominação, que nos é praticamente imposto desde toda a obrigatoriedade da cadeia documental para atingirmos o status de reconhecidos cidadãos perante o Estado.

Fica evidenciada a grave violação de direitos humanos que o Estado comete, numa sociedade de classes, de “cidadania regulada”, ao não cumprir seu dever de reconhecer um sujeito de direito institucionalmente, um direito subjetivo, que deveria ser garantido por quem exige burocraticamente uma comprovação física de documentação, para acessar o mínimo social de um status de cidadão. Todavia, no contexto pesquisado, o “braço punitivo” ainda não pestaneja ao torná-lo sujeitado ao Estado penal, quando o prende, e neste momento, sem exigências de afirmação de sua verdadeira identidade e, particularmente, o ato mais violador, sem compreender todas as ausências que aquela pessoa foi obrigada a lidar pela falta de um documento civil.

Neste sentindo, Zaffaroni expõe, e reproduzo, na tentativa de corroborar com a lógica que, “rompe definitivamente com a unidade teórica do direito penal quem se limita a indicar aos operadores judiciais como devem eles decidir os casos, silenciando sobre o sentindo, os compromissos, as consequências humanas e os custos sociais de tais decisões” (ZAFFARONI, 2010, p. 25).

Ensinam os dados sociais que o poder punitivo seleciona pessoas a partir do estereótipo criminal, e a conduta delas não passa de um pretexto que outorga fundamento jurídico-objetivo àquela seleção. O direito penal deve tentar neutralizar, tanto quanto possível, os componentes sócio-subjetivos arbitrários da seletividade punitiva. Para fazê-lo, recalcando essa tendência do estado policial, o direito penal procura assegurar-se de que qualquer pretensão de exercício punitivo tenha como pressuposto, pelo menos, uma ação. Embora tal precaução não seja capaz de neutralizar a seleção por vulnerabilidade da pessoa criminalizada, ela garante, no mínimo, que a criminalização secundária não se formalize sem que o sujeito tenha manifestado certa conduta, requisito sem o qual o poder punitivo incidiria num grau insuportável de irracionalidade discriminatória. É intolerável que se pretenda formalizar juridicamente poder punitivo sobre outro ente que não seja uma pessoa e por outro motivo que não se assente em uma conduta dela. Portanto, no limiar de nossa construção, cumpre excluir do conceito de delito toda formulação legal que resultasse no exercício de poder punitivo sobre coisas ou animais[...]. (ZAFFARONI, 2010, p.26)

Vera Malaguti, dispõe, em nota de rodapé, uma reflexão certeiramente cabível no auxílio da legitimação de um elemento fundamental, quando aponta que: “o grande criminalista Augusto Thompson afirmou, em certa ocasião que, a diferença entre criminosos comuns e criminosos políticos é que os criminosos comuns são políticos, mas não sabem” (THOMPSON apud MALAGUTI, 2003, p.171).

Outra vertente explicitada, é a utilidade dessas pessoas sem documentação, passíveis de serem partícipes somente ao considerado ilegal, periférico, marginal na sociedade. A utilidade desse subproletariado na conjuntura capitalista brasileira, podendo ocupar lugares com as taxadas ilegalidades, como o tráfico de drogas, por exemplo, é demonstrada numa possível alusão à música “Meu Guri”, de Chico Buarque, em que o não cidadão, sem documento, só é “reconhecido” pelo Estado quando transcende a barreira da lei. Pela sociedade, só é reconhecido quando transcende a barreira da vida, estampado nos jornais.

 A falta de identidade civil indica uma atribuição de que alguém pode ser tratado como menos que humano, no código civil. Sabe-se que a condição da cor de uma pessoa e o território que ocupa já constituem atributos suficientes para práticas abusivas punitivas e policialescas, mas a falta de identificação, acirra, minimamente, por desburocratizar o abatimento (“fazer morrer”) da pessoa, ou, simplesmente, deixá-lo abater-se (“deixar morrer”), tamanha ausência do essencial, que deveria ser subsidiado pelo poder estatal para sua reprodução.

Em meio a tanta falta que o sujeito sem documentação é submetido, umas das únicas garantias e “pertencimentos” são: uma (sobre)vida objetiva material e subjetiva, inserida na informalidade do trabalho, na precarização das condições básicas de subsistência; o status de suspeito incondicional, por essa condicional da não vinculação formal com o Estado; um “guri” sujeitado que é condenado à pena de “morte civil” de nascença, conforme analogia discorrida, subtraído da sociedade, na marginalidade, passível de uma ação estatal somente de cunho policial; quando sofre a dupla marginalidade, o estigma ao quadrado, quando é subjugado somente com seu número de “identificação criminal”, reconhecido como pessoa, somente na aplicação do código penal.

E para voltar ao problema dos castigos legais, a prisão com toda a tecnologia corretiva de que se acompanha deve ser recolocada aí: no ponto em que se faz a torsão do poder codificado de punir, em um poder disciplinar de vigiar; no ponto que os castigos universais das leis vêm se aplicar seletivamente a certos indivíduos e sempre aos mesmos; no ponto em que a requalificação do sujeito de direito pela pena se torna treinamento útil do criminoso; no ponto em que o direito se inverte e passa para fora de si mesmo, em que o contradireito se torna o conteúdo efetivo e institucionalizado das formas jurídicas. (FOUCAULT, 2013, p. 211)

Paralelamente, aponta-se um notório reforço da esfera mercantil da documentação, em detrimento do social, com a utilização do Cartório, por exemplo, uma instituição de iniciativa privada empregada para a emissão do primeiro documento, daí a extrema importância em desconstruir a tal “cultura do ato pago”. 

Fica manifesta a contradição e a serventia da documentação, como uma das funções históricas. Considerando-a um dos aparatos de controle utilizado pelo governo como um exercício de poder, um controle de suspeitos, de sujeitados. Tendo em vista que, o mesmo documento, que serve para garantir acesso aos direitos, benefícios sociais, também é de caráter tributário, como o CPF, o que indica uma predisposição de denunciar inadimplência, fato este que, afasta o “cidadão” de usufruir sua cidadania, por conta de uma situação socioeconômica vulnerável e inviabiliza benefícios, quando em situação irregular, como retratado em inúmeros casos na tentativa de preenchimento do cadastro para receber o auxílio emergencial.

Para finalizar, é relevante sublinhar que o objetivo da presente pesquisa foi explicitar a problemática gravíssima do sub-registro civil de nascimento e suas consequências, ainda pouco explorada, dada sua importância e complexidade, atrelada aos casos de pessoas que sofrem uma segunda violação do Estado brasileiro, ao serem detidas e terem seu primeiro contato formal com a Justiça, na forma penal (assim como os escravos), ainda nos tempos atuais, e que, a criminalização racial e da pobreza, perpassam a questão do sub-registro.

Para pensar sugestões de estruturação e fortalecimento de uma política pública de documentação, é essencial a percepção de que o acesso à documentação básica, no Brasil, não se faz de maneira organizada. Não existe “alguém” encarregado no país, que cuide especificamente da política de acesso à documentação. Não há uma lei brasileira com diretrizes para os órgãos emissores de documentos, não se cumprindo, ao menos, uma comunicação qualificada entre os mesmos.

Sendo uma das urgências, que aponta para essa complexidade, a compreensão de que a cadeia documental, necessária para o exercício de uma cidadania formal, consiste em uma ordem construída a partir de órgãos distintos, e que, para emitir um documento, pode-se exigir um outro. 

Ou seja, essa falta de institucionalidade, minimiza a ideia de política pública, de direito, e reforça traços de assistencialismo, clientelismo e autoritarismo. Fato que aponta para uma demanda imprescindível de elaboração, com concretude de ações, acordos estabelecidos e formalizados por diferentes instituições dos programas/projetos, no intuito de cessar com a insegurança da garantia de acesso.

Podemos refletir em ações como: elaborar oficinas de organizações de fluxos, permanentes, na pretensão de facilitar a comunicação entre gestores de órgãos que proporcionam cada documento civil; ampliar a divulgação dos documentos indispensáveis ao registro de nascimento, nos exames de pré-natal; providenciar material informativo, publicizando, sem deixar de atentar ao fato de, a maioria do público- alvo, ser analfabeta; disseminar a importância de realizar o registro de recém-nascido, independente da presença do pai; capacitar registradores, escreventes, no intuito do cuidado de não reforçar o estigma; articular o horário de atendimento do cartório e o momento da alta nas maternidades nas unidades interligadas já instaladas, além de ampliar o número das mesmas em unidades de saúde do estado; disponibilizar serviços itinerantes e organizar mutirões, com objetivo de proporcionar cobertura em locais de difícil ingresso; capacitar profissionais do CRAS, que possuem um trabalho essencial ao chegar de fato em territórios com populações mais vulneráveis, fomentar e informar os usuários, em diálogo acessível, sobre a importância e os caminhos para conseguir a documentação.  Breves apontamentos de sugestões passíveis de reflexão para um país que não conta com uma política pública de fato, com institucionalidade e tudo o que demanda dela, orçamento, financiamento, capacitação, avaliação e monitoramento.  Desde 2007, com a institucionalização do Decreto nº 6.289 (que foi revogado no ano de 2019, para entrar em vigor o de nº 10.063), contamos somente com o Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica.

Espero que os argumentos levantados não só possam contribuir, mesmo que singelamente, com o avanço da temática e dos preceitos conceituais, mas que, sobretudo, reverberem a importância e a complexidade do assunto tratado. Explicito aqui, a intenção de somar pesquisadores, profissionais, gestores de políticas públicas em prol da construção, ampliação e ajustes de políticas que promovam o efetivo acesso à documentação e à cidadania.

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