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Tarso Genro

Advogado, político filiado ao Partido dos Trabalhadores, foi governador do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil

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Bandoleiros da política

É da separação radical entre moral e política que o barro do futuro está sendo moldado

Protesto de extrema direita na Polônia (Foto: Reprodução)
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Os três grandes eixos do primeiro ano do governo Lula foram encaminhados e cumpridos dentro das estreitas margens da democracia republicana: a guerra contra fome recomeçou; a política externa brasileira nos retirou da vergonha mundial sob comando de um chefe de Estado respeitado e consciente do seu poder e responsabilidades mundiais; e o arcabouço fiscal foi encaminhado para ser a travessia de uma economia empobrecedora e covarde para uma dinâmica nova de integração do Brasil no sistema capitalista global, na sua melhor possibilidade. Num mundo em guerra e num período de transição energética e cobrança, pela natureza em rebelião, das devastações proferidas contra ela.

A vitória de Javier Milei na Argentina com 55,69% dos votos, no segundo turno das eleições presidenciais, foi comemorada com bandeiras nacionais ao alto e com os gritos dos infalíveis grupos de direita, que chegaram – alucinados – a rasgar a moeda nacional e usá-la como confete no seu carnaval demencial.

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Era a celebração da vitória de um candidato e também um final melancólico de um longo período de crise de identidade do país argentino, da esquerda às forças políticas mais tradicionais: vitória do “anarco capitalismo libertário”, derrota de um modelo sem rumo e sem ideias e varredura definitiva – em minha opinião – não do peronismo como via “social” autoritária e popular que já se esgotara bem antes, com a morte de Perón, mas de um movimento fragmentado em múltiplas correntes desde a volta do exílio do “Grande Líder”. Perón foi um grande líder para a Argentina, porque ela, na educação pública e no confronto com a fome, deve ser comparada à Inglaterra, não com a Suiça, assim como Fidel é um grande revolucionário para Cuba, porque seu país deve ser comparado – na fome e na educação – com o Haiti e o Paraguai, não com os Estados Unidos e a França.

Os líderes latino-americanos que humanizaram suas nações em formação – pelo combate à fome e pela instituição da educação pública e gratuita para seus povos – enfrentaram estruturas coloniais carcomidas, estiveram conectados com a sua época e, ao mesmo tempo, à frente dela. Não me refiro aqui às centenas de líderes revolucionários que morreram pelas utopias da igualdade socialista, mas sim aqueles que chegaram ao poder – dentro ou fora da ordem – e deixaram exemplos que melhoraram, em alguma medida, a vida dos seus respectivos povos, criando uma memória nacional “progressista” e socialmente democrática: José Battle y Ordoñez, Presidente do Uruguai, Juan Domingo Perón, Presidente da Argentina, Getúlio Dornelles Vargas Presidente do Brasil, Jacobo Arbens, Presidente da Guatemala, General Velasco Alvarado, Presidente do Peru, são exemplos de líderes que – contra a maré colonial imperial – deixaram exemplos de dignidade política para os seus pósteros ou desenvolveram políticas de Estado que influíram nas respectivas civilidades nacionais.

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Todos estes grandes líderes tiveram algum tipo de conexão com parte das classes dominantes dos seus respectivos países, cooptaram-nas por um certo período e também foram cooptados e traídos por elas, em ciclos mais agudos de crise ou de enfrentamento com os interesses do sistema colonial-imperial. As margens de manobras para a implantação dos projetos nacionais democráticos, todavia – ora mais largas, ora mais estreitas – foram paulatinamente se estreitando, com a transformação do sistema colonial-imperial em dominação complexa do capital financeiro, já disseminado como força mobilizadora do mundo integrado, a partir de estruturas internas de poder, dentro e fora dos países dependentes.

Assim foram se diluindo, nas democracias ocidentais atuais, a força constituinte da soberania popular: separando a igualdade da liberdade e desgastando rapidamente a legitimidade dos governos populares que prometiam reformas e melhorias sociais, tanto pela renda como pela proteção social.

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Lula, no Brasil, é a exceção revista da memória destes grandes líderes do passado, que assentou no seu primeiro ano de governo uma saída especial para o Brasil. Aqueles líderes deixaram um rastro de esperança, hoje revivido por ele como um progressismo-democrático especialmente moderado, agora com ainda mais estreitas margens de manobra: a saída socialista generosa de Salvador Allende, com a profundidade que ele professava, não tem mais possibilidade de prosperar; as mobilizações do progressismo populista se esgotaram no fracasso econômico e na sua incapacidade de renovar-se; as reformas, por dentro da soberania popular constituinte perderam, cada vez mais, sua autenticidade, ora sufocada pelas participações horizontais em rede. Estas, que são o que fazemos delas, até agora se mostraram ineptas para constituírem relações mais democráticas e solidárias entre os cidadãos e se mostraram mais apropriadas para a dominação dos fetiches do mercado e para iludir que todos podem ser empresários de si mesmos.

Juarez Guimarães, num texto brilhante sobre o que seria um “socialismo democrático” baseado na soberania popular, mostra que a neutralização desse princípio revolucionário da democracia política foi feita, em primeiro lugar, com separação concreta entre o “princípio da liberdade” e o “princípio da igualdade”. Duas experiências frustradas no século passado mostraram as terríveis dificuldades enfrentadas pela esquerda, quando tentou integrar – dentro da democracia – “liberdade e igualdade”, em direção a uma sociedade pelo menos mais igualitária: as experiência das eleições para Assembleia Constituinte de Weimar, em janeiro de 1919, com maioria de delegados social-democratas, de cujo fracasso emergiu – não a mínima igualdade – mas a máxima desigualdade sem liberdade do regime nazifascista –; e a experiência do governo de Salvador Allende, entre 1970 e 1973, quando o Presidente foi golpeado pelas Forças Armadas que propiciaram um brutal banho de sangue, enterrando a liberdade e a igualdade no mesmo túmulo da democracia liberal.

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A crise da Argentina, que elegeu Javier Milei, a crise de Weimar, que gerou o nazismo e afundou a revolução alemã, bem como a crise do governo Allende, depuseram partidos e lideranças de governos de “esquerda’, segundo a época que surgiram, que tiveram muitos enfrentamentos e características comuns: contraposição entre miséria e riqueza sem vias visíveis de superação, especulação financeira alimentando a inflação diária, capitalização das “classes altas” por fora dos padrões monetárias vigentes; aumento frequente do custo de vida sem soluções do Estado que tivessem condições de serem aplicadas sem desmantelar a economia formal; aumento real ou imaginário da corrupção, ascensão dos índices de criminalidade, tudo criando uma situação político-social propícia a facilitar uma unidade eleitoral entre conservadores, extrema direita, direita tradicional com os criminosos de todas as ordens e hierarquias.

Processos semelhantes ao processo argentino, com a vitória de líderes como Javier Milei, potencialmente podem ocorrer em muitos lugares da América Latina. O fenômeno não é mais originário de um movimento político isolado, mas já é peculiar – em escala mundial – pois se serve para crescer de um “cansaço da democracia”, que gera insatisfações sociais de peso, cujo “ethos” político é propício para demagogos e sociopatas conquistarem o poder, por forças alheias ao “jogo”liberal-democrático. Os que gostavam de golpes nas velhas formas de militares ocupando rádios e palácios também cansaram, já que foram – pelo menos por algum tempo – atraídos pelas guerrilhas golpistas nas redes dominadas pelos novos e ousados meios de cooptação das subjetividades formadas no mercado.

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As velhas respostas de resistência à opressão social de classe, raça, sexo, todavia, geram uma soma de recalques e ódios individuais no interior destas novas formas de luta, originários de diferentes tipos de infelicidade, que somam indivíduos dispersos, em grupos limitados, não mais massas identificadas pelas ideologias classistas, mas conjugadas por um ódio mortal ao presente.

É desta separação radical entre moral e política e destas novas formas anônimas de controle mental dos indivíduos para a formação de grupos de bandoleiros da política, que o barro do futuro está sendo moldado. Encaminhar soluções possíveis para regular as plataformas que os acolhem, melhorar rapidamente as condições de segurança pública para as pessoas viverem e trabalharem, preencher o arcabouço fiscal de normas regulatórias que gerem renda, trabalho e novas identidades coletivas pelo trabalho decente, vai ser o cimento da reintegração democrática entre a afirmação da liberdade e a possibilidade de mais igualdade. Parece pouco, mas é muito, num mundo que desaba. É o verdadeiro começo do terceiro governo Lula que preparou, meticulosamente, as condições políticas para que isso fosse possível.

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