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Wilson Ramos Filho

Jurista, professor e escritor

68 artigos

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Cabaços

Precisava de alguma aventura. Não suportava mais a bruaca martelando no seu ouvido que era um inútil. Uma ingrata que nunca trabalhou na vida. Ele não merecia. Fez intercâmbio, fritou hambúrguer nos isteites, fala inglês, poderia ser embaixador se bem-nascido, amargurou-se, sarcástico, pensando em Calígula e em Incitatus

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Você é um pamonha, gritou a mulher, não tem iniciativa. Não se deu ao trabalho de responder e nem ela esperava dele algo diferente. O amor já tinha chegado naquele estágio superior em que os insultos e as carícias não surtem efeitos.

Espevitada, envolve-se em tudo com entusiasmo fremente. Atribui-se a jovialidade facial à prática de plantar a lua. Não se trata de uma seita. Integra o movimento naturista que amealha adeptas em vários países, explicava com desconcertantes detalhes, frenética, a quem lhe perguntasse. O corpo feminino é como a lua, possui fases. Colhe-se, a cada ciclo, com um copinho vaginal de silicone desses que vende em qualquer farmácia, a menstruação e a aplica no pescoço e no rosto antes de dormir. No começo dava para o mês inteiro e sobrava para adubar as samambaias, agora próxima do climatério, administra o endométrio com crescente parcimônia apenas ao redor dos olhos e sobre o buço. O próximo 4 de agosto, dia mundial do movimento plante sua lua, talvez seja o seu último. A pedido do marido - ô cara chato, exclamou na oportunidade - passou a omitir o tratamento quando lhe elogiavam a tez, lisinha como a dos alhos que, a cada manhã, em segredo, mastigava. Casamento tem dessas coisas. 

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O marido escapou por pouco da reforma previdenciária. Os colegas na procuradoria não tiveram tanta sorte. Sua chefe, que se aposentaria com 54, terá que esperar até os 62, resignada. É uma bolsonarista daquelas, de quatro costados, família conservadora. Uma verdadeira patriota, daquelas de bater continência para a bandeira estadunidense e de Israel. Uma rematada imbecil, portanto, concluía, guardando para si tal convicção. Já mandou contar seu tempo, averbar o anterior, estará aposentado daqui a pouco.

A intensa não se conforma. O mocorongo se dedicará a mexer nas panelas, de pijama e pantufas, perguntando que horas ficará pronto o almoço, para me aporrinhar. Será um purgatório, ouviu-a se queixar para a mãe ao telefone. Fala pelos cotovelos. Adora estar apideitede em todas as suas já não modestas dimensões. Irrita-o quando faz aspas no ar com dois dedos em cada mão ou quando tenta ser divertida com expressões nada originais. É não-sei-o-quê que fala, sem o verbo no reflexivo; passar vergonha no crédito ou no débito; sextou, entre outras frases que ele considera como indubitáveis atestados de mediocridade pequeno-burguesa pretensamente espirituosa. Está com ela pelas tampas.

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Andava mais enlouquecida desde que lhe roubaram o carro. Renderam-na na entrada do prédio, armados até os dentes. Culpava-o por não ter renovado o seguro e por não ter descido para a esperar na portaria, avisado de que estava chegando. Mão-de-vaca, sovina e caínho eram os adjetivos mais amenos com que era distinguido. A coitadinha ficou traumatizada. 

E agora essa. Uma mensagem de uatizápi, um número paraguaio, dizendo onde estava o carro. Ciudad del Este. Aparentemente abandonado. Com fotos e tudo. Retornou a ligação e nada. Era o carro da família, sem dúvida. Estaria ainda lá? Se falasse para ela o que assuntava fazer ela não deixaria. Diria que nem para isso ele servia, palerma.

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Precisava de alguma aventura. Não suportava mais a bruaca martelando no seu ouvido que era um inútil. Uma ingrata que nunca trabalhou na vida. Ele não merecia. Fez intercâmbio, fritou hambúrguer nos isteites, fala inglês, poderia ser embaixador se bem-nascido, amargurou-se, sarcástico, pensando em Calígula e em Incitatus. O olavismo só atrapalha o nosso governo. Mais de trinta anos no serviço público, tem regalias desde que passou a ajudar as esposas de dois procuradores no próspero negócio de palestras que montaram. 

Socorreu-se com um amigo do tempo do cepeoerre que servira na fronteira e hoje se dedica à complaiance de sistemas de segurança, que mexeu os pauzinhos até obter a confirmação. O carro estava lá. Contaram em casa que iriam pescar no paranazão. Com a chave reserva e o documento do carro usaram milhas rumo a Foz do Iguaçu, entusiasmados com o que haviam planejado. Do aeroporto, táxi para a Ponte da Amizade, comentando sobre a cabacice do juvenil do jejum com a certeza de que não dará em nada a fiasquenta revelação das conversas com o caubói de Maringá. Estão blindados, são da cozinha de vários ministros. Há mais de mil e quinhentos procuradores da república no país, todos moralistas, quantos estranharam o conteúdo das conversas no telegram? Mandam e desmandam. Ambos gargalharam com a ingenuidade da esquerdalha ao imaginar o contrário. O motorista concordou. Não gostaram. São da capital da república que interessa, não suportam intromissões de subalternos nas conversas alheias. Fecharam as caras e as bocas. 

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Chegaram do lado de lá ainda antes do almoço. O carro, como nas fotos, inteirinho, embora sujo. Disfarçaram, ficaram por ali até o movimento nas ruas aumentar. Compraram umas muambas, beberam cerveja de litro para criar coragem. Não podia dar errado. O carro era dele. Estava com a chave e o documento novo. Se alguém aparecesse improvisariam indignação, apelariam à polícia local, sei lá. O amigo, militar reformado, estava empolgado, tinha experiência. O método era errado, admitia, deveriam ter procurado as autoridades, mas chumbo trocado não dói. Roubariam o carro roubado com a certeza de cem anos de perdão, solenizava a piada ruim. No tempo da revolução era assim. Se tivessem seguido o manual os comunistas teriam vencido. O outro concordou, vivenciava na prática profissional a necessidade de contornar a legalidade para se alcançar os objetivos desejados. 

Abriram o porta-malas com alguma hesitação, estava tudo lá. Até a blusa de frio. Curitibano sempre tem um agasalho no carro. Entreolharam-se. Agora ou nunca. Socaram as sacolas lá dentro. Abertas as portas traseiras, jogaram as mochilas. Só faltava o carro não pegar. Apressaram-se como quem tem compromisso. Pegou. Primeira. Percorridos poucos metros, engarrafamento. Adrenalina a mil. Vontade de ir ao banheiro. Mãos trêmulas. O milico, valentão, de cara feia. Se aparecesse um indiozinho daqueles reclamando a viatura daria um carteiraço. 

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Ela vai ver quem é pamonha. Ficará orgulhosa de minha audácia e destemor. Problema quase resolvido. Poucos metros até a fronteira. E o trânsito parado. À frente, um grupo de chirus em atitude suspeita. Dois deles se aproximam, lentamente, um de cada lado do carro. Não abrem as janelas, lívidos. Por mímica entendem que pedem carona. Nem pensar. Com gestos algo exagerados fazem que não. Buzina. A camisa empapada no banco. O amigo pega o celular, nervoso, para tentar se distrair. 

Ao cruzarem a faixa transversal, no meio da ponte, o militar, exultante, punho direito descendo à altura do peito, emite um desafinado iés. Os dois se abraçam e proclamam, juntos, como quem comemora um gol, brasil. 

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Resolvem tocar direto vangloriando-se e se comparando aos heróis de antigos filmes. Sensação esquisita, entre a culpa e o regozijo, como se observados, seguidos, avaliados. Não dá para querer fazer tudo certinho, o que nos singulariza como povo é nossa inesgotável capacidade de transgredir, de burlar a burocracia, viva o jeitinho brasileiro. Traficante tem que morrer, tarado tem que ser castrado, escola sem-partido, valores da família, vagabundo só canta no pau-de-arara, televisão é uma pouca-vergonha, o de sempre, senso comum da classe média. 

Dez da noite veio o previsível relaxamento depois de tanta tensão. Haviam tomado o primeiro avião, dia pesado. Exaustos. Merecemos umas cervejas, arrumar um lugar para dormir. 

Quilômetros adiante, vermelha, brilhante, pisca-piscando luminosa, mumpanters. De soslaio o motorista consulta com o olhar o intimorato passageiro. Que vá, cúmplice, não temos nada a temer e precisamos celebrar em grande estilo a vitória do bem contra o mal. Parceria de caserna é assim. Só não pare na frente, vai que tiram uma foto do teu carro na porta da zona. Arrumaram um lugar discreto, perto de umas moitas altas, no escuro. Acionaram o alarme e entraram no inferninho como Terence Hill e Bud Spencer. 

Pagaram doses, assistiram alguns istripitises. Dois garotos comemorando a traquinagem. Constatou-se homem, empoderado, viril. Sentia-se emasculado desde que a Dona Encrenca começou a plantar a lua. Foi com duas. O coronel não quis, estava cansado. 

Amanhecia, bruma gélida, cerração que baixa, sol que racha, depenados depois de deixarem quase tudo que tinham em dinheiro vivo na casa das primas, saíram abraçados, o garanhão e o bêbado, como no tempo do quartel. Cambaleantes. Com frio e felizes.

O porre e o cansaço passaram imediatamente. As portas do carro todas abertas, forros arrancados, os bancos, estropiados, no chão. Não soou o alarme, teriam ouvido. Esquisito. Que barbaridade, onde já se viu um negócio desses. Não alcançavam entender o que se passara. As mochilas e as sacolas, intactas. Não faltava nada. Até o celular do milico, no painel. 

Um envelope restava preso no limpador de para-brisa, do lado de fora. Apertaram os olhos para ler o conteúdo da missiva, esticando os braços para ajustar o foco. Impossível. Bolsos remexidos em busca dos respectivos óculos. Em português castiço, atilado, encontraram um educado agradecimento sardônico. Haviam tido a gentileza de cruzar a fronteira transportando quilos de cocaína para eles.

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