CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
Carlos Alberto Mattos avatar

Carlos Alberto Mattos

Crítico, curador e pesquisador de cinema. Publica também no blog carmattos

256 artigos

blog

Cinema: Porque são humanos

“Ervas Secas” não pede compreensão nem perdão para as maldades e covardias dos personagens. Ceylan, um dos grandes da atualidade, quer dissecar aquelas almas

"Ervas secas" (Foto: Divulgação)
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Uma vez mais Nuri Bilge Ceylan nos transporta para as paisagens ásperas e a lógica flutuante da Anatólia, a região mais tradicional da Turquia. A pequena e remota aldeia onde se passa Ervas Secas (Kuru Otlar Üstüne) está mergulhada na densa neve de um longo inverno, o que recobre a feiura do lugar, mas não o caráter vacilante dos personagens.

O principal deles é Samet (Deniz Celiloglu), professor que há quatro anos espera uma transferência para Istambul. Ele é extremamente rude com os alunos, mas trata com suavidade e presentes uma menina sedutora, Sevim (“meu amor” em turco), interpretada pela incrível Ece Bağcı. Uma revista invasiva nas mochilas dos alunos vai gerar um mal-entendido que leva Sevim a denunciar Samet e Kenan (Musab Ekici), o colega com quem ele mora, por “aproximação inadequada”. Inicia-se um processo kafkiano contra os dois professores por suposta pedofilia.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Ao mesmo tempo, Samet e Kenan travam conhecimento com Nuray (Merve Dizdar), professora de outra escola. Esse triângulo permite que as reais personalidades de cada um se revelem gradativamente. “É preciso tempo para conhecer as pessoas”, diz Nuray a certa altura. De fato, num filme de pouco mais de três horas, Ceylan usa o tempo a seu favor para esgarçar o quanto pode a fibra ética de cada personagem, adulto ou criança. E nos deixa, ao final, com uma série de esfinges. 

Mestre da dialogação naturalista e profunda, o diretor turco inspirou-se nos diários do escritor e professor de arte Akin Atsu (co-autor do roteiro do filme anterior de Ceylan, A Árvore dos Frutos Selvagens) para compor essa suíte de longas e densas conversas. A espontaneidade da encenação e a qualidade dos diálogos os tornam absolutamente absorventes. Um deles, perto do final, chega ao ponto do sublime, quando o idealismo esquerdista de Nuray e o individualismo niilista de Samet convergem para um encontro comovente. Este é, para mim, a melhor sequência de diálogo que vi no cinema dos últimos anos, especialmente pela surpresa brechtiana que Ceylan nos reserva a meio caminho.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Na fabulação de Ceylan, sempre muito aberta a influxos paralelos, é o caso aqui de se pensar no valor da fotografia e do desenho como tentativas inúteis de se fixar uma ideia sobre alguém. Samet gosta de fazer portaits com sua máquina fotográfica, Nuray fotografa pessoas para dali desenhá-las. Mas o que são além de uma imagem, incapaz que é de sondar a complexidade de um ser humano? O próprio filme parece também se render a essa impossibilidade.

Há, ainda, um terceiro bloco no roteiro, em torno de um rapaz desajustado e um veterinário que mantém uma casa de chá. Não vi muita relação desse segmento com o resto do filme, mas uma parábola narrada pelo velho Vahit ressoa no sentido geral de Ervas Secas: “Eu curei duas vacas de um homem, e ele veio aqui e atirou no meu cachorro”. Perguntado por que ele fez isso, Vahit responde: “Porque era humano”.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Ervas Secas não pede compreensão nem perdão para as maldades e covardias de seus personagens. O que importa a Ceylan, um dos grandes da atualidade, é dissecar aquelas almas, umas fracas, outras fortes, mas todas profundamente humanas. Uma humanidade que pode tomar forma numa perna amputada, na traição de um amigo ou numa paixão infantil que não sabe como se manifestar. E nem a chegada do verão, quando as ervas ressequidas voltam a aparecer, servirá para sarar todas as feridas.

>> Ervas Secas está nos cinemas.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

O trailer:

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Carregando os comentários...
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Cortes 247

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO