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Filipo Perotto

Filipo Studzinski Perotto, 42, nascido em Porto Alegre (RS), doutor em Inteligência Artificial pela Universidade de Toulouse, atualmente é pesquisador titular da Agência Nacional de Pesquisa Aeroespacial Francesa (ONERA)

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Colecionando selos, moedas, tampinhas… e armas

(Foto: Wikimedia Commons)
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No meu tempo de infância e pré-adolescência, lembro de ter tido minha fase de colecionador. Primeiro foram moedas. Meus pais me haviam dado umas moedas, que do meu ponto de vista eram antigas. Estavam adormecidas dentro de um copo, num armário. Como o dinheiro no Brasil mudava muito rapidamente por consequência da inflação, as moedas mudavam também completamente: mudava o metal, o estilo, e inclusive o nome: réis, cruzeiros, cruzados, cruzados novos, até chegar ao real...

No começo eu pedia aos meus avós, tias e tios: “tem moedas antigas?”. Depois, na companhia de um grande amigo da escola, que também havia entrado na onda da coleção de moedas, passamos a frequentar o brique da Redenção, tão típico de Porto Alegre, e aí fomos descobrindo a numismática (arte de colecionar moedas), com seus critérios e mistérios. Víamos, nos álbuns expostos nessas bancas, moedas muito antigas, às vezes com centenas de anos, bem conservadas, brilhantes. Custavam uma fortuna, entretanto. Contentávamo-nos em olhar nos balaios, onde pilhas de moedas velhas, mas nem tanto, geralmente muito gastas, se ofereciam em troca de centavos. Ali a nossa alegria era descobrir alguns réis do começo do século XX, às vezes do final do século XIX, se a data já não estivesse apagada de tão lisa. Do lado dos grandes colecionadores, lembro de uma discussão acalorada entre comprador e vendedor, sobre o fato de uma moeda ter silo limpada ou não, coisa aparentemente grave nesse universo.

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Em um certo momento me desinteressei das moedas. Colecioná-las pareceu-me um culto ao capitalismo (sim, sim, pensamento de esquerdista). Mais tarde resolvi interessar-me por selos de outros países. Mas era mais complicado visto que eu não tinha nenhum correspondente estrangeiro. Além disso, diferentemente das moedas, os selos me pareciam infinitos. Nunca seria possível “completar” a coleção. Depois, tampinhas de garrafas e latinhas, que às vezes juntava pelo chão. Enfim, crescendo, deixei prá la tudo isso. Latinhas para a reciclagem. Mas ainda tenho, numa caixa de sapato, minhas moedas e selos.

A experiência recente atravessada pelo Brasil da extrema-direita no poder, cujos estragos ainda se estão fazendo, deixará feridas abertas na sociedade que vão demorar muitos anos a cicatrizar, no melhor dos casos. Com ela, observei o estranho engordamento da categoria “colecionadores de armas”. Dito assim, parece tão inocente, como se estes pudessem ser colocados junto dos colecionadores de moedas, selos e tampinhas. Ainda se dissimula o todo atrás da sigla CAC, “colecionadores, atiradores, e caçadores”. Caçadores, no Brasil? Trata-se de uma atividade muito restrita. Entretanto, analisando o perfil dos tais CACS, me parece que a caça que lhes interessa é aquela contra os “comunistas” ou contra “bandidos”, quando não pensam se tratar da mesma coisa. Enfim, para eles, “petralhas” e “vagabundos”.

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Não bastassem os inúmeros problemas que o Brasil já tem para resolver, conseguimos nesses últimos anos importar alguns que não tínhamos, nos aproximando ainda mais do “faroeste americano”. Grupos neonazistas pipocando por aí, e gente armada, literalmente se matando, ou fornecendo armas, agora adquiridas legalmente, às máfias, ao crime organizado, ao tráfico de drogas, às milícias, e aos malucos violentos em geral, solitários e enraivecidos pela enchente de fake news consumidos de forma voraz nas redes sociais.

Faço uma busca rápida na Folha de São Paulo com a palavra-chave “CAC”, e o que vejo são artigos do tipo: “Mulher morre ao atirar contra a própria cabeça ao tentar fazer selfie”, “Colecionador atira acidentalmente no filho de 9 anos”, “Assassino de eleitor de Lula tinha licença de CAC”, “Menino de 10 anos morre por disparo acidental ao brincar com arma”, “Morre estudante baleado por colega com arma de CAC em escola”, e por aí vai. Sem falar nas pessoas que reagem a assaltos, matam ou acabam sendo mortas, deputadas que perseguem pessoas negras na rua apontando arma, e senadores que atiram contra a polícia para não serem presos.

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Espero que o novo governo Lula consiga por um freio nessa loucura armamentista, e que as pessoas que entraram no discurso do “cidadão de bem” que se autoriza o direito de fazer “justiça” com as próprias mãos armadas, possam sair desse transe. Não será fácil contrariar o lobby das armas de fogo, mas será necessário. Será preciso também virar do avesso a mentalidade que parece ter tomado conta dos policiais, muitos transfigurados em xerifes. A esquerda precisa também ouvir o recado que larga parte da população tem dado: a segurança pública é uma preocupação prioritária.

Além de investir em educação e redução da desigualdade, é preciso conceder mais recursos e qualificar as polícias, de modo a atacar e reduzir a criminalidade. Mas é preciso também que as pessoas, sobretudo nas comunidades mais pobres, possam ter a percepção de que a polícia está ao seu lado, que também as protege. Isso não acontece quando se chega atirando, perpetrando chacinas, ou batendo na cara. Para termos um país mais civilizado, é preciso ir na direção contraria à do faroeste. Desarmar (no sentido concreto e no figurado) pessoas que dizem coisas do tipo "a esquerda gosta de bandido" ou "direitos humanos somente para humanos direitos" é um outro grande desafio, para o qual não há solução simples, mas que deve ser enfrentado de frente.

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