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Tiago Basílio Donoso

Mestre em Teoria Literária pela Unicamp e autor do livro no prelo “Terras Nacionais e Terras Estrangeiras”, pela editora Kotter

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Como as pessoas no futuro verão nossas fotografias

Estamos morrendo. E daqui a cem anos seremos julgados pelos crimes que sofremos. A indignação, a luta, o sentimento de anormalidade são deveres. Para com os que morreram hoje, ontem, e para conosco, que morreremos um dia

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Cidades têm mais mortes que nascimentos. Isso é o suficiente para que nos assalte a percepção de que não somos mais apenas brasileiros. Somos sobreviventes. Hoje e ontem e há muitos dias morreram por agressão, despudor e omissão mais de três mil de nossos irmãos. Talvez quatro mil, talvez cinco - não confiamos na estatística de um governo que luta contra todos e contra os números, que nos habituou à sabotagem de testes e de cuidado. Agora, é possível que alguém esteja despertando do coma induzido, sentindo a tortura de um cano instalado na traquéia. E que não pode ser medicado por falta de insumos. Um cilindro de oxigênio, agora, em algum canto do país, um cilindro verde, oxidado, expira - alguém tenta encontrar ar e não consegue, como se despertasse de um pesadelo dentro de outro pesadelo, em um planeta inóspito. Estão nos matando a veneno, a mercúrio, de fome, de vírus e com revólveres. Somos sobreviventes de um país que está sendo abatido.

Somos sobreviventes, nós que restamos. E como nos relatos dos sobreviventes de Auschwitz, guardadas as óbvias diferenças, permanece uma latejante vergonha de haver sobrevivido. Porque tivemos sorte, privilégios, porque estamos vendo muitos dos melhores de nós sendo assassinados. Enquanto isso, uma horda bolsonarista sai às ruas de verde e amarelo - cores que aos poucos se tornam cadavéricas - celebrando abominações. O presidente sorri ao lado de uma imagem que, como o caixão, é uma metáfora da morte - o CPF cancelado - apenas que essa metáfora não é propriamente da morte, senão do assassinato. Nossa vergonha, neste momento histórico, é tão imprescindível quanto nossa luta e nossa raiva. Sem ela, saímos do campo dos sobreviventes e migramos insensivelmente para o dos assassinos.

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Um amigo me disse que são inúmeras as tentativas de análise de Bolsonaro. Que há muito empenho, pouco ou nenhum sucesso. Especulei que talvez seja resultado do poder. Pois, como pode um homem tão raso ser ao mesmo tempo tão complexo, incompreensível? Não é. Hitler era apenas um louco de cervejaria, Bolsonaro é apenas um rebotalho do terrorismo de Estado brasileiro (o Brasil está sendo governado pelo espírito Rio-Centro). É a ovação de empresários, o apoio estruturante de militares, nossos vizinhos e amigos tornando-se feras - isso é o que vai além da compreensão: o poder. Um Bolsonaro é plenamente compreensível. Cem Bolsonaros nos deixa e nos deixará sempre perplexos.

Estamos morrendo nas mãos de uma seita política que exulta com a morte.

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Nós, que somos sobreviventes, precisamos compreender melhor o que é ser um sobrevivente. Olhemos nossas fotografias de hoje. Nosso sorriso, nossa pose, nosso prato de comida. As pessoas no futuro olharão as nossas fotos com a perplexidade que sentimos ao olharmos os retratos do passado - a dolorosa perplexidade que é o sentimento do tempo, essa coisa abstrata, e que no entanto parece haver sido feita de carne, para a carne. Com alguma ternura, sim, mas com uma dose inalienável de incompreensão: como pode ter sido normal viver em tempos tão anormais, tão trágicos? Enquanto ainda temos boca, devemos responder.

O futuro hoje nos demanda alguma luta, alguma indignação que seja, alguma objeção. Nosso maior dever hoje é o sentimento de anormalidade. Para que possamos olhar plasmados os olhos daqueles que nos verão, a nossa imagem com roupas não exatamente velhas, mas quase ridículas, obsoletas. Nossa imagem virtual hoje encara o futuro. Nossos pensamentos e ações têm que dar-lhe suporte, permitir que olhemos pelo menos com alguma dose de desafio nos olhos de nossos descendentes. Com brio. A estranha e endurecida alegria das famílias retratadas nos regimes totalitários: se não fizermos algo, provocaremos no futuro esse espanto com sabor de remédio, algo repulsivo, muitas vezes injusto dos que estão distantes o suficiente da crise para poderem julgar suas vítimas.

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Estamos morrendo. E daqui a cem anos seremos julgados pelos crimes que sofremos. A indignação, a luta, o sentimento de anormalidade são deveres. Para com os que morreram hoje, ontem, e para conosco, que morreremos um dia.

Nós, sobreviventes de uma guerra em curso, podemos contudo aceitar e viver normalmente a tragédia. Podemos atrofiar dentro do absurdo, aceitar as imagens de nossos contemporâneos morrendo - uma maca, um corredor de hospital, uma ambulância parada, inaladores enevoados de hálito, costelas tentando desesperadamente respirar - aceitar essas imagens com naturalidade. Mas isso terá volta: se aceitarmos como natural, seremos nós que perderemos o direito à naturalidade. Nossa apatia começará a ser tão incompreensível como um, cem, trinta milhões de Bolsonaro.

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E isso aqueles que nos sobrevierem não poderão compreender. Perscrutarão o nosso rosto com aquele resto caído do juízo final, o mesmo com que olhamos o passado e julgamos: foram estes também os duros de coração, os assassinos? Ou têm a nossa simpatia? Estavam do lado dos mortos e, portanto, hoje, mortos, são dignos, ou ignoravam seus mortos, sem saber o óbvio: que hoje estariam entre eles?

Olharão as nossas fotos de agora e, com amarga nostalgia, caso tenhamos achado tudo absolutamente normal, não poderão compreender.

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E, de coração, espero que realmente não possam.

 

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