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Paulo Moreira Leite

Colunista e comentarista na TV 247

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Como São Paulo tornou-se capital mundial da uberização

"Num ambiente de arrocho salarial e da recessão prolongada, exploração do próprio trabalho pode render mais do que um emprego convencional", escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia

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Por Paulo Moreira Leite para o Jornalistas pela Democracia

Passei os últimos meses tentando entender por que São Paulo transformou-se  na capital mundial da uberização.   

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Numa pesquisa iniciada no 1 de Maio de 2019, quando Bolsonaro anunciou um programa enganosamente batizado como Liberdade Econômica, em meus trajetos diários de uber pela cidade, de segunda a sexta, acumulei uma centena de entrevistas de quinze a 20 minutos cada.    

Sem tomar notas, criei uma sistemática de repórter e pesquisador.  Dedicava os primeiros minutos da viagem a perguntar como e por que a aquela pessoa  havia "entrado para o Uber", reservando a etapa final para outros assuntos que poderiam surgir .   

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O aprendizado obtido nesses diálogos consolidou algumas ideias, trouxe surpresas e desfez alguns mitos. Resumo as descobertas principais.  

Eu costumava imaginar que as pessoas decidiam trabalhar como motoristas para o Uber e outros aplicativos, enfrentando jornadas de dez horas por dia ( "menos do que isso não vale a pena", ouvi numa clara unanimidade) em função das dificuldades de encontrar um emprego convencional. Parecia óbvio, num país onde o desemprego prolongado é uma tragédia evidente. Engano.   

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Embora muitas pessoas tenham se tornado "uber" ao perder o posto de trabalho, deixando profissões que acumulavam por anos, muitas preferem manter-se na nova ocupação sem fazer muito esforço para retomar à antiga atividade.   As razões apontadas são duas.  A primeira:  no uber, conseguem levar para casa um rendimento maior do que na antiga profissão.  A segunda é que, mesmo enfrentando o carregado trânsito paulistano, podem usufruir, no volante de automóvel, uma jornada mais agradável, em certos casos menos controlada, do que no ambiente de trabalho convencional, em particular na linha de montagem de uma fábrica. 

"Aqui eu vivo assim, conversando, trocando ideias e até conto piadas", me disse um antigo operário de uma fábrica de tecidos no Brás, num depoimento muito semelhante ao de um metalúrgico de uma fabricante de aparelhos de ar condicionado na periferia de São Paulo.   

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Do ponto de vista dos assalariados brasileiros, a  remuneração obtida no uber só se torna compensadora num ambiente de esterilização das leis trabalhistas, quando os ganhos mensais devem ser comparados com os baixos salários pagos no mercado de trabalho convencional. 

Na realidade, os ganhos dos uberistas estão longe de qualquer paraíso trabalhista.  A empresa não divulga oficialmente a taxa que costuma cobrar dos motoristas, descontada diretamente da tarifa. Conforme depoimento unânime dos motoristas, eles entregam uma taxa de 25% sobre o total de cada corrida aos donos do aplicativo -- porção economicamente escandalosa quando se considera que o instrumento de trabalho, o automóvel para transportar passageiros, é responsabilidade do próprio motorista, que pode comprar ou alugar um carro, mas sempre será responsável por ele. 

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Os motoristas também devem obedecer  um regime disciplinar duro, sob o risco de serem desligados sem direito a queixa ou indenização. Os desligamentos ocorrem sem aviso formal nem explicações diretas a quem é dispensado. O motorista é excluído silenciosamente, sendo colocado na situação idêntica à de qualquer pessoa cuja senha deixa de funcionar num determinado aplicativo e não consegue saber a razão, gerando uma situação de desalento e mesmo angústia, como se vê no competente documentário "GIG  -- a Uberização do Trabalho", da Repórter Brasil.   

Há poucos meses, motoristas inconformados com o direito zero de sua atividade tentaram romper a dispersão estrutural do trabalho e organizar um movimento de greve em São Paulo. Não consegui obter uma estimativa confiável sobre o volume da adesão mas percebi que ali se expressaram reivindicações e interesses coletivos. Falando em tom reservado, um motorista me disse, na época, que a Uber "pelo menos poderia nos prestar alguma assistência, como gasolina mais barata, assistência mecânica, pneus a preço de custo". É uma idéia razoável do ponto de vista de quem está no volante. 

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Parece contrariar, frontalmente, o modelo do negócio -- a individualização absoluta do ambiente de trabalho, na relação homem-aplicativo. 

Trabalhadores num país onde o arrocho dos salários é uma realidade histórica, os ganhos permitidos pelo aplicativo impressionam e podem ser maiores do que os salários que recebiam nos empregos anteriores. "Eu ganhava 1250 reais na fábrica," me conta  o operário dos aparelhos de ar condiconado. "Hoje tiro isso por semana", me diz. Ele é obrigado a pagar R$ 1300 pelo aluguel do carro numa locadora mas "no fim das contas compensa. Acabo com mais dinheiro no bolso. Não dá para achar ruim".  Outros depoimentos chegam a números semelhantes. 

Mais de uma vez, ouvi motoristas fazendo planos para formar um pequeno patrimônio e montar seu negócio -- ou mudar de país.   Produto do triângulo  perverso entre o arrocho  geral no salário dos trabalhadores,  a mais prolongada recessão de nossa história recente e a ausência de transportes coletivos na cidade, não é difícil entender por quê São Paulo tornou-se a capital mundial da uberização.    

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