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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Como uma pinha que despenca da araucária

Vou até o quarto e vejo, estirado sobre a cama de casal, um vestido de noiva algo amarelado e puído, mas ainda altivo

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Ilustração de Luanna Falcão. Siga seu Instagram: @luanna.artworks

Ontem, enquanto eu esperava a abertura do farol para atravessar a avenida A., uma das artérias do município de B., no Paraná, uma senhorinha algo arqueada pelo reumatismo, com cabelos brancos e desgrenhados como nuvens e olhos bem azuis, se achegou ao meu lado. Ato contínuo, eu lhe ofereço meu braço esquerdo em arco para caminharmos juntos.

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Logo fico sabendo que dona Anastácia é polaca, natural da bela e medieval Cracóvia, onde estive há pouco mais de 10 anos, em janeiro de 2009. Quando ela descobre que meu pai era filho de poloneses, se chamava Tadeu e nasceu em Joaquim Távora, cidadezinha ao norte do Paraná, a senhorinha leva a mão direita curvada como uma pequena garra até o meu queixo e me mira como se estivesse me escaneando:

– Nariz grande de italiano, lábios finos de eslavo.

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Ato contínuo, dona Anastácia me toma pela mão e me conduz, bairro adentro, até um casebre rústico de madeira, com tábuas beges e enfileiradas em pé, à diferença das isbás russas, em que as tábuas ou toras são justapostas deitadas.

Na soleira do casebre, duas velhas cadeiras de vime – em uma delas, repousa um chapéu preto, desbotado e puído, e eu já imagino que dona Anastácia logo me apresentará seu marido. 

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À entrada da sala pequenina, um cuco de madeira fosca tenta marcar (e estancar) o tempo com a cadência de suas badaladas. Sobre uma cômoda, uma vitrola com a agulha suspensa quase resvala um vinil que ainda está lá, todo empoeirado, e eu quero saber que música ele tocou.

Súbito, enquanto leva o indicador direito vergado do vinil para o retrato de seu casamento, dona Anastácia começa a cantar com um tom triste e intenso, como se estivesse se despedindo.

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Ela vai até a parede, saca o retrato e me aponta seu Ladislau, novamente levando o dedo da vitrola para a foto já amarelada.

– Foi a última música que ouvimos juntos, uma canção da nossa Polônia: ela fala da partida do amado que vai pra guerra... e não volta. E veja só: você se parece com o meu Ladislau!

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À exceção da fronte um pouco mais alta do que a minha e das sobrancelhas mais ralas e delgadas, Ladislau bem poderia ter sido meu avô, meu pai ou meu irmão mais velho. “Teu duplo” – sentencia o silêncio dos olhos vidrados e marejados de dona Anastácia, cujo lábio inferior algo descaído treme de saudade.

– Espere um pouco: eu vou cozinhar um charuto pra você, o prato preferido do Ladislau. Sente-se aqui na poltrona dele.

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Ainda com a reentrância côncava das costas de Ladislau, a poltrona resguarda a memória tangível do amor de dona Anastácia como uma libélula coagulada pelo âmbar.

Minha vó Závila, cozinheira de mão cheia, preparava charutos inesquecíveis aos domingos. Com mãos lépidas, ela enrolava a carne cozida e ainda fumegante com grandes folhas de repolho, que sempre me pareceram orelhas de elefante. Quando eu lhe dizia isso, a vó Závila ria com o canto direito da boca e me afagava o cocuruto com a mão gentil, de cujo dorso, repleto de nódoas marrons, saltavam veias bojudas como os canos que desciam da calha da casa dela lá em Santo André.

Envolto pela névoa da memória e sentado na poltrona de Ladislau, eu não me dou conta de quanto tempo se passou e já não ouço a cantoria de dona Anastácia em meio ao chiado das panelas no fogo.

– Dona Anastácia, a senhora deixou a luz do quarto acesa.

Nenhuma resposta.

– Dona Anastácia!

Nada.

Vou até o quarto e vejo, estirado sobre a cama de casal, um vestido de noiva algo amarelado e puído, mas ainda altivo. (Sinto um calafrio escalando as vértebras.)

Vou até a cozinha. A carne já está picadinha sobre a tábua de madeira; as folhas de repolho, devidamente empilhadas; a faca, de longo corte, tem o cabo branco e perolado, como a da minha vó Závila. A água vai fervendo na panela que chia, mas onde está dona Anastácia?

Quando miro de soslaio, com o canto direito do olho, vejo dona Anastácia sentada num banquinho, junto à quina da parede, com os braços trançados sobre o peito, como quem quer abraçar. Ela olha para o teto, quieta (pior: muda), e tem a boca entreaberta. (O calafrio chega à nuca.)

Chacoalho levemente seu ombro esquerdo:

– Dona Anastácia! Dona Anastácia!

Quando faço menção de colocar o indicador e o dedo médio direitos sobre a jugular para tentar sentir o pulso, a cabeça de dona Anastácia tomba sobre o peito como uma pinha que despenca da araucária.

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