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Alexandre Aragão de Albuquerque

Escritor e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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Consórcios religiosos

No bolsofascismo, o Estado de exceção torna-se regra, fomentando a manipulação da verdade por meio de mídias e de igrejas

Michelle e Jair Bolsonaro (Foto: Isac Nóbrega/PR)
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Desde o lançamento do nosso livro “Religião em tempos de bolsofascismo”, no mês de setembro, tivemos uma agradável surpresa com a repercussão alcançada por meio de entrevistas seguidas, concedidas a respeitados profissionais da Imprensa televisiva como Talita Galli (Rede TVT), Joaquim de Carvalho (TV 247), Jaime Luccas (TV Reunir), Sandro Leonel (TV Falaleonel), por meio das quais tivemos a oportunidade de aprofundar aspectos de nossa observação contida na referida obra. As entrevistas indagaram sobretudo sobre a análise mais elucidativa, a partir do viés cronológico, da produção discursiva do bolsofascismo, na pessoa do ex-presidente da República, em ambientes religiosos, mais precisamente naqueles de tradição católica para o qual detive um olhar detalhado.

O pensador francês Michel Foucault afirma que quando um discurso é acionado, este ocorre a partir de lugares histórica e geograficamente situados. Quem fala, aciona as palavras constitutivas dos procedimentos institucionais em jogo. Dizer e enunciar são atos, acontecimentos que mostram uma ação e um sujeito. Quando se busca analisar um determinado discurso é importante identificar aquilo que mostra enquanto acontece, buscando-se descobrir as regras de sua produção para que esta possa ser tratada como campo de verdades em oposição ao que se considera falso. Afinal, quase sempre há componentes de falsidade podendo encobrir o verdadeiro contido no discurso. Por último, importante detectar o movimento de apropriação e envolvimento daqueles seguidores que poderão ampliar o circuito e reverberar seu conteúdo.

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Três outros termos muito importantes para uma análise de uma declaração são “contexto”, “ethos” e “cena discursiva”. Para Foucault, o contexto envolve o texto porque também está na cabeça da pessoa que fala. Assim, o contexto concreto diz de relações concretas e não daquelas estruturais da linguagem. O ethos por sua vez refere-se ao modo de apresentação daquele que se põe como sujeito do discurso: a caracterização pelo entorno, pela construção do cenário que desenha as qualidades daquele que, ao se pronunciar, encaixa-se na posição esperada e preparada para ele. Por fim, a cena discursiva diz respeito àquelas produções de cenas nas quais personagens são posicionados, sendo evidenciadas as relações estabelecidas entre si.

Na regra da produção ideológica discursiva bolsofascista encontramos recorrentemente temas-chaves escolhidos minuciosamente para a manipulação da gramática religiosa. Entre estes, elencamos: recorrência fundamentalista à fé cristã (Deus acima de tudo) em contraposição a um suposto materialismo prático e cultural dos seus opositores; apresentação do bolsofascismo como verdadeiro representante do pensamento tradicionalista versus visões da modernidade esquerdista, globalista, científica, ecológica, de gênero, étnica; a utilização sistemática e continuada do controvertido episódio da facada, interpretado como milagre de Deus, atestando Bolsonaro como o Mito para guiar a nação; a Unção por líderes religiosos, identificando-o com a Pátria (Brasil acima de todos) em sua vontade soberana (“A constituição sou eu”) versus minorias perdedoras que devem submeter-se a qualquer custo à sua vontade de regente sagrado; ataques permanentes à imprensa livre versus elogios constantes aos grupos midiáticos que o apoiam. Em resumo, uma ação discursiva focada na relação Eu/Deus/Povo que o autorizaria e capacitaria a submeter autoritariamente a Pátria, derrubando indiscriminadamente a normalidade democrática, segundo o seu querer pessoal e ponto final.

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O bolsofascismo vai beber na fonte da forte influência do cristianismo na formação da cultura ocidental, a partir do momento em que se tornou a religião oficial do Império Romano, sob o governo de Constantino. No ano de 325 d.C. inaugurou-se um fato realmente novo: a realização do primeiro Concílio Ecumênico da história do cristianismo. Foram convidados pelo imperador Constantino os bispos conciliares, acolhidos na residência imperial de verão, em Niceia, próximo a Constantinopla. Como assinala o historiador católico brasileiro Eduardo Hoonaert (Origens do cristianismo. Paulus, 2016), aqueles homens do povo foram tratados como Senadores do Império, com direito a honras militares e protocolares. Nesse concílio são formulados os primeiros dogmas (verdades da fé que não precisam ser demonstradas nem comprovadas) da Religião Cristã. Niceia fala palavras definidoras e grandiloquentes sobre o carpinteiro Jesus de Nazaré: Deus-todo-poderoso; Deus de Deus; Luz da Luz; Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. Mais tarde surgirão novos títulos: Santíssima Trindade; Maria Santíssima; Santíssimo Sacramento. A partir de então, a Igreja Católica se enche de santidades, eminências, excelências e dignidades, adotando o estilo pomposo, triunfal, superlativo e arrogante da linguagem oficial romana.

Não se trata só de linguagem, mas da totalidade de um novo modo de inserção da Igreja na sociedade e na vida das pessoas. Na arquitetura e na liturgia, nas vestes clericais e na formulação dos textos, na cotidianidade das paróquias, na iconografia e nas artes, na formação das lideranças, no ensino da moral, no acompanhamento diário da vida das pessoas e até na marcação de tempos e espaços transparece um Jesus que está nas mãos da instituição: “nós o definimos, nós falamos em seu nome, ditamos o que ele tem a dizer”. Jesus de Nazaré é modificado e aprisionado por um sistema de Poder político-religioso. Como atesta Giorgio Agamben, é o Poder quem define sobre o que é a vida humana e sobre o que ela não é. No bolsofascismo, o Estado de exceção torna-se regra, fomentando a manipulação da verdade por meio de mídias e de igrejas.

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O filósofo brasileiro Manfredo Araújo de Oliveira (A religião na sociedade urbana e pluralista. Paulus, 2013) afirma que a análise do fenômeno religioso é um elemento imprescindível para a compreensão adequada das sociedades de modernidade tardia, como no caso a brasileira, porque o fato religioso de agora em diante é um componente essencial da cena política mundial. Com a privatização dos indivíduos autônomos capazes de escolher entre as diversas alternativas no mercado dos bens simbólicos, é possível transitar entre diversos sistemas religiosos, além de transpor a religião para outros setores da vida social como a política, a ciência, a economia ou a psicologia. Com a emergência de uma cultura do EGO, não importa a Verdade (de fato, científica ou filosófica), mas a busca de algo que possa dar sentido à vida individual, que corresponda aos sentimentos de cada um e possa satisfazer suas aspirações. Não se trata do crente ser fiel a Deus, mas de Deus ser fiel ao crente.

Para filósofos franceses como Luc Ferry e Marcel Gauchet, como para a socióloga Danièle Hervieu-Lèrger (O peregrino e o convertido. Vozes, 2008), a Religião, entendida como a dimensão institucional e organizada do campo religioso, por meio de espaços, tempos, ritos, símbolos, doutrinas, mitos, artes, liturgias, autoridades, tradições e comunidades, consiste num sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições nos indivíduos, atuando como uma condutora de almas. Uma ferramenta inventada em um determinado tempo-espaço, por certas pessoas, para impor seus propósitos a outras, revelando seu caráter político. Não se trata apenas de devoção, mas de instituições sócio-políticas no interior das quais as biografias individuais são vividas. Afinal, toda fé apresenta-se comprometida com algo, importa saber com que causas se compromete e em que medida.

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Da cronologia por nós observada em nosso livro, podemos registrar brevemente aqui neste artigo, os momentos inaugurais da produção ideológica discursiva bolsofascista com plena adesão das lideranças e instituições com as quais se relaciona.

No dia 30 de novembro de 2018, Bolsonaro faz uma visita oficial, logo após o resultado do segundo turno da eleição presidencial, à sede mundial da Comunidade Católica Canção Nova, em Cachoeira Paulista – SP. Lá é recebido no santuário maior pelos Fundador, Co-fundadora e demais clérigos e leigos dirigentes desse associação católica. Durante uma bênção transmitida para todo Brasil, o Fundador fez a seguinte oração: “O Brasil tem o presidente que precisava ter. Assim como a Salomão, que Deus dê a ele toda a Sabedoria”. Em reposta à prece proferida pelo Monsenhor Jonas Abib, Bolsonaro diz: “Quero mais uma vez agradecer por estar vivo. Fui salvo [da facada] pelas mãos de Deus. Entendo o que acontece comigo é uma missão de Deus”.

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No domingo, 17 de março de 2019, em um jantar na residência do embaixador do Brasil em Washington, DC, Sérgio Amaral, com a presença de porta-vozes do conservadorismo estadunidense, como o professor Walter Russell Mead, o crítico Roger Kimball, o lobista Matt Schlapp e Steve Bannon, estrategista-chefe de Donald Trump na vitoriosa campanha presidencial de 2016, além dos ministros da Economia do Brasil, Paulo Guedes, e da Justiça, Sérgio Moro, dois dos principais fiadores da sua eleição, o presidente Jair Bolsonaro, empossado há menos de três meses afirmou em seu discurso oficial naquela noite emblemática: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos de desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Quis a Vontade de Deus, entendo dessa maneira, que dois milagres acontecessem: um é minha vida [salva da facada], o outro é a minha eleição”. Atesta-se aqui que Bolsonaro não atribui à soberania popular a sua eleição, mas à soberania divina. Busca desde então legitimar a destruição que será perpetrada durante o seu mandato fundamentando-a na vontade de Deus, em virtude de ele ser um presidente escolhido por Deus.

Em 21 de maio de 2019, a Frente Parlamentar Católica reúne-se no Palácio do Planalto, em Brasília – DF, numa ampla articulação de movimentos católicos marianos, com a presença de lideranças da Renovação Carismática Católica, TV Canção Nova, Fazenda Esperança, Rede Vida de Televisão, entre outros, para consagrar o Brasil ao coração de Nossa Senhora de Fátima. Sob a regência cerimonial do deputado federal Eros Biondini (PL – MG), em seu discurso oficial, o político eleva Bolsonaro ao patamar de São João Paulo II, por haver sido salvo da facada pelas mãos de Maria.

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Em 19 de junho de 2019 é a vez da Fazenda Esperança dar continuidade ao ciclo de eventos religiosos de unção de Bolsonaro, ao recebê-lo em sua sede mundial localizada no município de Guaratinguetá – SP. A Fazenda Esperança é um complexo religioso que possui mais de 100 filiais espalhadas pelo Brasil, além de estar presente em 26 países. Durante os quatro anos de governo Bolsonaro recebeu cerca de R$101 milhões de verba federal para suas ações como comunidade terapêutica de dependentes de drogas. Além das bênçãos das freiras carmelitas, transmitida pela Rede Vida de Televisão, ao final, o Fundador da Fazenda Esperança, manifestou-se em depoimento, concedido à mesma rede televisiva, como sendo “um momento de graça, um momento divino”.

Por fim, nesse breve giro pelos encontros pessoais de Bolsonaro com instituições e lideranças católicas, ocorreu em 21 de maio de 2020, uma reunião virtual com empresários e padres do ramo da comunicação. Daquele acontecimento, duas declarações são motivo de ampla análise pública. Primeiramente a do padre Reginaldo Manzotti que efusivamente externou: “Gostaria de me aproximar ao governo Bolsonaro para justamente apresentar essa proposta positiva, de realmente levar esse trabalho e fazer com que essa agenda ecoe desde os ribeirinhos até as grandes capitais”. Por sua vez, o CEO da Rede Vida, que se autodenomina a TV do Papa, João Monteiro de Barros Neto, exclamou: “Nós, presidente Bolsonaro, temos muito em comum”.

Importante registrar que, além da existência desses segmentos católicos conservadores funcionando como significativa base de sustentação do bolsofascismo, há uma expressiva presença evangélico-pentecostal atuando de forma coligada com os católicos, formando uma espécie consórcio de direita, reunindo segmentos neoconservadores das duas tradições cristãs: católica e evangélica. Emerson Silveira (Padres conservadores em armas. Reflexão, v.43, n.2, 2018), num artigo analítico, registra a simbólica conclamação do padre reacionário Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, no site “A aliança política entre católicos e evangélicos”, com milhares de visualizações, para a consecução desta aliança. Diz o clérigo: “Hoje não é possível contribuir para o bem do Brasil sem que haja uma sólida aliança entre católicos e protestantes. Um antro de criminosos pôs na cabeça que precisa acabar com a moralidade judaico-cristã. É necessária uma coalizão conservadora de católicos, protestantes, judeus, espíritas e de todos os homens de boa vontade que querem verdadeiramente conservar o patrimônio espiritual, moral e jurídico que forjou o Ocidente. É no campo político que se quer firmar esse acordo”.

Por fim, como bem atesta o jornalista italiano Iacopo Scaramuzzi, o cristianismo ainda apresenta-se como forte referência cultural, uma linguagem que mais ou menos a maioria dos brasileiros entendem. A maioria sabe o dia do nascimento de Jesus, como também o nome de sua mãe e que ele morreu crucificado pela salvação da humanidade. Portanto, o cristianismo é um marcador identitário portador de um senso de identidade. Assim, a utilização da religião cristã pelo bolsofascismo, ao explorar sua simbólica sagrada, por meio de um discurso bem elaborado e sistematizado, visa a “tornar-se um” com a maioria da população brasileira que se declara cristã (80%), para poder penetrar em seus corações e mentes, e conduzir, politicamente, suas almas.

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