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Filipo Perotto

Filipo Studzinski Perotto, 42, nascido em Porto Alegre (RS), doutor em Inteligência Artificial pela Universidade de Toulouse, atualmente é pesquisador titular da Agência Nacional de Pesquisa Aeroespacial Francesa (ONERA)

5 artigos

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Conversa com duas ucranianas, uma polonesa, e a necessária crítica a uma esquerda anti-imperialista delirante

Fazer de conta que a Rússia estaria apenas e legitimamente se defendendo preventivamente da OTAN é de uma desonestidade intelectual grosseira

O artista russo Vasily Slonov posa com obras de seu projeto "História da Rússia, século XX - de Lenin a Putin", em setembro de 2013. (Foto: REUTERS / Ilya Naymushin)
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Quase por acaso, fui levado a prestar atenção à Ucrânia e aos acontecimentos recentes que arrasaram aquele país. A primeira vez foi em 2004, quando o então candidato à presidência, Viktor Iushchenko, de perfil pró-ocidental, apareceu com o rosto deformado, consequência de um envenenamento em que a participação do Kremlin, com seus métodos herdados da KGB, resta bastante provável. Iushchenko ganhou a presidência em eleições conturbadas (o segundo-turno foi repetido uma segunda vez após protestos) contra o candidato pró-russo, Viktor Ianoukovytch. Chamou-se “Revolução Laranja”. A Ucrânia virava as costas para a Rússia. Entretanto, Ianoukovytch viria a ser primeiro-ministro em 2006 (a Ucrânia funciona num regime parlamentarista) e finalmente sucessor de Iushchenko na presidência em 2010.

Foi também Ianoukovytch o presidente destituído em 2014, como consequência dos intensos protestos que haviam estourado um ano antes, sobretudo em Kiev, cuja causa foi sua renúncia em assinar um acordo para integrar a União Européia, o que atendia mais aos interesses da Rússia do que aos da Ucrânia. Nessa época, eu já morava na França, e achava surpreendente a maneira como a imprensa francesa relatava esses protestos. Lembro de uma reportagem que falava de um senhor distribuindo chá quentinho aos colegas de revolução na praça Maidan. A beleza das narrativas era tanta que me deixava intrigado: seria a vontade de derrubar o governo assim tão unânime?

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A seqüência dos acontecimentos mostrou que a coisa não era tão simples. Para muita gente nos oblasts do leste da Ucrânia, o movimento massivamente apoiado pela população do oeste e da capital parecia mais com um golpe de estado. Na verdade o país já vinha rachado, por situações mal resolvidas desde o fim da União Soviética e da independência da Ucrânia em 1991. As regiões do leste fazem fronteira com a Rússia, tem o russo como língua principal, e sofreram muito economicamente com o fim da URSS. Quando se vê o quadro do resultado eleitoral de 2010 entende-se melhor essa polarização. Ianoukovytch, o pró-russo, havia sido eleito por vantagem estreita de votos contra a candidata pró-ocidental, Yulia Timoshenko. Entretanto, ele teve quase 90% no Donbass, e quase 80% na Criméia, enquanto ela quase 90% em regiões do oeste. Quem achou o Brasil de 2022 polarizado, não imagina o que era a Ucrânia dez anos atrás, e não tem como imaginar como está muito pior agora, com a guerra.

Em 2015, estive na Polônia, numa conferência na cidade de Poznan. Numa dessas conversas ocasionais de coffee-break, perguntei de onde vinha uma das colegas que assistia à mesma palestra que eu. Ela hesitou em responder, falou que era complicado, depois explicou: tinha a dupla nacionalidade, russa e ucraniana, pois vinha da Criméia. À altura, a Criméia havia acabado de ser anexada pela Rússia, sob protestos do mundo ocidental. Não resisti em perguntar o que ela pensava de tudo aquilo. Ela me respondeu o seguinte: “para nós [da Criméia], é como voltar pra casa”. De fato, a população da península é massivamente de origem russa, e a região fazia parte da Rússia até 1954, quando foi transferida administrativamente para a Ucrânia, no período soviético.

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Entretanto, estando na Polônia, também entendi mais facilmente o outro lado: a imensa vontade de todos aqueles países que viveram sob o jugo soviético, de se livrar definitivamente e de uma vez por todas da dominação imposta pelos russos, que deixou cicatrizes profundas e feridas ainda abertas. Tendo sido liberada da opressão nazista com a derrota da Alemanha e o fim da segunda guerra mundial em 1945, a Polônia foi rapidamente engolida para dentro da zona de influência soviética, tal como Hungria e Tchecoslováquia, subordinando-se aos interesses de Moscou, e a um regime comunista autoritário, executor de uma política repressiva atroz que deixou como principal marca, ao longo de 45 anos, um rastro de sangue. 

Difícil encontrar alguém na Polônia que fale com “carinho” das lembranças do período comunista. Não por acaso também, trata-se de um dos países europeus com discurso mais anti-russo, ao lado da Finlândia e das repúblicas bálticas (países que vivem ainda o medo da ameça russa à sua integridade territorial e soberania). Na semana passada conversei com uma polonesa, amiga de amigos meus aqui de Toulouse, e ela me contou sobre a solidariedade com os refugiados ucranianos. Mais de um milhão foram para a Polônia. Também contou-me sobre o choque de ter conhecidos vivendo a realidade da guerra. Segundo ela, havia, mesmo antes do conflito estourar, muitos imigrantes ucranianos no país, e que todo mundo conhece alguma história pessoal de gente afetada diretamente pela invasão.

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Faz algumas semanas, conversei com outra ucraniana que está morando em Toulouse, em intercâmbio universitário. Foi também por acaso, na casa de amigos. Como não falava francês, mas inglês, perguntei de onde ela era. Respondeu-me que costumava não revelar, porque era chato gerenciar a reação das pessoas, mas acabou dizendo que era ucraniana. Daí em diante, tanto eu quis ouví-la, como percebi que ela precisava muito falar. Disse que já havia passado da fase em que só chorava ao pensar na situação de seu país. Também me disse o quanto era difícil encontrar análises objetivas na mídia sobre a guerra, entre a propaganda e a desinformação pró-russa, e o discurso muitas vezes ingênuo ou simplificado pró-europeu. 

Concordamos, os dois, com a evidente responsabilidade do governo de Vladimir Putin pela violência, e por inúmeros crimes de guerra, mas ela também me disse o seguinte: que entendia o sentimento dos russo-ucranianos que se sentiam perseguidos por conta da violenta polarização que seguiu os eventos de 2014. Lembramos o fato do governo da Ucrânia ter reformado uma lei de 2012, e retirado do russo o status de língua oficial em 2019, contrariando ainda mais os ucranianos russófonos. Por fim, disse-me que deve ter havido, entre particulares armados, muitos casos de violência, assassinatos entre vizinhos, e coisas do gênero. Um cenário desolador. Sabe-se lá quantas gerações serão necessárias para superar esse trauma.

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Tudo isso dito, tenho achado chocante a maneira como alguns jornalistas e ativistas de esquerda tem falado sobre a guerra. Alguns desses discursos fazem lembrar os devaneios do universo paralelo bolsonarista, ainda que do avesso. Enquanto aqueles travavam batalhas imaginárias contra a “ameaça comunista”, estes estão fazendo o mesmo contra a “ameça imperialista”. Por favor, que se entenda bem, antes que eu seja acusado de “herege”: a história da ingerência dos EUA no mundo é bem conhecida, e eu não estou questionando isso. Compartilho a desconfiança em relação aos americanos quando se metem a resolver conflitos ou a criar conflitos por aí. Sei que na maioria das vezes, senão em todas, a razão principal é o interesse capitalista, da economia deles, e não da democracia, nem dos direitos humanos, nem da paz. Também espero que meu ponto de vista sobre a guerra na Ucrânia tenha ficado claro: não é o endosso de um discurso simplista pró-ocidental, mas o reconhecimento de um nó geopolítico e histórico muito complexo.

Entretanto, o remédio para se opor aos “métodos imperialistas” dos americanos ou europeus não pode ser a cloroquina de acreditar que a Rússia foi à guerra para salvar seu povo na Ucrânia. Ajudar o Donbass reduzindo-o a escombros? Menos ainda esquecer que Putin reconduziu a Rússia a um regime autocrático. A curta janela que se abriu naquele país para a democracia, há muito já se fechou. Os próprios discursos oficiais de Putin são insustentáveis, não tem nada de progressistas, abusam de uma estética nacionalista russa à moda antiga, e estão muito próximos dos discursos de extrema-direita, mesmo que aleguem de maneira esquizofrênica estar combatendo uma suposta “nazificação” da Ucrânia, que se sustenta mal nos fatos. As amaças nucleares são a cereja do bolo. Ainda que muito se possa criticar a política ucraniana, endossar esse tipo de tese é tão ingênuo e absurdo como rezar em roda para um pneu de caminhão ou fazer chamadas aos extra-terrestres. Não encaixa com as evidências.

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Pode-se até dizer que se trata de uma guerra entre nacionalismos russo e ucraniano. Pode-se criticar o presidente ucraniano Volodimir Zelensky por diversas razões (esse comediante de televisão com discurso anti-política eleito com 73% dos votos válidos no segundo turno em 2019). Pode-se ponderar sobre a história e origem comum dos povos eslavos, e o caráter fluido daquelas fronteiras. Entretanto fazer de conta que a Rússia estaria apenas e legitimamente se defendendo preventivamente da OTAN é de uma desonestidade intelectual grosseira. Trata-se de negar o expansionismo bélico russo que é constante contra as ex-repúblicas soviéticas desde o fim da URSS. Trata-se de negar que, quando no papel inverso, a Rússia aniquilou violentamente o movimento separatista da Chechênia, deixando centenas de milhares de mortos. Trata-se de negar que os movimentos separatistas no Donbass são largamente fomentados e financiados pela Rússia. Trata-se de negar a interferência russa na Bielorrússia para manter no poder Lukashenko, ou no Cazaquistão de Tokayev, autocrátas amigos. Trata-se de negar a gritante similaridade dos tanques russos tomando o leste da Ucrânia com aqueles que tomaram Praga em 1968 (quando Milan Kundera, autor de “A insustentável leveza do ser”, teve sua nacionalidade retirada, ironizou: “os russos dizem que não sou mais tcheco”). Trata-se de negar que Putin tentou derrubar o governo legitimamente eleito da Ucrânia, e está destruindo aquele país. 

Mas principalmente, trata-se de negar a soberania da Ucrânia e dos outros países e povos em situação semelhante. Como se fossem apenas “países satélite”, países de segunda categoria. Que direito a Rússia acha que tem para dizer o que podem ou o que não podem? Isso não é um tabuleiro do jogo de War, e a Ucrânia não é simplesmente “território histórico da Rússia”, obrigada a fazer-lhe as vontades de grandeza. Mais ainda, a guerra toda está acontecendo na Ucrânia, onde ficaram já pelo chão 250 mil mortos, entre civis, militares russos, e militares ucranianos, além de mais de 7 milhões de refugiados, cidades e infra-estrutura devastadas, e economia em colapso. O país arrasado pela guerra é a Ucrânia, e não a Rússia. Dizer que o mundo não devia se meter num “conflito local” é como ver um brutamontes batendo num pequeno no recreio da escola para roubar-lhe o lanche e ficar calado.

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Quando comunicadores de esquerda bradam contra os que condenam a Rússia, ou afirmam de maneira pueril que Lula está fazendo o “jogo do imperialismo”, me dá até vergonha. Acreditar que a Rússia “não tinha outra escolha” e que foi “empurrada para a guerra” é um autoengano dos mais covardes. É claro que é preciso desfazer interpretações maniqueistas anti-russas, porém o desejo que parte da própria Ucrânia para integrar acordos econômicos com a União Européia, e mesmo acordos de defesa como a OTAN, não tem simetria com uma invasão militar. A narrativa imposta por Putin é a de que russos, bielorussos, cazaques, e ucranianos seriam todos “um mesmo povo”, ou seja, são todos, queiram ou não, russos. O próprio Putin já lamentou publicamente o fato dos comunistas terem fragmentado a URSS em diversas repúblicas, com uma certa nostalgia do mapa da Rússia Imperial.

De vez em quando esse tipo de teoria “anti-americana e pró-russa” que circula sem ser muito questionada na midiosfera da esquerda e da extrema-esquerda emerge em colunas laterais nos grandes jornais (Folha e Globo, por exemplo) e chocam seus leitores. Para que a gente possa desmentir quem nos chama de “esquerdopatas” será preciso que de fato não o sejamos. Sustentar uma narrativa cheia de vieses, como essa, tem o único efeito de dar razão a quem aponta o dedo para os discursos de ódio e teorias conspiratórias que germinam na esquerda. 

Convém ler o texto de Yorgos Mitralias, publicado no ano passado na revista francesa “L’anicapitaliste”, intitulado “Por que ‘putinistas’ e ‘putinizantes’ perpetuam as tradições mais abjetas da esquerda internacional - uma análise das posições sobre a guerra da Ucrânia a partir de posições trotskistas históricas”. Concordo com Mitralias quando diz que a estratégia dessa esquerda anti-imperialista ingênua de que “o inimigo de meu inimigo é meu amigo” faz com que não percebam que a retórica antiocidental do Kremlin não tem nada de progressista, sendo, ao contrário, extremamente reacionária e obscurantista. E então sugere uma reflexão: não seria o fato desses “meta-esquerdistas stalinistas” (na expressão dele) permanecerem impassíveis às demonstrações repetidas de extremo conservadorismo de Putin e seu regime dever-se ao fato de que eles mesmos sempre foram ausentes dos grandes movimentos sociais da chamada esquerda progressista (movimento feminista, LGBTQIA+, movimento negro, pró-imigrante e pró-refugiados, movimentos ecológicos e de defesa do clima, movimentos de direitos humanos e das minorias) muitas vezes até mesmo não hesitando em chamá-los de farsa e de invenção … do imperialismo? 

Permitam-me fazer uma reflexão em forma de autocritica: se o Brasil 247 não quer se tornar o “Brasil Paralelo” da esquerda, e se não queremos dar razão a quem fala da “simetria dos extremismos”, vamos ter que começar a dar o exemplo, ainda mais agora que o PT está de volta ao poder no Brasil. Se antes era mais fácil estarmos todos juntos para combater o fascismo bolsonarista, agora teremos que enfrentar nossas próprias contradições e divergências, e é muito importante que o façamos com inteligência. A pergunta que o mundo e que o Brasil que não vive na nossa bolha ainda faz é a seguinte: “que esquerda é essa?”, farol para o futuro das esquerdas na América Latina. 

Ainda precisamos provar que nossa defesa incansável da democracia nesses últimos 7 anos (entre o golpe contra Dilma, a prisão política de Lula e sua libertação) não era só uma “estratégia para tomar o poder”. Uma esquerda moderna, progressista, e comprometida com justiça social não precisa defender derivas ditatoriais de nenhum tipo, mesmo respeitando a utopia que as teriam movido no princípio. Creio que a maioria da esquerda brasileira, intelectuais ou simples eleitores, é identificada com valores republicanos, humanistas, progressistas, democráticos, e de justiça social, muito próximos de uma social-democracia e menos sensíves aos clichês “contra a burguesia” e “contra o imperialismo”.

Marx defendia a dialética como processo transformador, e não o dogmatismo. Abraçar de forma inconsistente e incoerente a violência perpetrada pela Rússia de Vladimir Putin (contra o povo ucraniano e contra o próprio povo russo) em nome de um anti-americanismo obsessivo e delirante ou de uma “nostalgia stalinista” não dá. Me tirem disso. No melhor caso, é trocar um imperialismo por outro imperialismo ainda pior. Existem inúmeras evidências de que a Rússia de Putin tornou-se um regime autocrático, que censura a imprensa, prende e persegue opositores políticos numa escala assustadora. Defender a democracia só quando convém, criticar a guerra e a ingerência só quando convém, chama-se hipocrisia. Espero que Lula tenha êxito em sua determinação de ajudar a encontrar uma solução diplomática para esse conflito insano, a pesar das perspectivas quase nulas que tem para isso, e que contribua no debate para a criação de mecanismos de governança global. Seria um feito e tanto.

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