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Naiara Aguilera Soares

Mãe, professora, pesquisadora e especialista em Metodologia do Ensino da Educação Física pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia- FACED-UFBA.

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Copa América e os tiranos do grande Capital: a incrível história dos que lucram com a morte

Pelo visto, abrir as portas (e todas as janelas) do país ao capital estrangeiro é uma especialidade do governo Bolsonaro, que ignora a realidade de constante luto e luta pelas inúmeras vidas perdidas em decorrência do novo coronavírus

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Por Naiara Aguilera Soares

Poderia se tratar de uma piada de mau gosto, ou até mesmo mais uma das notícias “fakes” às quais estranhamente estamos acostumados a ter que lidar. Poderia mesmo ser um roteiro de filme de terror, um episódio da série “Black Mirror” em que um governante deslegitimado é obrigado a matar parte da sua população por pressões externas, “ocultas”, e televisionar nas mídias e nos meios digitais tal espetáculo de horror. Não, não se trata de ficção. Mas, da notícia que estamos digerindo no atual cenário da insana política genocida do presidente deste país. Ao aceitar sediar um megaevento esportivo no Brasil, no atual cenário de crise econômica, política, social e sanitária, que em meio à pandemia do coronavírus gerou mais de 470 mil mortes no país, o atual presidente Jair Bolsonaro e sua equipe de (des) governo atestam mais uma vez que pouco importa a vida, a saúde e a segurança da população, contanto que o capital siga o seu caminho e que o lucro dos “grandões” esteja garantido. Muito além do tema futebol, o presidente se apoia em fatos políticos de distração nacional para tentar driblar (apesar de ser péssimo jogador) e encobrir mais uma das crises de popularidade do seu governo, na busca de retirar o foco da CPI da Covid e dos mais de 100 pedidos de impeachment engavetados na Câmara dos Deputados. A realização da Copa América 2021 no Brasil é mais uma demonstração de que para o capital e para a classe burguesa a vida da classe trabalhadora e da população em geral não vale absolutamente nada.

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O futebol é um fenômeno social de massas que apresenta historicidade e dimensões que podem ser estudadas no plano político, econômico, social e ideológico. Continuamente analisado por cientistas sociais, evidencia sua relação intrínseca com questões como hegemonia, poder e relações sociais de produção. Por outro lado, nós repetimos o mantra: o povo brasileiro “ama o futebol”. Na verdade, nós produzimos e consumimos o futebol à luz da lógica da mercadoria e acumulação de capital. Assim como o poder social do dinheiro, o futebol é capaz de mover “sentimentos humanamente inexplicáveis”. Entretanto, em torno do “mundo da bola” move-se também a ganância e o lucro de empresas multimilionárias interessadas em vendê-lo e realizá-lo como mais um produto à serviço do capitalismo e de suas clivagens racistas, patriarcais e colonialistas com vistas à locupletar os multimilionários à frente desse grande negócio, cuja síntese se expressa nos meios de comunicação (como mais-valia ideológica). 

Os exorbitantes investimentos no esporte com características de espetáculo e máximo rendimento, como é o caso das Olimpíadas 2021 no Japão e agora a Copa América de Futebol organizada pela CONMEBOL e sediada às pressas no Brasil, não têm tempo a perder, pois tempo para o capital representa altas taxas de lucro para o empresariado envolvido nesse mercado que envolve grandes empresários, patrocinadores, jogadores-propaganda e suas marcas. A indústria cultural midiática esportiva a serviço do capital e do consumo sem limites cria produtos e entretenimento padronizador, manipulando em grande medida as necessidades dos indivíduos, seu senso crítico e até a sua paciência para suportar determinados absurdos.

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A mídia e as empresas de comunicação que detém o monopólio de produção e difusão desse conteúdo são responsáveis pela mediação e espetacularização do futebol, uma vez que oferece suposto lazer e distração em troca de passividade e breve esquecimento das problemáticas sociais, econômicas e políticas do país. Mas será que estamos assim tão apáticos a ponto de não perceber as prioridades do momento e os absurdos que estão sendo cometidos pelo (des) governo em plena pandemia?  

Houve um tempo em que a maioria dos brasileiros parava a vida para assistir a um jogo da seleção brasileira em momentos de Copa do Mundo de Futebol. A rebeldia ancestral em prol da sua gente, do seu povo, do seu país, a ponto de faltar ao trabalho, às aulas na escola, deixar o patrão na mão, se espremer em locais públicos para assistir com muito mais emoção etílica coletiva a seleção fazer gol e se classificar, se mantém na memória dos que viveram os anos 1970 até os anos 2000. Ver o chão dos bairros populares pintados pela própria comunidade com uma bandeira imensa do Brasil, as clássicas bandeirolas ou fiapos de plástico com as cores verde e amarela pendurados nos postes, as camisas amarelas da seleção, o barulho das bombas e dos gritos histéricos, todos esses elementos simbólicos e auto-organizados do nosso povo constituem-se como parte dessa memória coletiva. 

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Mas, parece que até isso nos foi retirado. A satisfação de se sentir um povo nação com autoestima, já que ao menos no futebol nós ainda acreditávamos sermos únicos, artísticos, altivos. Era nesse espaço que poderíamos ao menos ter o prazer de vingar “na esportiva” todo o sofrimento e a dependência que a colonização do passado e o imperialismo do presente nos impuseram ao longo da nossa história. Mas estamos em um momento diferente. Desde o Golpe de 2016 que destituiu do cargo a presidenta Dilma Rousseff e toda a manobra subsequente com auxílio dos meios de comunicação, judiciário e parlamento nas eleições de 2018, culminando com a vitória de Jair Bolsonaro e sua tropa de militares e milicianos, incluindo seus filhos, que o povo brasileiro não tem um dia de paz e orgulho. 

Muitos pensadores, políticos, intelectuais, homens e mulheres, se preocuparam em analisar com profundidade e razão sobre o fenômeno futebol. Um deles foi o brilhante Lima Barreto (1881-1922), jornalista e escritor negro, com vasta obra em periódicos de sua época, conhecido por sua crítica contundente ao caráter racista e elitista desse esporte que já demonstrava interesse (de apropriação) por parte da classe média e alta branca e rica do país no início do século XX. Em uma de suas críticas ao futebol, Lima Barreto chegou a afirmar, e isso pode ser comprovado nos registros históricos dos jornais da época, que este esporte se apresentava como estratégia para eugenização e aprimoramento da raça branca no Brasil. Para esse autor, a elite que dominava o futebol dirigia os mesmos organismos de decisão do Estado e era um instrumento de dominação político-ideológico a serviço de uma classe, que obviamente não era a classe trabalhadora. Barreto, além de se opor ao futebol, acreditava na Capoeira como o genuíno esporte nacional. 

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Muito do que este intelectual genial escrevia, tinha a marca do racismo e do preconceito social que o mesmo sofreu ao longo de sua breve e intensa vida, mas que não se furtou ao debate necessário do nosso século e foi um dos precursores de uma abordagem realista e crítica da sociedade e do futebol. Apesar de não ter acertado na previsão de que o futebol não teria espaço para se popularizar em nosso país, sendo hoje o esporte mais praticado e consumido pelos brasileiros, Lima Barreto acertou em cheio quando escreveu que o futebol servia como instrumento político e ideológico à serviço das elites brancas e do capital e essas mesmas elites não estavam preocupadas com a participação, mas com o lucro acima de tudo e a profissionalização acima de todos. Outro destacado intelectual brasileiro que admirava muito o futebol e chegou a escrever crônicas em jornais da época sobre a temática foi o poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Um dos maiores poetas da nossa literatura afirmou certa vez que no futebol, cada clube não tem uma torcida, tem um partido organizado, e eles se aliam ou se separam conforme os azares do campeonato. Trazer essa afirmação para o presente pode demonstrar inclusive nossa fragilidade enquanto classe, que têm tido ainda mais dificuldade em se organizar para defender direitos básicos já adquiridos e não aceitar os retrocessos impostos nos últimos anos, a exemplo da Reforma da Previdência, Reforma Trabalhista, Lei da Terceirização, Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, dentre outros. O “campeonato” do momento político para nós não está sendo meramente azarento, mas vem sendo descaradamente manipulado, burlado, trapaceado por juízes autoritários e pró-fascistas em “campo”. A mídia televisiva tem um papel amortizador inquestionável, pois por um lado se alia aos interesses do capital ao lucrar com a propaganda e as vendas de produtos durante a transmissão desses jogos, e por outro, realiza esporádicas críticas direcionadas a alguns dirigentes, de forma seletiva e sensacionalista, mas nada que altere o jogo de interesses aí colocado. Cabe aqui um questionamento: O futebol televisionado consiste no que Karl Marx (1818-1883) chamou à sua época a respeito da religião, como o “ópio do povo” moderno? Ou a religião segue cumprindo esse objetivo de forma isolada? Podemos afirmar que esses dois elementos culturais complexos produzidos pela humanidade contribuem para a alienação, passividade e conformismo frente aos problemas sociais que a sociedade enfrenta em meio a atual crise do capital?

Para perguntas complexas, as respostas jamais poderão ser simples. Não pretendo tampouco exaurir a discussão neste texto curto, mas podemos afirmar que essas e outras estratégias do sistema capitalista, além da repressão policial do estado armado, tem se mostrado eficazes no entorpecimento e desorganização da classe. O esporte e, mais especificamente o futebol, como dito anteriormente, são produções humanas e refletem o estágio de desenvolvimento de determinadas realidades sociais e de suas forças produtivas. O esporte não é somente um produto do capitalismo, mas inserido nesse sistema econômico, atende às necessidades principalmente de quem o comanda. É a sociedade capitalista que transforma tudo em mercadoria, mas podemos e devemos pensar que outra lógica é possível para as relações sociais que não se pautem unicamente no interesse privado e na exploração do nosso trabalho e na ocupação do nosso tempo “livre”. 

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Para o historiador marxista anglo-egípcio Eric Hobsbawm (1917-2012), ainda que transformado em espetáculo de massas, existe também no esporte, e no futebol em particular, um fortalecimento do ideal nacionalista na identificação dos indivíduos com a nação, como parte da vida global, expressando também disputas entre estados-nações que exprimem conceitos como “raça” e “nação” carregados de subjetivismo e simbolismos que estão para além das interpretações dogmáticas. 

Ou seja, ao analisar o fenômeno esportivo é preciso ter um olhar ampliado, crítico-superador, que vislumbre não só as questões econômicas e materiais explícitas do nosso tempo, mas que reconheça o poder das ideias, do imaginário coletivo, mobilizador e questionador do esporte quando politizado e aliado às lutas anticapitalistas, antirracistas e feministas. Mas e a Copa América no Brasil? O que tem a ver com isso tudo?

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No início da semana de maio fomos surpreendidos pela notícia de que o Brasil sediará entre os dias 13 de junho a 10 de julho, a Copa América de futebol 2021. Inicialmente prevista para ser realizada em parceria entre Argentina e Colômbia, os dois países recuaram em meio a conturbada conjuntura política e pandêmica mundial. O atual governo da Colômbia, país que desde o fim de abril vive um momento político de intensa mobilização popular contra medidas conservadoras do atual presidente de direita e lacaio do Império estadunidense Iván Duque, teve que recuar em seu projeto de reforma tributária e com a recente renúncia do seu ministro da fazenda. Em plena pandemia (registrando mais de 90 mil mortes) os movimentos sociais do país seguem bravamente mobilizados nas ruas em defesa de direitos básicos, demonstrando que a reforma foi apenas a gota d’água para a revolta no país. 

Na possibilidade remota de assumir sozinha a organização do evento, a Argentina em 30 de maio também recuou devido ao agravamento da pandemia do novo coronavírus. Em menos de um dia (31 de maio), os brasileiros ficariam sabendo através dos meios de comunicação, que a entidade que organiza o evento, a CONMEBOL, publicaria nas redes sociais um agradecimento “ao presidente Jair Bolsonaro e a sua equipe, assim como a CBF, por abrir as portas do país”. 

CONCLUSÃO

Pelo visto, abrir as portas (e todas as janelas) do país ao capital estrangeiro é uma especialidade do governo Bolsonaro, que ignora a realidade de constante luto e luta pelas inúmeras vidas perdidas em decorrência do novo coronavírus. O ocupante da cadeira da presidência desconsidera a vacinação da população e os cuidados sanitários, tal como ficou explícito na CPI da COVID. É insensível frente ao desalento e desemprego que têm levado muitas famílias brasileiras ao desespero que a fome e a miséria geram. Não se importa com os riscos que os especialistas apontam de aumentar as chances de termos novas cepas do vírus e agravar ainda mais a situação caótica que vive o sistema público de saúde. Se o torneio traria vantagens econômicas para o país, todavia não temos nenhuma garantia. Sabe-se, no entanto que marcas multimilionárias como Bridgestone, Santander, Gatorade, Amstel e Nike, seguem sendo patrocinadores oficiais dos torneios da CONMEBOL e a marca TCL Electronics, uma das principais representantes da indústria global de televisão que mais cresce no mundo, também anunciou o patrocínio oficial da Copa América 2021 no Brasil. 

Não seríamos ingênuos a ponto de acreditar que estas empresas estariam simplesmente prestando um serviço à população latino-americana e ao futebol sem ganhar nada em troca, já que mesmo sem a participação do público de forma presencial aos jogos, os montantes de dinheiro que são movimentados estão para além do que a entidade divulgou em suas finanças oficiais. O torneio mobilizará milhões de dólares que serão entregues em prêmios aos times campeões, que poderiam ser usados no continente sul americano para compras de vacinas, ampliações e melhorias no sistema de saúde público, mais empregos, auxílio, etc. 

A única garantia que temos é a de que seguiremos lutando para conter o vírus mais letal da história do país, sem a ajuda do governo federal, contando apenas com as inúmeras iniciativas individuais e coletivas de pessoas, entidades e movimentos sociais, que educam através do exemplo e da solidariedade. Seguiremos ainda resistindo e nos mobilizando, tendo como exemplo nossos irmãos e irmãs latino-americanas, que não hesitam em sair às ruas e enfrentar uma ameaça maior que a do vírus - os tiranos e autoritários chefes do executivo que são criminosos genocidas (o nosso exemplo de luta no último dia 29 de maio foi crucial e a próxima manifestação programada para o dia 19 de junho será ainda mais importante). Lutemos também pela democratização da mídia e pela democratização do futebol, pois estamos aqui falando de um torneio masculino que move milhões, mas que quando comparado ao incentivo, patrocínio e reconhecimento das categorias do futebol feminino são vergonhosamente desiguais e extremamente machistas.

Está mais do que comprovado que não se trata só de futebol. Não é somente um jogo. Muito menos paixão e irracionalidade. É parte fundamental da disputa política e ideológica que frente à barbárie do capital, encontra resistência e força capaz de construir revoluções sociais e culturais. Vivemos em meio ao caos de um país digno de uma série distópica que certamente alcançaria o top 10 nos streamings de maior sucesso no mundo. Mas o capítulo final dessa história segue em disputa. 

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Quando é dia de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. BARRETO, Lima. “Sobre o football. Brás Cubas. Rio de Janeiro, ano ii, 15 ago. 1918. BARRETO, Lima. “Uma partida de football. Careta, Rio de Janeiro, ano xii, n. 589, 4 out. 1919. HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010.

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