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Tiago Basílio Donoso

Mestre em Teoria Literária pela Unicamp e autor do livro no prelo “Terras Nacionais e Terras Estrangeiras”, pela editora Kotter

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Crítica ao filme Duna, uma Bagdá de ficção científica

"Duna é um filme grosseiro. De uma inteligência ridícula, de mentalidade pobre - e mais uma confissão geopolítica que um produto de entretenimento"

(Foto: Reprodução)
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A certa altura do filme, o herdeiro Paul é informado de que está em uma estação ecológica. O planeta é Arrakis, desértico, repleto de dunas. As imagens são amareladas, estéreis, como nos filmes que tratam da fronteira mexicana ou do Iraque - cenas desoladas, panorâmicas, cuja ausência de vida permite a matança e o desprezo pelo outro, ao modo dos velhos faroestes. A diferença aqui é evidentemente o dinheiro e sua correlata mágica - a tecnologia. Efeitos especiais, animação em 3D tentam justificar o gasto de 165 milhões de dólares. Tentam a todo momento causar espanto, porém o espanto de se jogar dinheiro nos olhos do espectador.

Paul está em uma insuspeita estação ecológica em meio ao deserto. Desativada há muito, retém contudo plantas, insetos, água, demonstrando que a vida poderia florescer no planeta - e que, apesar de ser esse o plano inicial, a descoberta de “especiaria” teria operado a troca de objetivos, já que esse é o insumo mais caro do universo - como nos deixa cientes o início do filme.

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Essa preocupação ecológica, como a preocupação com personagens fortes femininos, ou a representação de um povo oprimido - os Fremen - enquanto guerreiros insubmissos poderiam nos enganar e fazer crer que Duna é um filme “engajado”. Besteira. Sofre, de fato, da mesma falta de empatia essencial que forjou os faroestes - e se os nativos não são mais os inimigos, são, contudo, supersticiosos, ignorantes e, o mais relevante, estão ali para serem salvos e clamam por um messias - americano

Assim como os faroestes, que tratavam do imperialismo introvertido das fronteiras, da corrida do ouro e do fascínio com o Oeste, Duna é um filme de um imperialismo novo, ao mesmo tempo extrovertido e envergonhado. Não se trata mais de civilizar a terra continental e os nativos, mas de fazer favores internacionais - ou interplanetários - e, de quebra, ganhar um troco. Oscar Isaac, ator que interpreta Leto, pai de Paul e duque da íntegra Casa de Atreides, comunica um embaixador-guerreiro dos Fremen sobre suas intenções: “Iremos respeitá-los, mas você sabe que nossa presença aqui seria insustentável se não mineirássemos a ‘especiaria’”. Ou seja, é o intervencionismo americano, cheio de boa-vontade, que apenas toma os recursos naturais porque, sem eles, não teria recursos financeiros para proteger a população local.

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É por essas e outras que Duna é um filme grosseiro. De uma inteligência ridícula, de mentalidade pobre - e mais uma confissão geopolítica que um produto de entretenimento. Ficamos desconfiados, ao ver filmes como esse e, por exemplo, o famigerado John Wick, de que ainda há a famosa interferência de assuntos de Estado em Hollywood. Como poderia surgir tais ideias toscas, com imaginação de manual, na cabeça do francês Villeneuve senão com alguma orientação? Não é possível ser tão burro e mesquinho sem de algum modo estar a obedecer ordens.

Para quem ainda não se convenceu, lembre-se de que os personagens principais da Casa Atreides são brancos - e um deles se chama, surpreendentemente, Duncan Idaho. Antes deles, são os carecas de roupa escura quem regem e exploram Arrakis, e o nome de sua casa é Harkonnen. Seus atores caracterizados como mafiosos russos não enganam ninguém. Tampouco a decisão do Império, uma certa entidade supranacional e portadora de regimentos, como a ONU, quando decide retirá-los dos desertos e entregar o planeta nas mãos dos Atreides, os americanos.

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Mas eles sabem que se trata de uma emboscada. Os russos voltarão. Nada os impede de ir até lá, esfregar sua integridade na cara do resto do universo - salvar vidas de árabes, mesmo a custa de poder perder a própria, fazer diplomacia bem-intencionada e abrir diálogo com os nativos, vistos a todo momento como essencialmente estrangeiros - ou, na linguagem americana, aliens.

E são, de fato, árabes. Sua linguagem, suas roupas, a cor de sua pele nos dizem. Mas, que vieram fazer os americanos, na própria lógica do filme? Vieram cair deliberadamente em uma emboscada? Não, vieram salvar os pobres árabes desse Oriente-médio rodando entre galáxias - esses árabes arianos, messiânicos feito cristãos deslocados, de olhos profundamente azuis, que não se rendem jamais aos russos, seja em Kabul, Teerã ou Bagdad. Vieram reclamar também das instalações locais, da precariedade das máquinas, talvez já antecipando a chegada de alguma empreiteira do tipo Blackwater.

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Para isso têm um trunfo, já que é questão de tempo a volta dos russos Harkonnen. E seu trunfo é Paul, o garoto impressionado com a ecologia, e cujas ações todas parecem estar descritas em um livro sagrado dos Fremen. Ele é - talvez - o messias. Os locais assim o tratam. Porém, antes que cheguem os Atreides, chegou em Arrakis o softpower dos Bene Gesserit, uma espécie de preparação prévia e ideológica dos locais, com teor místico-religioso. O próprio Paul desconfia de que sua posição messiânica seja fruto da superstição dos locais - pobres árabes que não conhecem a razão ocidental - alimentada por essa rede de mulheres, as Bene Gesserit, de cujo grupo faz parte também sua mãe. E, apesar de Paul - o bom - fazer tal ressalva, prossegue agindo como se messias fosse.

Quando a ONU se alia ao inimigo e toda sua casa é morta - pela traição de um ator chinês (que não é mau, aliás, mas burro, porque crê que fazer acordos com russos é um bom negócio - e termina degolado) - Paul pensa por um instante em fazer um acordo com a mesma ONU, o Império. Ao final, desiste. Seu acordo será com os locais - o filme nos deixa saber. Mas, esse acordo com os locais é mesmo um acordo de lealdade?

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Vejamos: há duas personagens negras de relevância no filme. A primeira, Dr. Liet-Kynes, morre para salvar Paul. Morre, porém, sorrindo - e isso é relevante.

O segundo é Jamis - e o filme gira em torno da expectativa de que ora Paul será assassinado pelos Fremen, ora que Jamis o guiará à vida difícil nas dunas. E Jamis enfim aparece, fora dos sonhos, na realidade desértica de Arrakis. Decide matar em duelo Paul. Obviamente, fracassa. Paul o mata, e assim sabemos que Jamis é, apesar de morto, seu amigo e guia dali em diante.

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O quê? Sim, é exatamente isso. As duas personagens negras morrem em função do esquálido messias americano. A primeira sorri ao morrer, como se assim se juntasse à natureza do planeta, à areia e, quem sabe, ao futuro messiânico que Paul promete a seu povo. O segundo morre para poder viver, para poder se tornar um guia abstrato do personagem principal. A lição que fica é: como fazer bem a um povo? Matando-o. Só assim ele poderá se desprender das agruras da carne (aliás, morre não por destemor ou coragem, mas, como o chinês, é vítima da própria burrice).

O filme é, portanto, de cabo a rabo um lixo cultural. É propaganda estatal, como fizeram os regimes de Stálin, de Roosevelt, de Biden e de Hitler. Mas - o que é pior - finge não sê-lo. Tenta confundir a linha narrativa, misturar sonhos e realidade, apresentar invenções chucras de sci-fi - como um helicóptero com asas de inseto e um piercing nasal-respiratório - e tenta, até, confundir o espectador com uma pretensa analogia cristológica. Porém, não há Cristo em Duna, há apenas o cristianismo beligerante dos norteamericanos, que estão em cruzadas contra nativos - até de sua própria região - desde o dia em que se conceberam uma unidade. Há, em Duna, muito a aprender, mas a contragosto dos pretensos autores: é possível apreender ali toda a estúpida e texana vontade americana, que coloca entre estrelas, nos portos imaginários do universo, suas obsessões tão superficiais quanto perigosas, a Bíblia do Rei James e a Magnum .44.

É bom ficarmos sabendo, por essa confissão de parvoíce geopolítica: os Estados Unidos continuam e continuarão os mesmos. Acham nobre invadir terras alheias, tomar seu petróleo ou sua especiaria, colocarem-se como salvadores no palco internacional e - apesar do discurso humanitário - seguir degolando e matando populações nativas. Um pouco envergonhados, talvez, apenas até o ponto de jogarem milhões em produções cinematográficas que os justifiquem. E seguirão colocando a culpa nos russos - ou, quem sabe, a depender de Jeff Bezos e caterva, nos Harkonnen. Porém, a história parece que irá pará-los, enojada, antes que cometam a idiota insensatez de caçarem índios extra-galáticos, em um imbecil faroeste nas montanhas de Alfa-centauro.

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