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Chris Hedges

Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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Crônicas de uma guerra anunciada

Após a queda da União Soviética, havia um entendimento quase universal de que a expansão da OTAN seria uma provocação insensata contra a Rússia

(Foto: Reuters/Umit Bektas)
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Por Chris Hedges

(Publicado no ScheerPost, traduzido com exclusividade para o Brasil)

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Tradução e adaptação: Rubens Turkienicz

Eu estava na Europa Oriental em 1989, reportando sobre as revoluções que derrubaram as ossificadas ditaduras comunistas que levaram a União Soviética ao colapso. Aquele era um tempo de esperança. Com o desmembramento da União Soviética, a OTAN tornou-se obsoleta. O Presidente  Mikhail Gorbachev estendeu a mão à Washington e à Europa para construir um novo pacto de segurança que incluísse a Rússia. James Baker, o Secretário de Estado do governo Reagan, juntamente com o Ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Hans-Dietrich Genscher, asseguraram à União Soviética que, se a Alemanha fosse unificada, a OTAN não seria extendida além das novas fronteiras. O compromisso de não expandir a OTAN, também assumido pela Grã-Bretanha e a França, parecia anunciar uma nova ordem global. Víamos o dividendo da paz pendurado à nossa frente, a promessa de que os massivos gastos com armas que caracterizaram a Guerra Fria seriam convertidos em gastos com programas sociais e de infraestrutura que há muito haviam sido negligenciados para alimentar o insaciável apetite dos militares.

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Naquela época, havia um entendimento quase generalizado entre diplomatas e líderes políticos de que seria insensata qualquer tentativa de expandir a OTAN, que seria uma injustificada provocação contra a Rússia que obliteraria os laços e vínculos que haviam emergido alegremente ao final da Guerra Fria.

Quão inocentes fomos. A indústria da guerra não tinha a intenção de encolher o seu poder nem os seus lucros. Quase imediatamente, eles começaram a recrutar os países do antigo Bloco Comunista para a União Europeia e a OTAN. Os países que entraram na OTAN – que agora incluía a Polônia, a Hungria, a República Tcheca, a Bulgária, a Estònia, a Látvia, a Lituânia, a Romênia, a Eslováquia, a Albânia, a Croácia e a Macedônia do Norte – foram forçados a reconfigurar as suas forças militares, muitas vezes com robustos empréstimos, para tornarem-se compatíveis com o equipamento militar da OTAN.

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Não haveria um dividendo de paz. A expansão da OTAN tornou-se rapidamente uma bonanza multi-bilionária em dólares para as corporações que haviam lucrado com a Guerra Fria. (A Polônia, por exemplo, recém havia concordado em gastar US$ 6 bilhões para a aquisição de tanques M1 Abrams e outros equipamentos militares dos EUA.) Caso a Rússia não concordasse novamente de ser o inimigo, então a Rússia seria pressionada a tornar-se o inimigo. E aqui estamos agora, à beira de uma nova Guerra Fria, uma na qual apenas a indústria da guerra lucrará – como escreveu W. H. Auden, as crianças pequenas morrem nas ruas.

As consequências de empurrar a OTAN até as fronteiras com a Rússia – agora há uma base de mísseis na Polônia a 100 milhas da fronteira russa – eram bem conhecidas pelos formuladores de políticas. Mesmo assim, eles o fizeram. Não havia sentido geopolítico nisso. Mas havia sentido comercial. Ao final de contas, a guerra é um negócio, um negócio muito lucrativo. É por isso que ficamos duas décadas no Afeganistão, apesar de haver um consenso universal, após alguns anos de luas infrutíferas, que havíamos chafurdado num atoleiro que jamais venceríamos.

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Num telegrama diplomático confidencial obtido e divulgado pelo Wikileaks, datada de 1º de fevereiro de 2008 e escrita em Moscow, endereçado aos Chefes do Estado-Maior Conjunto dos EUA, à Cooperativa OTAN-União Europeia, ao Conselho de Segurança Nacional dos EUA, ao Coletivo Político Rússia-Moscou nos EUA, ao Secretário de Defesa dos EUA e ao Secretário de Estado dos EUA, havia um entendimento inequívoco de que a expansão da OTAN arriscaria um eventual conflito com a Rússia, especialmente sobre a Ucrânia.

Diz o telegrama: “Não apenas a Rússia percebe o cêrco da OTAN e os esforços para minar a influência da Rússia na região, mas esta também teme as consequências impredizíveis e incontroladas que poderiam afetar seriamente os interesses de segurança russos. Os especialistas nos dizem que a Rússia está particularmente preocupada de que as fortes divergências na Ucrânia sobre uma participação na OTAN – sendo que muitos da comunidade étnica russa na Ucrânia eram contra tal participação – poderiam levar a uma importante cisão, envolvendo violência ou, no pior dos casos, à uma guerra civil. Neste caso, a Rússia teria que decidir se deveria intervir – uma decisão que a Rússia não quer ter que enfrentar... Dmitri Trenin, o Vice-Diretor do Carnegie Moscow Center, expressou a preocupação de que, à longo prazo, a Ucrânia seria o fator potencialmente mais desestabilizador nas relações USA-Rússia, dado o nível de emoção e neuralgia provocado por esta busca por tornar-se membro da OTAN … Como tal associação permanece como um ponto de discórdia na política interna ucraniana, ela cria uma abertura para uma intervenção russa. Trenin manifestou a preocupação de que alguns elementos dentro das instituições russas se sentiriam encorajados a interferir, estimulando um encorajamento aberto dos EUA às forças políticas de oposição, deixando os EUA e a Rússia numa clássica postura de confrontação.”

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Não querendo inflamar ainda mais as tensões com a Rússia, o governo Obama bloqueou a venda de armas a Kiev. Porém, este ato de prudência foi abandonado pelos governos Trump e Biden. Enxurradas de armas dos EUA e da Grã-Bretanha estão sendo despejadas na Ucrânia – uma parte dos USD 1.5 bilhão prometidos em ajuda militar. O equipamento inclui centenas de sofisticados Javelins e armas NLAW anti-tanques, apesar dos repetidos protestos de Moscou.

Os Estados Unidos e seus aliados na OTAN não têm intenção de enviar tropas para a Ucrânia. Ao invés disso, eles inundarão o país com armas – que é o que estes fizeram no conflito de 2008 entre a Rússia e a Geórgia.

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O conflito na Ucrânia faz eco com o romance “Crônica de uma morte anunciada” de Gabriel Garcia Marquez. No livro, o narrador reconhece que “jamais houve uma morte mais anunciada” e, no entanto, ninguém foi capaz, nem disposto, de evitá-la. Todos nós que reportamos na Europa Oriental em 1989 sabíamos quais seriam as consequências de provocar a Rússia; no entanto, poucos levantaram as suas vozes para impedir a loucura. Os passos metódicos na direção da guerra tomaram uma vida própria, levando-nos como sonâmbulos em direção ao desastre.

Depois que a OTAN expandiu-se para a Europa Oriental, o governo Clinton prometeu à Moscou que as tropas de combate da OTAN não ficariam estacionadas na Europa Oriental – que era a questão decisiva do Ato de Fundador das Relações Mútuas OTAN-Rússia de 1970. Mais uma vez, esta promessa revelou-se ser uma mentira. Depois disso, em 2014, os EUA apoiaram um golpe contra o presidente ucraniano Viktor Yanukovych – que havia tentado construir uma aliança econômica com a Rússia, ao invés de fazê-lo com a União Européia. Obviamente, como era visto no resto da Europa Oriental, uma vez integrada na União Européia, o próximo passo é tornar-se membro da OTAN. A Rússia, assustada pelo golpe, alarmou-se com as aberturas feitas pela União Européia e a OTAN, e então anexou a Criméia – habitada em sua maioria por uma população de fala russa. E a espiral da morte que nos levou ao conflito atual em andamento na Ucrânia tornou-se imparável.

O estado de guerra precisa de inimigos para sustentar-se. Quando não é possível encontrar-se um inimigo, um inimigo é fabricado. Nas palavras do Senador dos EUA Angus King, Putin tornou-se o novo Hitler que quer tomar a Ucrânia e o resto da Europa Oriental. Os altos brados de guerra, ecoados desavergonhadamente pela imprensa, são justificados pela drenagem do contexto histórico do conflito, elevando-nos (os EUA) a salvadores e seja quem for a quem nos oponhamos – de Sadam Hussein a Putin – como sendo o novo lider nazista.

Não sei onde isto vai acabar. Devemos lembrar-nos – como Putin nos lembrou – que a Rússia é uma potência nuclear. Devemos lembrar-nos de que, uma vez aberta a caixa de Pandora da guerra, esta libera forças escuras e assassinas que ninguém pode controlar. Sei disso pela minha experiência pessoal. O fósforo foi aceso. A tragédia é que jamais houve qualquer controvérsia sobre como a conflagração começaria.

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