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Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português

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Dez teses para reinventar as esquerdas

"As forças de extrema-direita foram as primeiras a identificar aí a sua oportunidade para prosperarem", diz o sociólogo Boaventura de Sousa Santos

Manifestações Fora Bolsonaro (Foto: Brasil 247)
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(Publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1340, 9 de Fevereiro 2022)

As eleições gerais do passado dia 30 de Janeiro em Portugal tiveram  resultados surpreendentes. O Partido Socialista (PS) ganhou as eleições com  maioria absoluta. Portugal será, a partir de agora, o único país europeu com  um governo de maioria absoluta de um só partido de esquerda. Os dois  partidos à esquerda do PS tiveram os piores resultados de sempre. O Partido  Comunista (PCP), que tinha doze deputados no parlamento, passa a ter  metade; e o Bloco de Esquerda (BE), que tinha 19 deputados, passa a  ter cinco. O BE passa de terceira força política para quinta e o PCP, de quarta  para sexta. As posições destes partidos passaram a ser ocupadas por forças  de ultra-direita, uma de inspiração fascista (Chega), agora terceira força  política, da família da extrema-direita europeia e mundial; e outra de recorte  hiper-neoliberal, darwinismo social puro e duro, ou seja, a sobrevivência do  mais forte (Iniciativa Liberal), agora quarta força política. Os resultados  eleitorais mostram que a esquerda à esquerda do PS perdeu a oportunidade  histórica que granjeou depois de 2015 ao construir uma solução de governo  de esquerda que ficou conhecida por geringonça (PS, BE, PCP), uma solução  que travou a austeridade imposta pela solução neoliberal da crise financeira  de 2008 e lançou o país numa recuperação económica e social modesta mas  consistente. Esta solução começou a precarizar-se em 2020 e colapsou em  finais de 2021 com a rejeição do orçamento apresentado pelo governo. Foi  isso que levou às eleições antecipadas de 30 de Janeiro. A vitória esmagadora  do PS depois de seis anos de governação e dois anos de pandemia é  memorável e merece reflexão. Neste texto, proponho-me reflectir sobre o  outro facto importante destas eleições: a queda abrupta dos dois partidos de  esquerda à esquerda do PS. Não pretendo aqui analisar a queda em si mesma; pretendo antes mostrar o abismo que nela se manifesta entre a esquerda que  o BE e o PCP representam e a esquerda que, em meu entender, tem condições  para prosperar nas próximas décadas. A diferença entre o que existe e o que  proponho é tal que estamos perante a necessidade de reinventar as esquerdas.  Por agora não me refiro ao conteúdo programático. Refiro-me sobretudo às formas de organização. Apresento a minha proposta em dez teses. 

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1. Não há cidadãos despolitizados; há cidadãos inseguros que não se  sentem mobilizados pelas formas dominantes de politização, sejam elas  partidos ou movimentos da sociedade civil organizada.

A esmagadora maioria dos cidadãos não está filiada em partidos, não  participa em movimentos sociais nem sai à rua para se manifestar, mas uma  boa parte dela sente-se excluída, abandonada e sem esperança que a  democracia realize as suas expectativas. A pandemia veio agravar a  insegurança existencial. As forças de extrema-direita foram as primeiras a  identificar aí a sua oportunidade para prosperarem. São exímios  empreendedores do medo e da raiva. 

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Depois de séculos de colonialismo (racismo, xenofobia, roubo de terra  e de recursos naturais) e de hétero-patriarcado (sexismo, violência de género,  feminicídio, homofobia, transfobia) e de mais de quarenta anos de  capitalismo neoliberal (concentração escandalosa da riqueza, sobre 

exploração do trabalho, erosão dos direitos sociais e económicos e destruição  da natureza), as revoltas ou explosões sociais, quando ocorrem, tendem a  colher de surpresa os partidos e as organizações da sociedade civil  (associações e movimentos sociais). São muitas vezes movimentos  espontâneos, presenças colectivas nas praças públicas.  

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2. Não há democracia sem partidos, mas há partidos sem democracia.

Uma das antinomias da democracia liberal representativa reside em ela  assentar cada vez mais nos partidos como forma exclusiva de agência  política, ao mesmo tempo que os partidos são internamente cada vez menos  democráticos. Os partidos vivem e reproduzem-se no interior de instituições  que tendem a isolar-se da turbulência e da complexidade das dinâmicas  sociais. O défice democrático dos partidos traduz-se na incapacidade para  captar atempadamente e interpretar corretamente os anseios, as  inseguranças, as aspirações de cidadãos e cidadãs cada vez mais  armadilhados na ideologia dominante da autonomia e da liberdade, sem  terem condições materiais para serem efectivamente autónomos ou se  sentirem efectivamente livres. Sem ninguém os escravizar, sentem-se  condenados a auto-escravizar-se. Enquanto empreendedores, colaboradores,  trabalhadores autónomos, sentem-se na situação paradoxal de terem direito  a não ter direitos. Esta dissonância é particularmente acentuada entre os  jovens e as classes sociais socialmente empobrecidas e vulneráveis, aquelas  para cuja defesa se criaram os partidos de esquerda. Por exemplo, as  ideologias dominantes nos partidos de esquerda tendem a ver nos jovens  apenas trabalhadores precários. Eles são isso, mas são muito mais do que  isso, são cidadãos e cidadãs preocupados com a sua sexualidade, com o  racismo, com as dificuldades de relacionamento num mundo pandémico e de  comunicação virtual, com a perda de amizades intensas, com a exigência de  altas qualificações académicas destinadas ao desemprego ou ao emprego lixo, com o medo que a crise ecológica lhes roube mais facilmente o futuro  que o capitalismo. A distância entre todas estas vivências e carências e os  códigos de formulação e de gestão política dos partidos é cada vez mais  preocupante. 

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3. Os partidos do futuro serão partidos-movimento.

Se é verdade que os partidos tradicionais esgotaram o seu tempo  histórico, isso é particularmente verdade no caso dos partidos de esquerda. A solução reside em transformar os partidos em entidades mais intensamente  democráticas. Os partidos do futuro têm de combinar a democracia  representativa com a democracia participativa no modo como se organizam,  como definem os seus programas, como escolhem os seus líderes, como  tomam decisões políticas importantes, como prestam contas e afirmam a  transparência. A participação cidadã nos partidos não se pode esgotar no  exercício do direito de voto de quatro em quatro anos. Deve exercer-se no  decurso do mandato dos eleitos, e não apenas quando o mandato termina.  Esta participação não se pode reduzir a receber informações regulares.  Devem plasmar-se na constituição de círculos de cidadania militante e  simpatizante, organizados por local de residência ou por tipo de ocupação, com capacidade deliberativa e não apenas consultiva. Esta vigilância e co criação política é particularmente decisiva no caso dos partidos de esquerda  por duas razões principais. As classes e os grupos sociais que as esquerdas  se propõem representar e cujos interesses dizem defender vivem em  condições sociais e universos culturais diferentes dos das lideranças políticas  e têm menos tempo e menos proximidade social para se manifestarem ou  para se fazerem entender. A política de proximidade é a chave da política do  futuro. Essa proximidade não pode ser mero artefacto virtual da sociedade  de informação porque os corpos vivos têm densidades e emoções que fogem  à lógica binária da comunicação virtual. Além do mais, a comunicação  virtual não entende os silêncios e as ausências, embora uns e outras sejam  fundamentais para entender o sofrimento dos que mais sofrem e as injustiças  a que estão sujeitos os mais injustiçados.  

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A segunda razão prende-se com a tradição do marxismo-leninismo que  por vezes ao centralismo democrático nos partidos vindos da tradiçã comunista. Esta tradição teve o seu mérito no seu tempo, mas está hoje  ultrapassada pelas condições de vida e comunicação contemporâneas.  Mantê-la nos dias de hoje, ainda que de forma matizada, significa por vezes  cair na tentação do espírito de seita (sectarismo), na busca de unanimidades  através do policiamento anti-democrático de opiniões divergentes para que  não vinguem e, finalmente, na oscilação brusca entre unanimidade e  silenciamento, suspensão de direitos, demonização na praça pública. Este  tipo de gestão das diferenças é cada vez mais incompatível com a visão que  os cidadãos têm da convivência e da deliberação democráticas. 

4. Os partidos-movimento de esquerda não precisam de ser inventados  a partir do zero; devem conhecer e valorizar as suas origens.

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As esquerdas nasceram na convivência com as classes e grupos sociais  excluídos. Ajudaram a minorar a exclusão e o silenciamento, não apenas  dando voz às suas reivindicações, mas também promovendo a sua auto estima, através da educação e da cultura populares, dos grupos teatrais, das  actividades de convívio e de lazer. As esquerdas têm de voltar às suas  origens, ao convívio de proximidade com os grupos sociais excluídos, discriminados, empobrecidos. Paradoxalmente, estes grupos são os que  sofrem mais com a ideologia dominante e os que mais facilmente se sentem  seduzidos por ela, expostos como estão à indústria do entretenimento  massivo e às redes sociais reconfortantes. As esquerdas partidárias deixaram  de viver onde vivem os seus eleitores, deixaram de conviver e de conversar  com eles, excepto quando os visitam para lhes pedir o voto. Quem hoje convive e conversa com os grupos sociais mais excluídos são muitas vezes as igrejas evangélicas neopentecostais quando não é o crime organizado. O ativismo militante de esquerda parece limitar-se a participar em reuniões do partido para fazer (quase sempre ouvir quem faz) uma análise da conjuntura.Os partidos de esquerda, tal como existem hoje, não são capazes de falar com as vozes silenciadas e excluídas em termos que estas entendam. Para mudar  isso, as esquerdas devem reinventar-se. 

5. Não há democracia, há democratização.

A responsabilidade das esquerdas reside em que elas servem hoje a  democracia mais genuinamente que quaisquer outras. A democracia liberal  representativa sempre teve o medo das maiorias sociais. Basta lembrar que a  democracia representativa esteve na sua origem limitada aos proprietários,  uma pequena minoria de cidadãos. Mas nos últimos sessenta anos passou por  períodos em que, com maior verosimilhança, foi o regime dos governos das  maiorias para benefícios das maiorias. Hoje em dia, a democracia liberal está  cada vez mais capturada por poderosos interesses econômicos. À medida que  isso ocorre e é mais conhecido, vai germinando a ideia de que a democracia  está a ser desfigurada e é hoje muitas vezes um regime de governos de  minorias para benefício das minorias. Em muitos países, as forças políticas  de direita dependem cada vez mais de interesses económicos poderosos. Para  os poder servir, não podem servir à democracia; apenas se servem dela. As  forças políticas de esquerda estão, por esta razão, em melhor posição para  servir a democracia e defender os antidemocratas. Mas, para isso, têm de  romper com a lógica de organização interna típica dos partidos de direita. 

As esquerdas são as mais bem posicionadas para entender que a  democracia não se pode limitar ao espaço-tempo da cidadania. As sociedades  politicamente democráticas são frequentemente sociedades em que as  maiorias não têm condições de viver democraticamente por estarem expostas  a quotidianos de autoritarismo que tenho designado como fascismo social. A  luta democrática tem de existir também no espaço da família, da  comunidade, da produção, das relações sociais, das relações com a natureza  e das relações internacionais. Cada espaço-tempo convoca um tipo específico de democracia. Nisto consiste a democracia de alta intensidade.  Comparada com ela, a democracia liberal representativa é uma democracia  de baixa intensidade.  

6. Os partidos-movimento devem lutar contra o fundamentalismo da  exclusividade da representação.

Os partidos convencionais sofrem de um fundamentalismo anti sociedade civil organizada (associações e movimentos sociais). Consideram  que têm o monopólio da representação política e que esse monopólio é  legítimo, precisamente porque as organizações sociais não são  quantitativamente representativas. Por isso, os únicos meios de se articular  com elas são a cooptação ou a infiltração. É assim que os partidos só  reconhecem “os seus movimentos”, as “suas associações”, sejam elas  sindicatos ou ordens profissionais. Este fundamentalismo da exclusividade  da representação e o que dele decorre levam a deslegitimar as organizações  da sociedade civil, a sujeitá-las a lógicas partidárias com prejuízo para os  interesses reais dos seus associados.  

A luta contra o fundamentalismo tem ainda uma outra dimensão. Os  partidos privilegiam a acção institucional, a mobilização das instituições, tais  como, o parlamento, os tribunais e a administração pública. Pelo contrário, as  organizações da sociedade civil e sobretudo os movimentos sociais, embora  utilizem também a acção institucional, recorrem muitas vezes à acção  directa, aos protestos e manifestações nas ruas e nas praças, aos sit-ins, à  divulgação de agendas por via da arte (o artivismo). O fundamentalismo da  exclusividade da representação tende a desvalorizar estas importantes  formas de mobilização social e a fomentar a tentação de as instrumentalizar. Os partidos tendem a homogeneizar as suas bases sociais (é-se socialista,  comunista, conservador, democrata cristão). Pelo contrário, as organizações e movimentos sociais concentram-se em lealdades temáticas mais  específicas: a habitação, a imigração, a violência policial, o racismo e o  sexismo, a diversidade cultural, a diferença sexual, a ecologia, o território, o  regionalismo, a economia popular, etc. Trabalham com linguagens e  conceitos distintos dos que são usados pelos partidos. Essa diversidade  enriquece a convivência democrática.

As organizações e movimentos sociais sabem que as formas de  opressão tanto vêm do Estado como das relações sociais (às vezes familiares)  e econômicas. Os sindicatos, por exemplo, têm uma experiência notável de  luta contra actores privados: os patrões e as empresas. É por esta razão que  o neoliberalismo lhes tem feito um ataque cerrado. A sociedade civil  organizada em associações, movimentos sociais e sindicatos está hoje  marcada por uma experiência muito negativa: os partidos de esquerda  descumprem frequentemente as suas promessas eleitorais quando chegam ao  poder. Esse descumprimento leva a prazo à deslegitimação dos partidos. Se  a legitimação democrática não for recuperada pelos partidos-movimento  democráticos, os partidos antidemocráticos e de vocação fascizante  encontram aí um terreno fértil para prosperarem. Apresentam-se, em geral,  como o antissistema, a nova/velha extrema-direita. 

7. A revolução da informação electrónica e as redes sociais não  constituem, em si, um instrumento incondicionalmente favorável ao  desenvolvimento da democracia participativa. 

Pelo contrário, podem contribuir para manipular a tal ponto a opinião  pública que o processo democrático pode ser fatalmente desfigurado (o  mundo das fake news e do discurso do ódio). O exercício da democracia  participativa necessita hoje, mais do que nunca, de reuniões presenciais e  discussões face a face. A tradição das células partidárias, dos círculos de cidadãos, dos círculos de cultura, das comunidades eclesiais de base tem de  ser reinventada. Não há democracia participativa sem interacção de  proximidade. A pandemia tornou mais difícil a política de proximidade, mas  ela deve ser retomada logo que possível. 

8. Os partidos-movimento de esquerda estão abertos a juntar forças  com outros partidos de esquerda com base no princípio das pluralidades despolarizadas e das teorias da transição.

Tradicionalmente, as forças políticas de esquerda foram vítimas de  faccionalismo e de oportunismo. Em ambos os casos, esses desvios deveram se à distância que criaram com as suas bases sociais. No caso das forças de  tradição comunista e anarquista, o faccionalismo foi o desvio mais frequente  decorrente quase sempre da ansiedade identitária e do purismo ideológico.  Fracionaram-se com frequência e transformaram os companheiros de  ontem nos inimigos de hoje. No caso das forças de tradição socialista, o  desvio mais frequente foi o do oportunismo, o ecleticismo ideológico que  tornou mais fácil coligar-se com forças de direita do que com outras forças  de esquerda. Tanto o faccionalismo como o oportunismo contribuem para  desarmar as forças de esquerda e frustrar as suas bases sociais. Isto é  particularmente preocupante num contexto epocal de crescimento de forças  de extrema-direita, apostadas em usar a democracia para chegar ao poder  mas prontas para a descartar à medida que isso for possível. 

Contra esta dupla tradição devem contrapor-se dois princípios. O  primeiro é o princípio das pluralidades despolarizadas. Consiste em  distinguir entre o que separa e o que une as organizações políticas e promover  as articulações entre estas com base no que as une, sem perder a identidade  do que as separa. O que as separa apenas fica em suspenso por razões  pragmáticas. As diferenças só se despolarizam quando as concessões são recíprocas, quando os processos e resultados da negociação são transparentes  e as bases sociais das organizações participantes os consideram benéficos  depois de devida e adequadamente consultadas. Esta é a primeira chave para  acordos entre os partidos de esquerda. 

A segunda chave consiste na consideração dos tempos e dos ritmos das  políticas defendidas. O socialismo não pode ficar na gaveta para sempre, mas  também não pode atingir-se amanhã. Há que pensar em períodos de  transição, nos quais as reformas devem ser medidas pela capacidade de  consolidar avanços sem abrir as portas para retrocessos abruptos. O  neoliberalismo tornou tão evidente e grave a transferência de riqueza dos  pobres e das classes médias para os ricos e para as velhas e novas elites que  as forças de direita tradicionais vivem hoje mais das oportunidades que as  esquerdas lhes dão pelos erros que cometem do que por mérito próprio.  

9. A cultura e a educação populares são uma das chaves para sustentar  a democracia e travar o avanço dos autoritarismos.

Os meios de luta mais eficazes contra o velho/novo fascismo, o  autoritarismo e o obscurantismo são a cultura e a educação. A cultura é a  prática da diversidade e da imaginação democráticas por excelência. A  educação é essencial para promover a difusão da convivência democrática e  do interconhecimento entre diferenças políticas, sociais e culturais. As novas  formas de educação política popular incluem rodas de conversa, círculos de  cidadania, universidades populares, teatro do oprimido, poesia slam, cultura  hip-hop, com vista a criar ecologias de saberes que potenciem a participação  política em que se deve plasmar a democracia participativa do futuro: orçamentos participativos, consultas populares, conselhos sociais ou de  gestão de políticas públicas, sobretudo nas áreas da saúde e da educação.

A história do país, de tudo o que há nela de luminoso e de tenebroso, é  uma dimensão essencial da cultura e da educação. O passado foi um passado  de lutas onde houve vencedores e houve vencidos. Por razões óbvias, as  classes dominantes preferem a história dos vencedores contada pelos  vencedores (seus antecessores). As forças políticas de esquerda devem, ao  contrário, promover a divulgação da história dos vencidos contada pelos  vencidos (os antecessores dos grupos sociais que se propõem defender).  Histórias plurais são as mais eficazes para lutar contra a falsa contingência  do presente e o carácter instantâneo e sem raízes da contemporaneidade monolítica. Uma sociedade que não conhece o seu passado está condenada a  ter só o futuro dos outros. 

10. Vivemos um período de lutas defensivas. 

A ideologia de que não há alternativa ao capitalismo – o qual é, de facto,  uma tríade: capitalismo, colonialismo (racismo) e hétero-patriarcado  (sexismo) – acabou por ser interiorizada por muito do pensamento de  esquerda. O neoliberalismo conseguiu combinar o fim supostamente  tranquilo da história com a ideia da crise permanente (por exemplo, a crise  financeira, a crise ecológica e, mais recentemente, a crise sanitária). Por esta  razão, vivemos hoje sob o domínio do curto prazo. É preciso atender às suas  exigências porque quem está com fome ou é vítima de violência policial ou  de gênero não pode esperar pelo socialismo para comer ou ser libertado.

Mas não se pode perder de vista o debate civilizatório que põe a questão  das lutas de médio prazo. A pandemia, ao mesmo tempo que tornou o curto  prazo em urgência máxima, criou a oportunidade para pensar que há  alternativas de vida e que, se não queremos entrar num período de pandemia  intermitente, temos de atender aos avisos que a natureza nos está a dar. Se não alterarmos os nossos modos de produzir, de consumir e de viver, caminharemos para um inferno pandêmico. 

Num momento em que os fascistas estão cada vez mais perto do poder, quando não estão já no poder, uma das lutas mais importantes é a luta pela  democracia. A democracia liberal representativa é de baixa intensidade  porque aceita ser uma ilha relativamente democrática num arquipélago de  despotismos sociais, económicos e culturais. Por isso, não se sabe defender  eficazmente das forças anti-democráticas. A democracia liberal  representativa é um essencial ponto de partida, mas não pode ser o ponto de chegada. O ponto de chegada é uma profunda articulação entre a democracia  liberal, representativa, e a democracia participativa, deliberativa. Neste  momento de lutas defensivas, é particularmente importante defender a  democracia liberal, representativa, para neutralizar os fascistas e para, a  partir dela, radicalizar a democratização da sociedade e da política. As forças  políticas de esquerda devem ter isto particularmente presente porque sabem  que serão elas os primeiros alvos e as primeira vítimas da violência fascista. 

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